Oito de Março, a mulher na mídia brasileira e o real sentido da representatividade

No Dia Internacional da Mulher, o Especial da Globo Falas Femininas e o Roda Viva colocaram mulheres em frente e por trás de suas câmeras para debater questões que cercam a nossa existência

O especial Falas Femininas foi a contribuição da Globo para o Dia Internacional da Mulher (Foto: Rerpodução)

Raquel Dutra

Maria Sebastiana da Silva, Carol Dall, Gleice Araújo, Cristiane Oliveira e Tina dos Santos foram os nomes que protagonizaram um documentário especial na TV Globo no Dia Internacional da Mulher. A alguns canais de distância da maior emissora do país, ia ao ar a edição semanal de um dos programas jornalísticos mais tradicionais do Brasil pautada unicamente por mulheres. Assim, a grade da programação principal da televisão brasileira na noite de 8 de março de 2021 não só não escapou ao assunto do dia, como foi tomada por quem o constituía.

Falas Femininas contou as histórias de cinco mulheres anônimas de diferentes idades, crenças e lugares do Brasil a partir da direção de Antonia Prado e Patrícia Carvalho. Na TV Cultura, as jornalistas do Roda Viva, lideradas por Vera Magalhães, entrevistaram Taís Araújo, atriz que foi pioneira no que diz respeito à participação de mulheres negras na mídia brasileira. Em todas as diferenças entre as interlocutoras e os formatos dos programas, o que se destaca são os temas levantados, radicalmente comuns. Entre discussões sobre maternidade, sexualização, machismo, trabalho, dores e sonhos, cada uma delas revela as cicatrizes que, infelizmente, são o que nos conectam umas às outras.

Taís Araújo foi a primeira protagonista negra em uma novela da Rede Globo e a primeira atriz negra a ocupar o papel principal em novela do horário nobre da emissora; em 2017, foi eleita uma das 100 personalidades negras mais influentes do mundo (Foto: Reprodução)

Cada uma delas vêm de um lugar diferente. Começando pela mais nova, a carioca Carol Dall Farra tem 26 anos e é rapper, poeta, slammer e estudante universitária. A paulistana Cristiane Oliveira tem 44 anos, é mãe solteira de quatro filhos e auxiliar de enfermagem.  Tina dos Santos, de 47 anos, é baiana e mora na capital paulista com os dois filhos, trabalhando como doméstica e cozinheira. Fora do eixo Rio-São Paulo, conhecemos as histórias de Gleice Araújo, conhecida como Ruana, de 29 anos, que mora em Salvador com o marido e as três filhas e trabalha como ambulante, e Maria Sebastiana da Silva, agricultora de 59 anos do interior do Piauí que é mãe de sete filhos e avó de 14 netos. 

Lutar pela sua própria sobrevivência e a de seus filhos num contexto de abandono, superar dificuldades para conseguir uma profissão e estudo, alimentar sonhos e realizações em um mundo hostil ao nosso gênero são algumas das camadas que as mulheres descascam com real identificação. Mérito do espaço seguro que as diretoras, fotógrafas e produtoras de Falas Femininas constróem, o elenco do documentário (que é parte do Projeto Identidade, iniciado em novembro do ano passado com Falas Negras) é especial por refletir a realidade das mulheres brasileiras, diversas mas que conservam muitas similaridades.

Pensar sobre a situação presente é olhar para o passado e a relação entre as gerações também é importante quando se fala da mulher brasileira, e esse é um ponto que não escapa aos debates. É difícil falar sobre ser mulher sem falar de maternidade, sobre os vínculos de mãe e filha e sobre como as relações pessoais influenciam nossa existência no mundo. Ciente disso, as lentes de Falas Femininas, quando dentro das casas das participantes ou quando retratam a relação delas com suas filhas, encaminham as reflexões para um rumo que nos força a pensar nas violências de gênero que atingem até nossas mulheres mais novas. 

As filhas de algumas das depoentes do Especial aparecem ajudando com os afazeres domésticos e Taís relata a preocupação de sua mãe com as roupas que ela usava e com a forma como se portava, especialmente quando em frente às câmeras que depois a colocariam na TV de milhares de casas espalhadas pelo Brasil. Quando o debate se vira para as novas gerações que são de lugares diferentes do país, as coisas mudam um pouco e vislumbram um horizonte otimista. A mais nova das mulheres do documentário demonstra maior liberdade frente aos estereótipos de gênero e o debate sobre maternidade no Roda Viva pode ser resumido por uma fala de Taís Araújo: “estou criando meu filho para respeitar as mulheres e minha filha para ser livre”.

A existência feminina, no entanto, não é apenas ser mãe e Carol Dall é cirúrgica ao pontuar o porquê desse assunto ser tão intrínseco e compulsório para as mulheres quando é opcional aos homens. “A gente vive num país onde os pais vão embora e as mulheres ficam”, destaca a estudante, evidenciando que, para nós, sequer precisa ser mãe de fato para assumir esse posto. Basta ser mulher.

Cada aspecto da violência de gênero se manifesta até chegar na dimensão física e doméstica, revoltantemente um dos assuntos principais do dia em que pensamos sobre a condição da mulher na sociedade. Embalado pela artista que é um dos símbolos da luta contra violência doméstica no Brasil, Falas Femininas ecoa a voz de mulheres que mesmo enquanto jovens viram a violência doméstica de perto ou sentiram-na na pele.

Ainda sobre as dores, os debates permeiam a raiz de todas elas: a objetificação e a falta de respeito. A dor e os traumas surgiram tanto na voz trêmula das mulheres do especial da Globo quanto no olhar de Taís no centro da roda da TV Cultura. Reconhecer a si mesma como alguém desprovida de liberdade de decisão que é colocada numa posição de poder de outra pessoa é o que dói. Assim, as mulheres também reconhecem que o desprezo e o abandono doem. A falta de apoio, suporte e afeto dói. A impossibilidade de realizar os próprios sonhos e não ter como dividir os pesos dói.

A beleza de Falas Femininas foi simplesmente celebrar a nossa existência em um país que vê três de nós serem mortas por dia. O triunfo do jornalismo no Dia Internacional da Mulher foi colocar profissionais para debater questões sobre a nossa existência enquanto indivíduos conscientes e valorizados numa TV que já explorou ao máximo nossa imagem a partir da objetificação e sexualização.

E ao mesmo tempo em que assistir mulheres reais na televisão é reconfortante e que ouvir vozes sendo fortalecidas é motivo de celebração, é também desesperador por ser tão excepcional. Tudo se potencializa quando lembramos que mídia é poder e ocupar esse lugar surte efeitos poderosos, como bem pontuou Taís Araujo na entrevista: “O sentido da representatividade é você se sentir possível”.

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