Vitória Silva
O caminho das cinebiografias é um tanto arriscado de se explorar. Eleger uma personalidade para ser a peça central de uma narrativa requer pensar em detalhes minuciosos, em um recorte que vá além de sua brilhante carreira em vida. Vemos isso acontecer em títulos mais recentes, como Bohemian Rhapsody, que conduz a história do Queen sob a perspectiva do grandioso Freddie Mercury, e em Rocketman, que se centra na ascensão e vícios de Elton John. Essa escolha precisa é algo que Estados Unidos Vs Billie Holiday não foi capaz de realizar.
A obra de Lee Daniels, que também dirigiu o tocante Preciosa – Uma História de Esperança, se propõe a narrar o acontecimento em que Billie Holiday (Andra Day) foi investigada pelo FBI. O fato se deu por a cantora de jazz insistir em performar a sua música Strange Fruit, que era um protesto contra o linchamento de pessoas negras no país, algo muito comum e aceito nos estados sulistas na época. Como argumento para silenciar e diminuir a força de Billie na causa racial, o Departamento Federal de Narcóticos passou a tê-la como alvo de uma investigação, já que ela era usuária de heroína.
Mas apesar do título endossar por completo essa proposta narrativa, o resultado final do filme passa longe dela. A vida de Billie Holiday já era conturbada por si só. Além do conflito com o governo e sua dependência química, a artista carregava uma trajetória de vida acompanhada por episódios de violência sexual desde a infância e uma série de relacionamentos abusivos. Tentar comprimir toda a carga de sua história em um longa-metragem é um desafio e tanto, e Daniels acabou abrindo todas essas portas e distribuindo em uma trama caótica e desconcertada.
Estados Unidos Vs Billie Holiday tem seu início construído em torno da polêmica canção de Lady Day (como a cantora também era chamada), inclusive mostrando o sucesso dos agentes federais em prendê-la por um ano e um dia. No entanto, sem ter um eixo narrativo definido, a obra se dissolve e se perde pelos vários aspectos e problemas da vida da artista. E, por escolher diferentes histórias para serem trabalhadas, acaba, de fato, não aprofundando nenhuma delas.
O diretor seleciona momentos aleatórios e desconexos da vida de Billie, e tenta ao máximo remendá-los de alguma forma. Com isso, elege como um dos fios condutores o suposto romance da cantora com Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes), o agente designado para se infiltrar em seu círculo social e conseguir incriminá-la, mas que acaba se apaixonando por ela. Um belo desperdício de escolha, como se a vida de Holiday não tivesse material interessante o suficiente para ser desenvolvido.
Na coleção de possibilidades desperdiçadas se somam várias: a cena quase cômica do funeral do cachorro de Billie, a breve performance de Natasha Lyonne como Tallulah Bankhead, e por aí vai. As milhares de discussões que poderiam ser trabalhadas em torno da questão racial e da guerra às drogas são jogadas ao vento, sendo aspectos mínimos em cenas carregadas de doses dramáticas. Lee Daniels luta a todo custo para abraçar a trajetória de vida completa da cantora, e se esquece de explorar as nuances da própria personagem e dos outros que estão ao seu redor.
Entre as decisões não feitas, o filme também não possui nenhum recorte temporal definido, e se estende por anos da vida de Lady Day, até o seu falecimento. A narrativa dá diversos saltos temporais, rodopia e vai e volta para o mesmo lugar, com uma linha do tempo definida apenas na cabeça de quem a escreveu. A entrevista que dá o pontapé inicial em Estados Unidos Vs Billie Holiday é retomada várias vezes como uma espécie de gancho narrativo, mas sem ser localizada num espaço de tempo e fazer sentido algum na trama. Tudo é cansativo e arrastado, durante os seus longos e infinitos 130 minutos de duração.
Mas, no fim do túnel, há uma luz, e ela se chama Andra Day. Em seu papel de estreia nas telonas, a já conhecida cantora carrega o protagonismo com facilidade. Sua performance se sintoniza por completo com a potente personalidade de Billie Holiday, desde a rouquidão na voz até a sua presença e atitude nos palcos. Mesmo com profundidade e motivações pouco trabalhadas, sua entrega é o que nos mantém atraídos até a última cena.
E todo o seu talento demonstrado já foi devidamente reconhecido, com sua vitória por Melhor Atriz em Filme Dramático no Globo de Ouro, e por também ter sido indicada ao Oscar 2021. Mas a corrida entre as atrizes para o prêmio mais importante do cinema não poderia estar mais disputada. Além da grandiosidade dos nomes concorrentes, a temporada de premiações tem distribuído suas estatuetas: Viola Davis levou o SAG, Carey Mulligan se consagrou no Critics Choice, e Frances McDormand no BAFTA. O mistério sobre quem irá atravessar a linha de chegada falta pouco para ser revelado.
Em uma edição tão reconhecida pela diversidade em suas indicações, especialmente com filmes com fortes temáticas raciais, como Judas e o Messias Negro e Uma Noite em Miami…, não seria mais que especial coroar Andra em uma das categorias principais da noite. Não só para fazer reconhecer seu trabalho em carregar todo o peso de uma obra nas costas, mas também para rememorar uma história apagada, de uma das maiores cantoras de jazz dos Estados Unidos, e que foi uma figura importante na luta pelos direitos civis da comunidade negra.
Estados Unidos Vs Billie Holiday é um filme que se constrói pela força de sua protagonista, trajetória semelhante a de Renée Zellweger em Judy: Muito Além do Arco-Íris, que, inclusive, a destinou ao Oscar de Melhor Atriz no ano passado. A obra de Lee Daniels é um tanto corajosa, por seguir caminhos arriscados e até experimentais, mas que, infelizmente, não funcionam. A sua beleza se dá mesmo na grandiosidade de Andra Day. Que sua trajetória no Cinema esteja apenas começando.