Raquel Dutra
É sempre surpreendente como algo profundamente pessoal pode ressoar de maneira tão universal. Fenômeno que é objeto de estudos das ciências humanas é também matéria-prima da arte, especialmente na que surge das mentes e mãos de uma nova geração de documentaristas brasileiras. Depois de explorar esse aspecto em produções como Elena, agora eu falo de Êxtase, documentário que participa da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo marcando a estreia de Moara Passoni – também roteirista do anteriormente citado – na direção. A partir das vivências da própria com a anorexia, o filme estabelece uma narrativa que em nada compreende as estruturas clássicas do cinema para nos conectar com outras realidades e mostrar que, mesmo com as nossas individualidades, muitas das nossas angústias podem ser similares e mesmo com manifestações diferentes, podem carregar a mesma origem.
Êxtase é resultado de quase 10 anos de pesquisa, elaboração e execução de Passoni e muitas outras pessoas que se envolveram com a ideia pelo caminho, que foi longo devido a busca da diretora por uma forma de abordar no cinema a anorexia sob a perspectiva complexa de quem a sofre. Sem linguagens mecânicas e distantes e sem se desenvolver unicamente sobre a história da diretora, o documentário conta através de uma narrativa elíptica quase dez anos da vida de Clara, a personagem por meio da qual assistimos toda a história e compreendemos todo o conhecimento que o filme abriga sobre o distúrbio, oriundo de muitas outras mulheres que passaram pela doença e profissionais de saúde que se dedicam ao seu tratamento e estudo.
A personagem é filha de militantes que encaram um Brasil especialmente complicado, aquele do final da década de 80 que implorava com fervor o fim da ditadura e uma constituição comprometida com o povo e com a democracia. Assim borrando a linha tênue entre ficção e realidade, Êxtase tensiona seu primeiro limite rompendo com os preceitos que cercam um documentário ‘tradicional’. Ponto já levantado enquanto Democracia em Vertigem tomava as discussões da cena cultural nacional, o único compromisso aqui é com a sinceridade de quem produz a narrativa. E isso, assim como no nosso documentário indicado ao Oscar deste ano, é atenciosamente cumprido.
No furacão que o país era na época, a família de Clara encontrava segurança na coletividade, retratada no filme através da comunidade do Jardim Ângela, em São Paulo. No início da sua adolescência, sua mãe é eleita deputada federal e a família se muda para Brasília. O rompimento de laços profundos de infância somado às insegurança de uma vida completamente nova constituem os fatores que desencadeiam a anorexia da jovem, que busca “uma forma de sobreviver” e a encontra no controle intenso que exerce sobre seu próprio corpo através da (restrição da) alimentação.
Se lançando na profundidade do tema, a leitura que Êxtase fornece sobre o distúrbio vai além de suas dimensões físicas, mas aborda todos os dilemas existenciais e morais que acompanham muito além de “ser magra ou ser gorda”. Chega até ser difícil falar sobre o filme de tão abstratos que são seus caminhos, propositalmente construídos dessa forma para se assemelhar ao máximo possível da experiência da anorexia que Clara vivencia: de desmanchar tudo, abstraindo a materialidade do alimento, a dimensão concreta da vida e, por consequência, seu próprio corpo. “Ela não sentia o tempo nem as pessoas. Tudo o que ela sentia era êxtase” diz a frase que é quase um subtítulo do filme, explicando muito bem o que sua personagem buscava através da anorexia: a emancipação absoluta sobre sobre si mesma, ao ponto de não depender de ninguém, não da comida, nem da sua mente, nem de seu próprio corpo.
Ela encontra nos cálculos de calorias e na obsessão com o próprio corpo uma forma de ser definitivamente dona de si. Aos poucos, isso se desdobra para outros aspectos de sua existência, como a mente, os estudos, suas (poucas) ocupações e sua rotina. Nessa direção, Clara mergulha cada vez mais num narcisismo profundo, onde nada e nenhuma outra pessoa importa. Somos sufocados dentro da mente da personagem, que num contraste abissal com todo o resto de sua existência, soa desordenada, sensação construída por um roteiro rápido e extremamente pessoal. Esse texto ganha ainda mais força quando combinado com as cores apagadas e planos fechados da cinematografia de de Janice D’Ávila, concretizando um significado profundo numa narrativa protagonizada por quem sufoca todo e qualquer respiro de vida que seu corpo tenta manifestar.
Tanta subjetividade e a premissa de ausentar quaisquer julgamentos não faz com que Êxtase se esqueça da dimensão violenta e brutal da anorexia. As imagens desconfortáveis de corpos explicitamente doentes, a obsessão sufocante, todas as vezes em que a personagem é hospitalizada, todas as tentativas vãs de tratamento, o desespero de quando o próprio corpo ameaça sair do controle que é mantido com uma exaustiva disciplina. Nada aqui glamouriza aquela situação ou busca torná-la justificável. A intenção é exatamente o oposto: abrir as sensações mais profundas de quem passa pelo distúrbio para que o tabu acerca do tema seja superado e o conhecimento sobre ele seja mais próximo.
Esses objetivos são confirmados quando o filme começa a entregar sinais da cura de Clara que, chegando na faculdade de arquitetura (escolha ainda motivada pelo vício da personagem em formas, estruturas e números), encontra muitos cenários e sentimentos desconhecidos – e portanto, inesperados e ‘descontrolados’. É nesse contexto também que ela desperta para sua situação, depois de um insight que a personagem tem enquanto observa a cidade de Brasília, lá pelos cinquenta minutos, quando Moara Passoni mostra a que veio e transforma o texto do filme em algo absurdo, mudando completamente os ares da obra sem perder a linha da narrativa numa montagem impressionante de Fernando Epstein (que também assina o roteiro junto da diretora).
Nessa altura, enquanto nossos olhos percorrem uma Brasília macabra, fria e inóspita fotografada em preto e branco, as inquietudes de Clara transcendem a ficção relacionando-se perfeitamente com o termo que nomeia o documentário. Êxtase, do grego ékstasis, significa “sair fora de si”. É o que a personagem faz quando resiste ao buraco negro de sua própria solidão e enxerga sua situação de fora, dividindo conosco sentimentos que surpreendentemente podem se conciliar com muito do que nós, no aqui e no agora, sentimos.
E falando da solidão, se existe algo que Êxtase deixa claro em meio a tanta subjetividade é que o processo de cura nada tem a ver com o egoísmo que marca tanto a experiência da anorexia. A recuperação vem da conexão com o outro e da ligação com outros mundos e realidades, numa direção completamente contrária à da experiência solitária que boa parte dos distúrbios alimentares e psicológicos desenvolvem e da qual se alimentam. Curiosamente, dissolvendo mais sentidos pré-estabelecidos, dessa vez dentro de sua própria narrativa, nada mais imprevisível e difícil de controlar do que isso.
Simbolizando uma etapa de compreensão profunda da própria história de sua autora junto de muitas outras mulheres que também vivenciaram a anorexia e participaram do seu processo de elaboração, o documentário marca uma nova forma de olhar para questões tão pouco discutidas, profunda e erroneamente abordadas. Com todo seu poder transcendental, Êxtase faz jus ao seu próprio nome e trabalha para tornar as linhas tênues que dividem o interior do exterior, a verdade da ficção e o individual do coletivo um pouco menos definidas e impressionantemente próximas.