Davi Marcelgo
Abdicar sonhos pelo bem maior, ser incorruptível, simbolizar a honra e bondade humana. Muitos filmes de heróis, desde Superman (1978), representam protetores benevolentes que transpiram sacrifícios. Os feitos desses mitos incluem girar a Terra em sentido anti horário e alterar o tempo, parar um trem desgovernado, salvar o Natal. Dentre os chavões do subgênero há a jornada em busca do que te faz um paladino. Ser tentado a usar os poderes para o próprio benefício, encarar dilemas, matar ou não seus inimigos e por aí vai. Homem-Aranha 2 (2004) debateu as responsabilidades da vida de vigilante, nuances foram inseridas nos quadrinhos ao longo dos anos, afastando os homens que usam colã de uma noção maniqueísta. Mas o caminho de se tornar um herói pode ser apenas consequência de um objetivo muito mais nobre: o de se relacionar.
Em 2014, uma equipe de criminosos traumatizados foi introduzida na história de Hollywood, os Guardiões da Galáxia. Diferente dos outros super-poderosos, eles não são dotados de proezas ou nobreza. São interesseiros, faziam serviços em troca de pagamento e salvaram a galáxia só porque pereceriam se não impedissem os planos de Ronan, o Acusador (Lee Pace). Depois dos eventos contra os Kree, se aproximaram do formato de uma equipe à la Vingadores. Porém, em Guardiões da Galáxia Vol. 3 (2023), terceiro e último encontro dos heróis dirigido por James Gunn, salvar a família é o mais importante, e no meio da jornada, talvez dê tempo de se tornar um herói.
Desde o primeiro filme, a história do grupo é sobre pessoas que se esbarraram e descobrem características em comum. Criminosos renegados, com passados traumáticos e sem família, unem-se para sobreviver. Em determinado ponto, eles percebem fragmentos de qualidade um nos outros, qualidades heroicas. Coragem, inteligência, sacrifício e humildade. Quando decidem salvar o planeta Xandar, é para estarem juntos caso a empreitada falhe. Morrer ao lado de quem te aceitou e admirou sem pedir nada em troca não parece ruim.
No volume 2, os Guardiões salvam o universo do maligno planeta Ego numa luta para resgatar Peter Quill (Chris Pratt). Rocket atravessa vários pontos do espaço pelos amigos que estão presos. Diferente do maximalismo do MCU, o clímax é mais íntimo: eles frustram os planos do vilão numa sucessiva cadeia de objetivos, na qual o mais importante é tirar os guardiões dali – o universo terminar bem é consequência. James Gunn isola e separa seus personagens do resto da Marvel a fim de criar a própria maneira de desenvolver história e grupo.
São vários os momentos em que isto é perceptível. Nota-se o que a direção quer mostrar, preferindo filmar uma briga e o revezamento de cuidado para com o Baby Groot (Vin Diesel) do que um tiroteio entre naves, como o carinho que o membro mais novo do grupo recebe em meio uma missão e as linhas de diálogo que aprofundam as relações. Quando ele prioriza o entendimento e aproximação do público dentro da dinâmica, é um recado da hierarquia de eventos, uma indicação ao que você deve olhar.
Mas e a terceira parte da aventura? Na trama, são os amigos que desbravam a galáxia para salvar um dos seus. Após Adam Warlock (Will Poulter) ferir Rocket Raccoon (Bradley Cooper) em uma missão determinada pelo Alto Evolucionário (Chukwudi Iwuji). Diante disso, os Guardiões da Galáxia precisarão correr contra o tempo para salvar o guaxinim, ao mesmo tempo que o passado tortuoso de Rocket e todos os métodos facinorosos do cientista contra animais indefesos são revelados, fazendo a trilogia culminar em um confronto empolgante. Atos de bravuras que poderiam soar comum e genéricos são potencializados por toda carga emocional inserida em todas as interações da equipe durante toda a década. O Senhor das Estrelas (Pratt) salta de uma altura absurda para obter o único objeto capaz de salvar a vida de seu amigo.
Gunn, que também assina o roteiro, conhece os moldes dos filmes de heróis, os clichês de mocinho e inimigo, parecidos em poderes e até trajes, como Homem-Aranha e Venom, Hulk e Abominável ou Superman e Zod, reduzidos a serem apenas uma contraparte. No último volume, o cineasta subverte o clichê e afasta Rocket de Alto Evolucionário. De parecidos, eles não tem nada. O guaxinim precisou aprender a conviver com as diferenças e imperfeições de cada guardião. Já o vilão é incapaz de reconhecer outro ser e aceitá-lo, constantemente atrás de modificar seres (humanos ou não) ao seu bel gosto e senso de perfeição.
Pensando em arco de personagem, o menor guardião é o que tem o maior deles. Introduzido como casca-grossa, ele não tinha receio algum de puxar o gatilho e já tinha até ameaçado matar os membros de sua equipe. Ele se esquivava de perigos, como fez na luta contra Thanos em 2018 e afastava as pessoas ao seu redor. Com o volume 3, descobrimos que era tudo pelo trauma de ter perdido sua primeira família pelas mãos do torturador de animais. A frase “cansei de fugir” é um grito de liberdade.
Quando Rocket opta por não matar seu nêmesis, mas libertar todas as criaturas presas, ele então se torna um herói. A equipe estava a salvo e o Alto Evolucionário não apresentava mais uma ameaça. Não tinha necessidade de Rocket salvar mais ninguém, exceto quando você é um herói. A resposta que ele dá, “sou um guardião da galáxia”, representa todas as características boas que ele reencontrou em si ao fazer parte da equipe. O antagonista é imperdoável. Durante grande parte do filme, somos expostos a incontáveis crueldades dele sem nenhum fio de humanização, que, ao final, a decisão de Raccoon vem como um choque para o espectador.
Fora todo o subtexto de heroísmo, ainda tem muita coisa magistral. Adam Warlock é uma ótima adição à saga: mesmo com pouquíssimos 10 minutos de tela, já é o bastante para se apaixonar pela atuação de Will Poulter. O filme também é o mais violento de todo Universo Marvel e rende algumas lágrimas durante seus 150 minutos, além de uma ótima trilha sonora, abrindo com Creep, clássico da banda Radiohead. Até as rimas visuais ganham espaço. Uma delas, ao final do filme, remete à cena do longa de 2014, “um bando de otários de pé formando uma roda”.
E não para por aí. Guardiões da Galáxia Vol. 3, além de ter enchido os bolsos da Marvel Studios, também foi indicado ao Oscar na categoria de Melhores Efeitos Visuais. Por infelicidade, o blockbuster ficou de fora em outras duas categorias em que teria grandes chances de levar a estatueta para a casa, Melhor Design de Produção e Melhor Maquiagem e Cabelo.
Quebrando o recorde de maior número de próteses utilizadas em um filme, o desfecho da trilogia utilizou 22.500 próteses, 500 perucas e 130 perucas faciais. Ao optar por efeitos práticos, James Gunn deixa a história ainda mais próxima das Space Opera dos anos 1970 e corrobora com o desempenho dos atores, que poderiam ser facilmente substituídos por CGI. Nas palavras do próprio diretor, a intenção era garantir a atuação de Chukwudi Iwuji. Já a direção de arte comandada por Beth Mickle é engenhosa ao ponto de fazer você pegar um foguete e ir direto para o espaço, com diferentes texturas e estéticas, desde uma base centrada num organismo vivo pegajoso a uma espaçonave feita de figuras geométricas.
O futuro da DC no Cinema está seguro. Com James Gunn, que demonstra domínio nas adaptações em quadrinhos, todos os tiros tendem a ser certeiros. Para além de uma construção de um universo cinematográfico ansioso, ele sempre preferiu sustentar sua história e fazer o público querer sentar no banco do passageiro. Para fazer uma nova e excelente abordagem de tornar-se herói, só conhecendo o material base e amando ele.
O título sobe em um momento de fragilidade e irmandade da equipe, condensando o que é ser um Guardião da Galáxia. Não em grandes atos épicos, mas na interação entre esses personagens disfuncionais. As grandes cenas de ação ganham riqueza graças ao sentimento compartilhado entre o público e eles. Acompanhar os Guardiões da Galáxia na trilogia, suas participações em Vingadores: Guerra Infinita e Ultimato e um especial de Natal foi uma viagem rumo às estrelas mais quentes. Foi fazer amigos, ser apresentado aos hits favoritos de uma pessoa que você nutre carinho e aprender que não é necessário ter uma ‘alma perfeita’.