Vitor Evangelista
O conceito de virgindade é cultural, mas se tem uma coisa que o épico bíblico Eternos faz é deflorar o Marvel Studios. Recheado de barreiras quebradas, a aventura comandada pelas mãos de ouro de Chloé Zhao não apenas ruma as investidas do Universo Cinematográfico para longe do sanduíche dos Vingadores, como também vai de encontro a uma leitura muito mais interessante desses heróis em roupas de látex. Ainda por cima com mais de dez anos de histórias nas costas e a exaustão da fórmula pipoca das narrativas.
Sem qualquer aparição dos Heróis Mais Poderosos da Terra, o filme de 2021 apresenta uma visão acima dessas figuras. Partindo de uma introdução histórica e um bocado celestial, somos, então, colocados à frente dessas espécies de deuses, seres místicos, sábios e super poderosos, destinados a batalharem contra os Deviantes, monstros sanguinários. Mas, longe da avareza do Homem de Ferro ou do lado mesquinho de Steve Rogers, a Grande Família dos Eternos oferece uma visão menos unilateral das narrativas advindas dos quadrinhos.
Isso se reflete na perspectiva de sua genitora, a premiada e aclamada Chloé Zhao. Recém-vencedora de dois Oscars, incluindo o histórico troféu de Melhor Direção, em sua quarta produção na cadeira de chefona, Zhao mantém o olhar cuidadoso e por vezes documental que envelopa suas produções. Depois de sobreviver aos Estados Unidos do século XXI na Terra Nômade, ela decide migrar para um plano maior, tanto em espaço quanto em tempo.
O roteiro, assinado por ela ao lado de Patrick Burleigh, Ryan Firpo e Kaz Firpo, é despreocupado em se adequar ao molde ocidental dos três atos e da história de ascensão, queda e redenção. Bebendo de fontes orientais e do formato Kishotenketsu, construído em quatro “capítulos”, o texto imerge o espectador na história e foca, ao invés de conflitos e reviravoltas costumeiras, em uma experiência de contemplação e ambientação. Os Eternos não salvam o mundo em uma trama envolta em mistérios e traições, pelo contrário, para combinar com a longevidade que carregam no próprio nome, esses seres místicos e mágicos aprendem a viver com as mudanças das batalhas.
Quase uma história “sem conflitos”, não é estranho que a recepção do longa-metragem seja a menos positiva do MCU. O filme tem notas piores até que as de Thor: O Mundo Sombrio, Homem de Ferro 2 e Capitã Marvel, de longe os tomates podres do estúdio. Na verdade, a estranheza de Eternos faz parte do lado ímpar de sua construção de berço. Chegados à Terra há mais de 7 mil anos, esses personagens passaram, literalmente, por todos os eventos que moldaram a humanidade, da Mesopotâmia à Segunda Guerra Mundial. Sem a liberdade de intervir em favor do mundo dos homens, os Eternos assistem passivos às drásticas ações do tempo.
Chloé Zhao, rainha da imersão e da mundanidade, coloca o público no mesmo barco. Com quase duas horas e quarenta de duração, os acontecimentos do filme vão em zigue-zague (outra característica marcante da construção oriental da trama), indo e vindo no mundo, no calendário e na mente dessa galera que não envelhece. A complicação narrativa, que chega na “terceira parte” do filme, revisita o começo e oferece uma reviravolta mais simbólica do que palpável. Nós, como espectadores, podemos reavaliar a visão leviana de início, mas não há nada a ser feito.
Importante, e vital, reiterar o caráter de epopeia do filme, que se descola do que a Marvel acostumou seu público, de Homem de Ferro à Shang-Chi. Em Eternos, Thanos é uma baratinha, e o inseticida está em uma prateleira alta demais. Existem problemas maiores, existem preocupações melhores; o tempo passa, a eternidade não. Para vender bem esse peixe, era necessário uma grande química do elenco, escolhido sabiamente e respeitando a diversidade que uma história desse nível pede. A liderança cai no colo de Ajak (Salma Hayek), que ordena bem as emoções e o sentimento materno que a personagem emana.
Embora tenha menos tempo de tela que seu rebanho, a Eterna curandeira faz sua presença (e ausência) serem latentes e imprescindíveis para o andamento da trama. Ao seu lado, e depois de interpretar uma personagem classe C em Capitã Marvel, Gemma Chan retorna como Sersi, heroína benevolente e talvez a mais empática do grupo. Fosse Eternos um filme realizado dez anos atrás, é capaz que a figura de protagonismo fosse dada a uma Angelina Jolie da vida, mas a série de “primeiras vezes” da Marvel acaba por beneficiar a escalação caprichada de Chan, que tem carisma suficiente para contracenar com qualquer Vingador daqui para frente (por mais que a química com seus pares românticos deixe a desejar).
Na pele da primeira mulher asiática protagonista, a atriz não é a única a fazer história. Zhao é pioneira na direção, e após de Anna Bowen e Cate Shortland, se sagra a primeira mulher asiática a comandar o MCU no Cinema. Além disso, Eternos se envereda para outros cantos: primeira heroína e intérprete surda (a lendária Makkari de Lauren Ridlof), primeiro herói indiano (o astuto Kingo de Kumail Nanjiani) e coreano (o fofo mas bravo Gilgamesh de Don Lee), primeiro beijo entre dois homens e primeira cena de sexo (que deu o que falar, mas não entrega nada que a criançada que assiste os filmes do James Gunn não tenha ouvido antes).
Recebido com censura em países homofóbicos, Eternos se prostra como um avanço desejado e oportuno. Ninguém aguenta mais a jornada do herói, ou as mesmas sequências de ação super coreografadas. E, para quem ainda anseia ver o Homem-Aranha nas tramas juvenis ou o Thor fazendo piada de pinto, seus filmes ainda existem e continuarão existindo por um bom tempo. Olha só, mês que vem, o Doutor Octopus de Alfred Molina volta às telonas, pois o poder da nostalgia é uma das maiores fraquezas humanas, perdendo apenas para o pescoço.
Mas nem só de Sersi se faz Eternos. Dividindo uma parcela generosa da história, Ikaris (Richard Madden) vive à altura da lenda e faz o melhor cosplay de Superman que você vai ver no momento. Em tempos onde a presença de Henry Cavill no futuro da DC é incerta, Madden veste bem o manto do filho pródigo que coloca o propósito de nascença acima de qualquer consideração pessoal. Sua paixão por Sersi, avassaladora e integral para o encerramento de seus arcos, é transmitida com a leveza que Zhao emprega nas tomadas longas, iluminadas naturalmente com o pôr-do-sol e filmadas majoritariamente em locação.
Sequências de amor, seja ele o ato sexual ou um tocar de mãos ao anoitecer, são o singelo lembrete que heróis são pessoas, e pessoas transam. Melhor dizendo, pessoas vivem. Amam, brincam, lutam, ficam bravas e tem sonhos de loucura. Nas transes que justificam sua participação singela e diminuta em Eternos, a Thena de Angelina Jolie parece atuar mais como um pilar de admiração do que uma figura de ação equiparada a seus companheiros de equipe. Constantemente separada do grupo, sem contar suas interações riquíssimas com Gilgamesh (o hilário e subaproveitado Don Lee), Thena é a guerreira que Jolie se orgulha em dar vida.
Estrela da Hollywood da virada do século, é preciso reconhecer que sua Malévola é mais Marvelística que qualquer traço da Eterna loira que mantém um olhar distante, unindo dor e saudade e usa branco e amarelo na armadura. A cor dos uniformes lava a imagem colorida e quase pornograficamente cromatizada que o criador Jack Kirby desovou nos anos setenta. A visão de Zhao, pendendo para o marrom e o bege, não apenas apaga a Guernica da Marvel, como reflete que o Cinema de hoje tem uma predileção trivial que, para ser levado mais a sério, uma obra deve beber da sobriedade. Afinal, não existe nada mais infantil que um filme do Thor todo gozado de neon, não é Taika Waititi?
A maturidade de Eternos reivindica seu local de fala original, e dentro da visão banhada da diretora, o design de produção e os figurinos elevam o material, acenando para as páginas dos gibis mas mantendo certa classe. Quem se aproxima sem pudores da criancice, não à toa, é Sprite, que no Brasil teve seu nome traduzido para Duende. A jovem garota, interpretada com o sarcasmo lírico de Lia McHugh, é quem mais rememora as HQs, e tem em sua trama toques de Entrevista com o Vampiro, em uma discussão quase inédita da prisão do corpo humano.
Concomitante a Eternos, enquanto Titane choca com o horror corporal elevado à enésima potência, Sprite sente que vive em uma prisão que a separa gradativamente do amor e do afeto. Também recentemente, What We Do in the Shadows lidou com o tédio de se viver para sempre, e, depois do MCU pintar e bordar com o humor que não leva em conta a vida, o universo e tudo mais, é um alívio assistir os Eternos cansados de serem, bem, eternos. Claro que essas leituras pontuais extrapolam qualquer subtexto que o filme imprima originalmente, mas a discussão não é nova: a Arte pertence a quem a consome.
E se quem a consome tem a figura de um cantor pop britânico como o símbolo de atração sexual de uma geração inteira, é apenas uma feliz coincidência que Chloé Zhao pareça concordar com a afirmação. Fato é que Eternos não existe para agradar os aficionados pelo estalo de Tony Stark. Se isso é um detrimento ou uma qualidade, não cabe ao filme se preocupar, pois ele tem seus olhos em outro objetivo: o de ser sustentável por si só.
Para guiar o caminho e criar empatia com as criaturas, Eternos toca notas próximas de nós, ficcionalizando sobre eventos traumatizantes e que moldaram o mundo. Quando Phastos (o excepcional Bryan Tyree Henry) chora em meio a uma Hiroshima devastada pós-bomba atômica, o público sente a impotência ou, pelo menos, se importa em entender aquele lamurio. Para a mitologia que gasta tanto seus heróis ao ponto de reciclá-los em qualquer cenas pós-créditos ou menção honrosa possível, Eternos se sai bem ao não soar guloso ou procurar a saída mais simples.
O Universo Cinematográfico da Marvel acabou de abrir portas para o multiverso, enquanto assobia para os Mutantes e acaricia a ideia dos vampiros, e seria uma mão na roda se Zhao optasse por fazer chamada e ir colocando em sua arca cada uma dessas figuras míticas dos quadrinhos, mas que bom que ela não o faz. De suas obras anteriores, ela coleta elementos específicos e os adapta para o que a Marvel entende por Cinema. A sutileza de Songs My Brothers Taught Me (2015) é dobrada por cima de Makkari, a resiliência de Domando o Destino catapulta a experiência fílmica de Phastos, e a câmera na mão que flerta com o documental de Nomadland se reflete na poderosa e crescente jornada de Sersi.
Chloé Zhao entende onde estão e como quer chegar a seus objetivos, nem para que isso se curve a algumas máximas do entretenimento pipoca. O humor desregulado de Kumail Nanjiani opera em sintonia com a gozação de Druig (o extremamente atraente e altivo Barry Keoghan). O mesmo vale para a aparente virgindade de Dane Whitman (Kit Harington), que vai se desdobrando no gancho mais clássico da Marvel, o da herança eterna e da predileção pelo destino. A breve aparição de Kro (Bill Skarsgard) é necessária para que a função de vilão não sofra da difusão narrativa que Eternos toma como regra geral.
Afinal, deuses não tem oponentes à altura, senão eles próprios. Thena é uma ameaça, mas Angelina Jolie é grande demais para receber o tratamento básico da mulher superpoderosa que joga amarelinha entre o Céu e o Inferno. Richard Madden esconde bem as cartas na manga, e a tara pelo biblíco segue à letra uma narrativa de redenção e queda que pode muito bem ser servida daqui alguns anos, quando o mundo entender o papel de algo como Eternos na grande máquina que se tornou a experiência Marvel de fazer Cinema.