A cinematografia nos conecta em Umma

Produzido por Sam Raimi, o filme está disponível no catálogo do HBO Max e foi recebido por críticas negativas e baixas avaliações (Foto: Stage 6 Films)

Victoria Silveira

Amanda (Sandra Oh) e Chris (Fivel Stewart) são mãe e filha em Umma. As duas vivem reclusas em uma propriedade sem energia elétrica e acesso a aparelhos eletrônicos , dedicando-se à produção de mel vendido com o nome de Chrissy’s Honey Bees. Por um lado, Amanda abdica da estabilidade profissional como contadora para cuidar da filha e assumir papel de educadora, além de administrar a pequena empresa; por outro, é dominada por traumas passados e sobe fortalezas físicas e emocionais – das quais Chris não é só parte integrante, mas a principal – contra o mundo. 

A matriarca é filha de sul-coreanos que migraram para os Estados Unidos. Sendo de primeira geração, o desejo de pertencer a faz querer cultivar uma vida digna e trabalhadora, porém, ao mesmo tempo, lhe causa medo e apreensão  – principalmente no que diz respeito a se desconectar culturalmente e perder valores tradicionais e ritualísticos. Já Chris, de segunda geração, trabalha com a mãe e, apesar de ter ensino básico, nunca teve perspectivas de cursar ensino superior. Somado a isso está o receio de se tornar a própria mãe (ou umma, em coreano). 

As lembranças que Amanda têm de sua infância com sua própria Umma (MeeWha Alana Lee) são ruins e perturbadoras. O futuro de Chris, então, a preocupa por dois motivos: primeiro, por representar o afastamento de tudo que ela lutou para construir no país acolhedor; segundo, e principal, por significar seu fracasso em conseguir ser uma mãe diferente de Umma. Para ela, uma mãe que ama, cuida e cria um lar não deve ser abandonada. Intrinsecamente, isto a torna super-protetora e obsessiva, privando a filha de tomar suas próprias decisões. Para Chris, as ideias de honra e orgulho no trabalho e na família são limitadoras, impedindo-a até mesmo de imaginar uma vida diferente. Tais ideias são postas à prova quando a menina recebe em mãos a ficha de inscrição para a universidade.

Internautas compararam Umma a Red: Crescer é uma Fera, animação da Disney que trata de relação entre mãe e filha e foi lançado no mesmo ano (Foto: Stage 6 Films)

Este é o pontapé inicial de Umma (2022), dirigido por Iris K. Shim. O desencadeamento da dúvida, em vista das possibilidades de abandono e de um futuro melhor, leva Chris a uma crise de valores. Entende-se, portanto, que o longa-metragem se vale da narrativa para discutir questões principais: herança cultural, traumas em família, maternidade doentia e o futuro para filhos de migrantes.

Por meio de camadas de terror e drama, o público é apresentado a uma realidade inevitável na qual tradições batem de frente com as novas ideias, irrompendo conflitos geracionais. Ademais, o filme é do subgênero Sobrenatural, podendo ser reconhecido como uma ghost-story ao tratar de entidades fantasmagóricas e ritos de passagem.

A apicultura consiste na criação de abelhas e no recolhimento do mel produzido, sendo mais comumente realizada em propriedades rurais, como em Umma (Foto: Stage 6 Films)

A história do filme se desenrola com o repentino sucesso da empresa depois de viralizar na internet  – informação repassada às meninas por Danny (Dermot Mulroney), revendedor do mel e amigo. Na mesma época, Amanda recebe a visita de um tio distante, Mr. Kang (Tom Yi). Ele traz a notícia da morte de Umma e lhe entrega uma mala, que contém a urna funerária e objetos de cortejo.

O tio reitera as expectativas que Umma tinha com relação à manutenção da cultura coreana na futura família de Amanda e pontua a importância dos rituais pós-morte. Estes são cerimônias de passagem e homenagem; Amanda, certa vez, explicou a Chris: “Alguns coreanos acreditam que as dificuldades da vida são causadas por espíritos atormentados de seus ancestrais. Então, eles fazem ofertas para acalmar suas almas torturadas”.

O longa-metragem americano conta com elenco majoritário de origem asiática, envolvendo nomes de peso e artistas em ascensão (Foto: Stage 6 Films)

A mala aterroriza Amanda, trazendo traumas e aspirações fracassadas à tona. A ideia de continuar a tradição e a cultura coreana compulsivamente envenena sua mente; os casos de tortura e violência que viveu com Umma na infância são retomados em sonhos acordados, como uma verdadeira assombração fantasmagórica. Os objetos na mala — uma tal (máscara que era usada por mulheres de diferentes gerações) e uma caixa de Música — também eram usados para tortura.

Este clima de assombração não depende somente do enredo. Para além, os elementos cinematográficos, como uma espécie de ponte, conectam o público ao mundo interior dos personagens. Desta forma, são essenciais para o ambiente e a sensação de assombração, destacando-se em certas cenas. Tanto conteúdos imagéticos quanto sonoros são incrementados por esses elementos, havendo diferença apenas nas profundidades e praticidades em cada caso. Ainda assim, de forma unânime, a inadequação, a curiosidade e a desconfiança são passadas aos espectadores através deles.

O filme discute o trabalho infantil e as perspectivas de ensino superior para filhos de migrantes (Foto: Stage 6 Films)

Enfoque e enquadramento

Na cena em que Chris está de bicicleta indo comprar equipamentos na loja de Danny para expandir a apicultura, ela é parada na mão-dupla por um carro dirigido por um coreano (posteriormente entendido como o tio) que, aparentemente, não fala inglês. Enquanto procura entender o homem, a menina nota uma curiosa mala no banco do passageiro.

Uma amarração na alça chama sua atenção e esta é a última coisa que consegue ver antes do carro seguir viagem subitamente. Nota-se que o enfoque dramático, marcado pelo enquadramento lento e criterioso, do elemento o torna um objeto de interesse para o espectador. E, então, também para a história que se segue.

Este é um recurso da Fotografia cuja intenção é premeditada. Perguntas como “quem é ele?”, “o que pretende?” e “o que há na mala?” são propositadamente colocadas aos espectadores. Assim, a câmera aponta uma incerteza a ser desvendada por Chris, que será importante no decorrer da trama. Para além, a própria simbologia da mala, como um objeto cerrado e que carrega algo misterioso, corrobora com o suspense proposto.

O recurso do enfoque dramático depende de longa duração e muitas vezes de plano ponto de vista, além de acompanhar silêncio ou Música de tensão (GIF: Stage 6 Films)

Desfoque

Na cena um pouco mais adiante, Mr. Kang está na casa conversando com Amanda sobre sua vida isolada e a perda de conexão com Umma. Ele diz, em coreano: “Sua mãe está morta. Ela morreu alguns meses atrás. Eu teria vindo antes, mas te achar é quase impossível. (…) Em seu último suspiro, ela [Umma] tentou te alcançar. Como se você estivesse ao lado dela”.

Neste momento da fala, atrás do tio, a figura de Umma aparece desfocada estendendo o braço a Amanda (que agora via o tio como a câmera mostrava, como se esta fosse seus olhos e se confundisse imageticamente com sua mente, em recordação e/ou assombração). Aqui existe uma liberdade da Fotografia adotada por Shim e Matt Flannery que transmite os sentimentos da forma mais íntegra, através da captura do olhar e, logo em seguida, da expressão facial correspondente .

Em Umma, o desfoque estabelece uma conversa entre o mundo real e o onírico, ainda mais quando ressaltado por falas sugestivas (GIF: Stage 6 Films)

Depois, em uníssono com Umma, Mr. Kang repete: “Soo-Hyun, é você?. E continua: “Foi assim que ela te chamou. (…) Os médicos disseram que ela teve um ataque de coração, mas eu sei que foi por sua culpa que ela se foi. Que tipo de filha abandona a própria mãe?.

Amanda responde, em coreano: “E quanto a mim? Quem estava lá para cuidar de mim?. Mr. Kang, então: “É a criança que deve obrigação aos pais, tanto na vida quanto na eternidade que a segue. (…) E agora ela está presa neste mundo como uma gwishin [aparições fantasmagóricas de mortos do folclore coreano]. A raiva de sua mãe vai crescer e crescer enquanto ela estiver nesta mala. Por isto você deve…. Amanda o interrompe rapidamente, mandando-o sair da casa (dessa vez em inglês). O tio sai, dizendo: “Todos os dias a dor dela será veneno para você. Sua mãe sempre consegue o que quer. Você sabe o que ela é capaz de fazer.

Nesta ghost-story, o chiaroscuro é um recurso de assombração, causando desconforto e propensão ao susto (GIF: Stage 6 Films)

Luz e sombra (chiaroscuro)

Nos momentos iniciais do filme, antes mesmo da chegada do tio, Amanda dorme inquietamente por conta da chuva forte e trovoadas. As descargas elétricas a fazem relembrar as torturas que sofreu nas mãos de Umma quando criança. Na cama, Amanda abre os olhos e vê, na escuridão quase completa —  com exceção da luz da noite que transpassa a cortina branca do quarto  — , os contornos de Umma, como se estivesse sentada em uma cadeira, encarando Amanda de frente.

Um trovão torna o quarto claro por alguns segundos, acompanhado de um barulho ensurdecedor e da revelação de que não há ninguém na cadeira no quarto de Amanda. O trabalho da Fotografia aqui é se valer do plano ponto de vista (a câmera como os olhos e mente da personagem) para revelar o terror aparente que a ghost-story, até então, pretende só levemente introduzir.

Neste momento do filme, não há grandes contextos e contornos da trama, além da insinuação de um certo trauma de infância e de razões sombrias acerca da adoção da vida sem eletricidade. Então, nesta cena, a presença de uma figura na penumbra, ainda desconhecida ou não propriamente identificada para o espectador, cumpre papel de apresentar o horror antes mesmo da dramaticidade realmente tomar conta ou poder justificar qualquer absurdo, como premonição ou trovoada antes de chuva.

A luz pontual é uma técnica de iluminação cênica que promove suspense, completamente adequada para causar a sensação de terror (GIF: Stage 6 Films)

Outra cena notável se dá já com a presença da mala na casa. Amanda acorda uma noite depois de ouvir a voz de Chris a chamando de longe, gritando e chorando: “Mamãe, me ajude!. Ela, então, agarra um lampião e vai para o quintal atrás da gwishin.

Neste momento da narrativa, a assombração já possui contornos contextuais e, assim, estava sendo reiterada. A iluminação, na escuridão da noite, é inteiramente carregada pelo lampião. Sua aproximação do rosto de Amanda revela expressões de medo e raiva; o afastamento, provoca uma falta de noção dos espaços tanto para a personagem quanto para o público.

Ouve-se a voz de Umma dizendo “Soo-Hyun, é você?”. Distanciando a luz, Amanda vê, ainda que sem total claridade, o rosto mascarado no escuro. Ao redirecionar a luz, Umma é perdida de vista. Novamente, a ação é acompanhada por uma música repentina e curta, demarcando o susto junto do desandar da respiração da personagem.

A expressão facial séria que Sandra Oh entrega à personagem reforça a dramaticidade da cena e instiga os espectadores (GIF: Stage 6 Films)

Há mais uma cena noturna, mas dessa vez sem perseguições. Sentada ao lado da cama de Chris, Amanda confessa à filha suas razões para não ter falado de Umma antes: “Não queria que você a conhecesse. Meu pai disse que ela era tão radiante e divertida quando eles se casaram, na Coreia. Então, eles vieram para os Estados Unidos. (…) Depois que ele foi embora, eu era tudo que ela tinha. Tive que fazer tudo. Tive de aguentar tudo. Toda a raiva dela. Toda a maldade.

Durante o monólogo, somente o rosto de Amanda está iluminado. Isto relembra o espectador da tal, a máscara de Umma. Desta forma, brincando com o chiaroscuro, a Fotografia torna mãe e filha a mesma pessoa, enquanto a fala reitera a distância entre elas e a promessa feita. Novamente, Shim brinca com as ideias de aproximação e afastamento.

No filme, a eletricidade é um tópico sensível, uma vez que é diretamente ligado às torturas que Umma realizava com Amanda quando criança (GIF: Stage 6 Films)

Sons súbitos

Ainda nos momentos iniciais do filme (antes da chegada do tio), uma chuva violenta assusta Amanda. Ela se levanta da cama e chora junto das trovoadas. Chris a encontra, com o auxílio de uma vela. Esse momento vem acompanhado com os traumas de Amanda. Ouve-se sons súbitos que remetem à eletricidade, intercalados aos das trovejadas.

Para o espectador, as torturas de Umma são introduzidas por flashbacks. Estes são tanto imagéticos  – como trechos de Amanda pequena chorando presa em um armário ou das violências físicas com fios elétricos e cabos de extensão  –  quanto sonoros  – como a repetição de diálogos passados entre Amanda e Umma, marcados por choros e gritarias abafadas e de memória.

Os flashbacks são, também, acompanhados por momentos em que a mãe vaga sozinha na casa ou pela propriedade, com fenômenos sonoros notáveis – assinados pelo sound designer Marti D. Humphrey – e Fotografia minuciosa. Nesses momentos, a aparente insegurança da personagem incita desconfiança dos espectadores, que esperam pelo pior em constante estado de alerta. Isto configura uma boa ghost-story.

A miserabilidade do estado mental de Amanda é completamente explorada pelos sons e como estes a afetam, sendo essencial para causar desconforto nos espectadores (GIF: Stage 6 Films)

Sons contínuos e repetitivos

Pensando em sons contínuos e repetitivos, uma cena específica chama atenção: cena em que fortes tecladas na máquina de escrever (por Chris) e marteladas em caixas para colmeias (por Amanda) se intercalam. Como são súbitas tecladas e marteladas, o susto é instigado e a incerteza da repetição é posta ao público. Vale ressaltar que, um pouco antes dessa cena, se dá uma importante conversa entre Danny e Amanda. 

Entende-se que esses sons são representações do processo de abandono e afastamento  – inscrição para a universidade  –  e da vontade de permanência/aproximação  – construção de mais uma colméia para a pequena empresa. Assim, o recurso da analogia imagética e até mesmo sonora é muito utilizado por Shim em Umma, tornando-se uma característica intrínseca de sucesso com a cinematografia, realizada por Flannery.

O uso de sons para efeitos especiais é fundamental no filme e foi supervisionado por Marti D. Humphrey e Rob Marshall (GIF: Stage 6 Films)

Deturpação imagética

A deturpação imagética é essencial numa história de fantasmas, uma vez que conecta o mundo interior das personagens com a realidade do que se vê. A cena exemplificada mostra o momento em que, ao abrir a mala pela primeira vez, Amanda vê a boca da máscara de Umma sugar o ar. Fora do contexto de assombração seria impossível, mas é por ser um caso de externalização do estado mental aterrorizado.

Isto é, aquilo que se sente passa a ser aliado do que se vê. Sabe-se que é uma deturpação, que Umma não está realmente ali, mas o susto e o sentimento da presença é eternizado pela imagem. Esta e outras formas de assustar com o visual, quando corretamente realizadas, são capazes de tornar um filme de terror qualquer em uma produção espetacular.

O dutch angle é uma técnica de câmera primeiro usada pelos expressionistas alemães na década de 1920, então não é realmente holandesa ou dutch (GIF: Stage 6 Films)

Inclinação de câmera (dutch angle)

Como se dá em outros momentos do filme, a inclinação da câmera, de forma lenta e até mesmo macabra, é usada como artifício do terror e do drama. O chamado dutch angle acentua a assombração numa ghost-story, já que a mudança de eixo e a dissonância visual causam desconforto, perturbação e apontam uma suposta irregularidade no ambiente.

A cena acima é um exemplo disso. Neste momento da história, a casa é assombrada pela chegada da mala. Isso é demonstrado ao público, primeiramente, pela inclinação da câmera; depois, pelo enfoque no rosto assustado de Amanda. Afinal, o movimento de câmera se alia à atuação para instigar dramaticidade, que consolidam Umma no gênero das ghost-stories: “Por si só, o movimento da câmera é inútil. Mas quando você o combina com a atuação dos atores e todas as informações que você já deu ao público, pode ser muito poderoso. (…) O movimento da câmera é como pontuação na escrita (…). A frase faz a maior parte do trabalho, mas a pontuação ajuda a guiá-la na direção certa”, segundo Simon Cade, criador do canal DSLRguide.

Quando perguntada em entrevista para o The Beat, Iris K. Shim afirmou ter se envolvido na escrita para o filme sabendo que seria algo pessoal, buscando pôr em questão sua própria identidade como filha de migrantes. As raízes coreanas, principalmente no que diz respeito às tradições e rituais, passaram despercebidas por ela durante muitos anos – e este é o caso de Chris. Assim, a conversação com as próprias matizes do Terror é outra forma de voltar-se às origens e se conectar.

Não é por pouco, então, que a cinematografia de Umma foi recheada de pequenas homenagens ao cânone. A deturpação imagética, por exemplo, é chave para quase todos os filmes que tratam do horror; o enfoque, por sua vez, é essencial para a criação da subjetividade e vulnerabilidade das personagens. Afinal, a volta ao tradicional também é passível de inovação – e é isso que Matt Flannery e Marti D. Humphrey fazem aqui, respectivamente, através da Fotografia e Som.

No final das contas, a cinematografia de Umma é excelente justamente por valer-se de todas as estratégias usadas em filmes de terror. Isto é, o som e a imagem são exacerbados e assustam tanto quanto a história retratada. Embora boa parte do público tenha enxergado esse excesso como algo ruim ou muito canônico, na verdade, não passa de uma homenagem ao gênero e às suas diversas formas de confecção.

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