Estante do Persona – Abril de 2023

Imagem retangular de fundo verde. Do lado direito está o livro Rita Lee: uma autobiografia, ele tem capa laranja, com um RG da artista no centro e o nome Rita Lee em cima. Do lado esquerdo há três livros empilhados nas cores preto, vermelho e violeta, o texto Estante do Persona Abril de 2023 aparece nas lombadas.
Caminhando pela singularidade subversiva de uma das maiores artistas do Brasil, o Clube do Livro de Abril contemplou Rita Lee: uma autobiografia (Foto: Globo Livros/ Arte: Raíra Tiengo/ Texto de abertura: Jamily Rigonatto)

A edição do Clube do Livro de Abril marca o vigésimo encontro do grupo de leitores do Persona. Depois de caminharem por autores e, principalmente, autoras, que expandiram todos os limites das perspectivas, foi a vez de dar de cara com a marcante figura do rock brasileiro, Rita Lee, em Rita Lee: uma autobiografia. Falecida no dia 8 de Maio de 2023, a contemplação da obra da artista se formata em tons de saudosismo e admiração. 

Em pequenos relatos que caminham desde a infância até a vida adulta agitada, o texto encara a distinção das fases em períodos curtos, palavras estrangeiras e gírias paulistanas. Através da óptica completamente única, a autoria de cada termo quase grita Rita Lee. Direta e reta como sempre, seus afetos, vivências, tristezas e o que mais houver cantam em notas vibrantes e extremamente características. 

Além da voz da “padroeira da liberdade” – apelido pelo qual gostava de ser chamada –, o escrito conta com os pitacos do jornalista Guilherme Samora, representado pela aparição de um fantasma chamado Phantom. A figura aparece em determinados trechos para indicar algum detalhe ou data esquecidos pela artista, e contribui para aumentar a sensação de autenticidade dos capítulos. 

Publicada em 2016, a obra foi consagrada no mesmo ano com o título de Melhor Biografia do Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), a artista também foi lembrada por suas contribuições no universo musical durante a cerimônia. Em 2017, o livro apareceu entre os indicados da categoria de Melhor Biografia da estatueta oferecida pela Academia Brasileira de Letras (ABL), o Prêmio Jabuti

O relato é o primogênito da segunda autobiografia de Rita, intitulada Rita Lee: outra autobiografia. A caçula chegou ao mundo em Maio, pouco tempo depois da morte da autora, e carrega em 192 páginas memórias que contemplam os momentos da cantora com a descoberta do câncer de pulmão durante o período pandêmico. 

Mesmo se seu RG não estampasse a capa do livro, o escolhido do mês não poderia ter sua assinatura confundida com a de nenhuma outra literata. Marcado por originalidade e cheio de personalidade, o ato de ler e viver Rita Lee foi e sempre será um presente. Para homenagear as múltiplas sensações provocadas pela eterna Rainha, ficam nossas dicas literárias especialmente para os que têm cor de Tutti Frutti no Estante do Persona de Abril de 2023.

Livro do Mês

Capa do livro Rita Lee: uma autobiografia. O RG de Rita Lee esta centralizado em um fundo laranja. Na porção su´perior há o nome da artista em letras bastão verdes. Na porção inferior há o texto " uma autobiografias" em letras cursivas verdes.
A primeira autobiografia da artista foi um sucesso editorial quando lançada, com mais de 98 mil exemplares vendidos (Foto: Globo Livros)

Rita Lee – Rita Lee: uma autobiografia (296 páginas, Globo Livros)

No dia 8 de maio de 2023, noites alienígenas ganharam, para a eternidade, um disco voador meio biruta – com um quê de estrela do rock – para sua imensidão de UFOs e objetos luminosos estranhos. A escolha do Clube do Livro do Persona convergiu, numa coincidência que só poderia acontecer a essa figura, com a partida intergalática de Rita Lee, depois de uma luta vencida contra o câncer, relatada em outra autobiografia. O primeiro relato que a artista compõe de si mesma, afastando de si um tanto da personagem ‘‘ritalee’’ dos grandes palcos e telas para expor a intimidade de sua infância e dos bastidores de sua carreira musical, é um enquadramento mais explícito e retrospectivo de si mesma. Da infância na Vila Mariana – tecendo ao leitor uma experiência imersiva de uma São Paulo nos anos 1960 – à caminhada ao estrelato, Lee Jones é modesta com sua própria história, um espaço garantido no cânone de revolucionários e agitadores dos costumes. 

Pisando no terreno das escritas de si, Rita Lee, como sempre, deixa os panos caírem e inverte o jogo. Em Rita Lee: uma autobiografia, a centralidade de tudo é a sua própria história, onde o si tem mais importância e mais corpo que o valor literário de tudo, que também é imenso. O ímpeto cômico e ultrajado que atravessa sua música é, também, um registro de sua escrita. Em seu característico humor ácido, cheio de sacadas inteligentíssimas, a artista se estabelece como canhota por escolha, alienígena de nascença e ovelha negra tingida. Gauche na vida, a artista relata sua experiência andando contra os sentidos pré-estabelecidos; seja do mundo da música – hibridizando o rock estadunidense à bossa nova e ao psicodélico da tropicália – ou no papel instituído às mulheres nesse cenário, que, por sinal, toma o centro da narrativa em seu relato dos bastidores do término de sua trajetória com Os Mutantes. Uma Maria Mole de uma revolução feita aos berros e aos acordes de guitarra, Lee Jones foi transeunte entre estilos, ideias e gerações: entre Pagu e Gil, nunca houve uma revolução como a de Rita.


Dicas do Mês 

Capa do livro O Homem de Giz. O fundo da imagem é preto, e o título é escrito em branco, em letras de forma semelhante a giz. Abaixo do título há um desenho de giz de um homem palito enforcado. Na parte central inferior está o nome da autora em vermelho, também semelhante a giz. No canto inferior direito está o nome da editora.
Em O Homem de Giz, não dá para confiar em ninguém (Foto: Intrínseca)

C. J. Tudor – O Homem de Giz (334 páginas, Intrínseca)

Guiadas por desenhos de giz, quatro crianças encontram um corpo mutilado no bosque e suas vidas mudam para sempre. C. J. Tudor é um grande nome da literatura do gênero de mistério e O Homem de Giz é, com razão, um de seus títulos mais famosos. O primeiro livro da autora narra as dúvidas e as consequências que envolvem um assassinato que chocou a cidade de Anderbury. Ao longo da história, fica claro que qualquer pessoa guarda os seus segredos, alguns maiores e mais nocivos do que outros.

A trama é contada por Eddie Adams, um dos responsáveis por encontrar o corpo. Na sua narrativa, os fatos são contados em duas linhas temporais: uma em 1986 e outra em 2016. Esse é um recurso interessante capaz de prender a atenção do leitor até o final, além de explicitar como escolhas e acontecimentos do passado podem afetar o presente. Para quem é fã dos mistérios de Stephen King ou de Stranger Things, O Homem de Giz é uma ótima pedida. – Gabrielli Natividade


Capa do livro Assassinos da Lua das Flores. A capa, que é em um branco envelhecido, onde tem uma torre antiga de extração de petróleo, toda na cor vermelha ao fundo, um carro antigo de luxo, onde há um nativo americano homem dirigindo e uma nativa americana no banco de trás, na cor preta. Ao centro, em letra maiúscula preta, o título “ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES” e logo abaixo,em letras minúsculas pretas “Petróleo, morte e a criação do FBI”. Um pouco mais abaixo, em maiúsculas pretas,há o nome do autor “DAVID GRANN”. No canto superior esquerdo, também em letras pretas, está com aspas "PERTURBADOR E ENVOLVENTE” e logo abaixo “Dave Eggers, New York Times Book Review”. No canto superior direito, há a logo da editora, composta de uma moto e um sidecar, onde um homem, com roupas antigas de motoqueiro dirige, e um menino que está no sidecar, que é seguido abaixo por uma linha e o nome “COMPANHIA DAS LETRAS”, todos na cor preta
A aclamada obra literária se prepara também para se tornar uma aclamada obra cinematográfica (Foto: Companhia das Letras)

David Grann – Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a criação do FBI (392 páginas, Companhia das Letras)

O jornalista e redator da The New Yorker, David Grann, já tem uma certa lista de obras que são aclamadas e migraram para a Sétima Arte. Porém, uma de suas maiores joias estava intocada até 2023: Assassino da Lua das Flores. A obra é uma incursão sobre a primeira grande investigação do que seria o FBI: uma série de assassinatos em 1920 no condado de Osage, Oklahoma. Dois pontos deixam o mistério ainda mais interessante: Osage, na época, abrigava as pessoas com maior renda per capita do mundo, devido à descoberta de petróleo na região; e essas pessoas eram nativos americanos, pois o nome da região remete ao nome da etnia.

Grann consegue atribuir uma linguagem western para o livro, ao mesmo tempo que o desmistifica e 0 mescla com um livro-reportagem – fruto de muita pesquisa. Aqui, o big-bang não é frenético e aventuresco, mas sim friamente calculado e vil. Abusando do grafismo, o autor retira o filtro que a América colocou em seu processo de formação e escancara como o dinheiro e o capitalismo estadunidense corromperam seu próprio território. – Guilherme Veiga


Capa do livro Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha do autor Ruy Castro. Na imagem, o jogador de futebol aparece sentado no braço de uma cadeira de repouso. A câmera o captura por inteiro e com uma das mãos apoiada na cabeça. Há um filtro sobre a fotografia que a deixa em tons amarronzados em meio ao preto e branco. Na parte superior direita, o nome do autor “Ruy Castro” está escrito em tom marrom. Abaixo, segue o nome da obra “Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha” em tom branco e marrom. Na parte inferior direita, o logo da Companhia das Letras aparece em branco.
O livro ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Ensaio e Biografia em 1996 (Foto: Companhia das Letras)

Ruy Castro – Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha (536 páginas, Companhia das Letras)

Responsável por grandes contribuições ao jornalismo biográfico e literário, Ruy Castro reúne a mitologia e o drama particular que cercam o jogador de futebol Garrincha, uma das figuras mais idolatradas pelo Brasil durante a década de 60. Para realizar esse feito, o imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) cruzou informações de centenas de entrevistas que proporcionam uma imersão extremamente realista, capaz de unificar todos os cinco sentidos do leitor em uma única experiência.

Das vielas estreitas do município de Magé até os grandes palcos do esporte mundial, Castro segue os rastros deixados por um talento nato que, por ser fruto de um país historicamente quebrado, teve a sua própria tragédia pessoal. Através de sentenças que ecoam, Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha expõe o fato de que “anjo das pernas tortas” é um apelido digno apenas dentro das quatro linhas, uma vez que, fora delas, nada impediu o seu tormento e de quem esteve a sua volta. – Nathalia Tetzner


Um dos maiores sucessos editoriais de Marguerite Duras, Moderato Cantabile ganhou vida, em uma adaptação ao Cinema, pelas atuações de Jean-Paul Belmondo e Jeanne Moreau (Foto: Relicário)

Marguerite Duras – Moderato Cantabile (136 páginas, Relicário)

O arrebatamento. Talvez este seja um dos maiores temas que atravessam Moderato Cantabile, um dos primeiros romances da escritora e cineasta Marguerite Duras antes do roteiro de Hiroshima, Meu Amor e — seu ponto de virada ao cânone da literatura mundial — O Amante, publicado em 1980. Uma história de paixão, incomunicabilidade e pulsão, onde o ato máximo do amor é levado ao máximo das sensibilidades, liderando um texto que beira um thriller verborrágico. As tensões comumentes descritas por Duras, reflexiva sobre as relações de exterioridade e interioridade que compõe a complexidade do sentimento humano — numa seara mais radical que inspira, por exemplo, o método autobiográfico de Annie Ernaux —, anunciam, no romance até então esgotado no Brasil, a maior densidade psicológica que estruturam obras como A Dor

Por seus diálogos incessantes, construídos por personagens que parecem, em suas falas, mais falarem sozinhos que com si mesmos, desenvolve-se uma narrativa estranha. Em Moderato Cantabile, paira uma aura do erótico que precipita a sucumbir para a auto-destruição, personalizada pela paixão da personagem Anne Desbaresdes a um homem da classe trabalhadora, incitada por uma imagem específica: um assassinato em um café, do lado da sala de um prédio onde seu filho faz aulas de piano, ao som de navios em um porto. O que, inicialmente, é extremamente individual e psicológico efervesce enquanto um drama social, que alcança seu desenlace em um estridente final, como o de uma sinfonia nunca tocada certo; mas ainda sim, potencial em sua expressão. – Enzo Caramori


Capa do livro Cinderela está morta. No centro da imagem há uma mulher negra de cabelos crespos na altura dos ombros, ela veste um vestido de princesa azul. Ao fundo há uma floresta com árvores cheias de espinhos roxos. O título aparece em branco em cima da personagem. O nome da autora ocupa a porção inferior.
Em Cinderela está morta, o conto de fadas põe os pés na realidade (Foto: Galera)  

Kalynn Bayron – Cinderela está morta (294 páginas, Galera) 

Todos nós já ouvimos os clássicos dos contos de fadas e conhecemos as histórias de ponta-cabeça, são eles que ditam os famosos clichês e nada de novo pode surgir disso. Determinada a fazer essa afirmação se quebrar, Kalynn Bayron trouxe ao mundo Cinderela está morta. Criando um universo em que a Cinderela não só foi real, como é um parâmetro de comportamento para todas as mulheres, a autora nos apresenta à Sophia, uma protagonista cheia de representatividade e vontade de virar o jogo. 

Preparada para brigar pelas coisas nas quais acredita, a personagem levanta bandeiras e mostra que muitas vezes o tradicional é ultrapassado. De um jeito leve e encantador, o texto – traduzido por Karine Ribeiro e Érica Imenes – encara as faces do machismo em uma narrativa mais brilhante que um sapatinho de cristal. Estabelecendo a juventude como uma arma engatilhada contra a opressão, Cinderela está morta borda a subversão nos detalhes de um vestido azul. – Jamily Rigonatto 


Lançado na França em 2020, Ioga chegou ao Brasil em Fevereiro de 2023 sob tradução de Mariana Delfini (Foto: Alfagura)

Emmanuel Carrère – Ioga (272 páginas, Alfaguara)

Em vários trechos de Ioga, a mais recente obra publicada por Emmanuel Carrère, há a explanação, principalmente no primeiro capítulo, de seu desejo antigo de fazer “um livrinho simpático e perspicaz” sobre o ioga. Embora a primeira parte pareça realmente seguir essa receita, mesmo que alguns trechos viagem pelo interior do escritor-narrador, não demora para percebermos que o projeto precisou ser abortado. Isso porque, entre o final de 2014 e início de 2015, quando o escritor francês partiu para um retiro de meditação vipassana, um de seus amigos foi assassinado no trabalho – no escritório da revista Charlie Hebdo, em Paris –, interrompendo seu percurso espiritual. Soma-se a isso seu processo de divórcio e a morte de seu, até então, único editor literário, que ajudam Carrère a transformar o ioga em uma grande metáfora de suas próprias mudanças.

Ainda assim, a obra híbrida de ficção e não ficção – como outros trabalhos do autor – não deixa de ser uma descida ao inferno. Principalmente na parte dois, denominada 1825 dias, Carrère fala abertamente sobre sua depressão melancólica, quando precisou ser internado por quatro meses em um hospital psiquiátrico. De forma pessoal e reflexiva, Ioga não deixa de ser um trabalho de contemplação sobre o corpo e a mente, confrontados pelos medos e inseguranças de Emmanuel Carrère. Nas entrelinhas, trata-se de um livro que investiga o possível equilíbrio em um mundo agitado, frenético e francamente caótico. Longe de ser seu melhor trabalho, Ioga compartilha o modus operandi típico do escritor: mistura de reportagem, texto autobiográfico, pesquisa histórica e prospecções filosóficas, ligados pela linha condutora de uma escrita brilhante. – Bruno Andrade

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