Vitória Silva
Não é de hoje que histórias sobre relações familiares costumam dar as caras na temporada de premiações da indústria cinematográfica. Em anos anteriores, filmes como Lady Bird e Boyhood figuraram entre os vencedores e indicados em diversas categorias. Essa tendência já é esperada especialmente pela cerimônia da Academia, com o conhecido Oscar Bait, que configura obras com padrões historicamente amigáveis pela premiação.
A cota de drama familiar desse ano ficou nas mãos de Era uma vez um sonho. Ambientada na região dos Apalaches nos Estados Unidos, a narrativa acompanha o estudante de Direito James David Vance (Gabriel Basso), que é obrigado a reviver o passado traumático de sua família ao ter que retornar para a sua cidade natal após sua mãe, Bev (Amy Adams), ter uma overdose.
A péssima tradução do título original, Hillbilly Elegy, se justifica pelo fato da família de J. D. ter se mudado do estado de Kentucky para Ohio em busca de melhores condições de vida, o tal do sonho americano. Entre flashbacks de memórias de sua infância e adolescência, o protagonista relembra o comportamento conturbado de sua mãe, mostrando o início da dependência química dela e a forma como descontava todos os seus problemas nele e em sua irmã, Lindsay (Haley Bennett).
Dirigido por Ron Howard, o filme se centra em uma narrativa de hereditariedade dos traumas. Bev possui todos os seus transtornos pessoais e psicológicos muito em razão por conta da criação dada por seus pais, interpretados por Glenn Close e Bo Hopkins, problemática e turbulenta na mesma medida. E seus filhos parecem seguir essa tendência até certo momento de seu crescimento, mas conseguem reverter o processo. Assim, Lindsay se torna uma mãe mais presente na vida de seus próprios filhos, e J.D. conquista uma vaga em uma das universidades mais renomadas dos EUA.
Era uma vez um sonho é um filme ótimo vendido como um drama familiar, típico de Sessão da Tarde. Mas é muito maior do que isso. A produção se baseia no livro de mesmo título que o original, escrito pelo J. D. Vance da vida real. Na obra biográfica, o autor também conta a história sobre sua família e trajetória pessoal, mas com pontos críticos cruciais e questionáveis, e que foram totalmente encobertos na adaptação cinematográfica.
Vance discorre sobre as condições precárias da região em que viviam, vestido em um discurso generalista e meritocrático, que culpabiliza os próprios moradores por se manterem na pobreza e miséria. Hillbilly Elegy é polêmico e fruto de diversas análises, que inclusive o utilizam como explicação para a ascensão do trumpismo nos Estados Unidos e a vitória do republicano em 2016, por mostrar a visão de uma parcela da sociedade que se sentia abandonada pelo governo nos últimos anos.
E o diretor Ron Howard traz apenas a casca de todos esses problemas profundos para o resultado final de sua obra. As deficiências do sistema social e de saúde são razoavelmente citadas em algumas cenas, como se fossem detalhes de consequências mínimas. Nada disso importa em sua narrativa, já que Vance conseguiu superar os problemas sozinho, se dedicou aos estudos mesmo com sua família desestruturada e com a falta de apoio governamental. Ele fez por merecer. Muito simples, não é mesmo?
A superficialidade de Era uma vez um sonho não para por aí. Além de temáticas covardemente deixadas de escanteio, a produção não se aprofunda nas figuras centrais que o próprio diretor elege. Amy e Glenn são vendidas como as grandes protagonistas, mas não chegam perto disso. Além do filme girar em torno de outros personagens, não conseguimos ter nenhuma afeição por elas, nem entender suas motivações ou a profundidade de suas relações. Ambas são reduzidas totalmente ao estereótipo de caipira, e assistimos um show de horrores fantasiado de sotaques fortes e gritos histéricos.
Aliás, não é possível se sensibilizar pela trajetória do próprio protagonista. Vance tenta de maneira falha ser vendido como o grande herói em Era uma vez um sonho. Ele foi o único filho a dar continuidade aos estudos, trabalha em três empregos para conseguir arcar com as despesas da faculdade, e é o único capaz de salvar a sua mãe, mas nem é preciso conhecer o verdadeiro J. D. para não engolir essa história a seco. Ele ainda parece honrar suas raízes a qualquer custo, no entanto a própria trama não faz jus a essa postura ao desumanizar os moradores dos Apalaches, oferecendo o mesmo retrato preconceituoso da visão dos advogados presentes na mesa de jantar ao início do filme.
Ron Howard poderia ter originado uma produção de forte teor político, que daria embasamento para entender a crise política nos EUA, além de promover discussões sobre a responsabilidade do Estado. Mas preferiu se manter num melodrama batido, que usa flashbacks como muleta para conseguir conduzir a sua narrativa, que, por sua vez, não leva nada a lugar nenhum. Além de, é claro, ser condescendente com o discurso e história de um dos grandes apoiadores de Donald Trump.
Em meio a toda essa catástrofe, é até surpreendente que Era uma vez um sonho não tenha sido mais bem recepcionado pelo Oscar, cerimônia que deu o seu prêmio mais importante para o problemático Green Book em 2019. Após ser justamente esmagado pela crítica, o filme recebeu só duas indicações, que já é muito mais do que o necessário. Melhor Atriz Coadjuvante para Glenn Close, mais pelo nome que carrega do que pelo papel que executa; e Melhor Cabelo e Maquiagem, pela caracterização bem feita dos personagens, e a única com chances reais de ser conquistada.
É decepcionante que em um ano com produções que carregam temáticas tão relevantes e necessárias, como misoginia e questões políticas, sociais e raciais, a premiação mais importante do cinema tenha que ceder o pouco espaço que seja para uma obra tão oportunista. Infelizmente, o melhor a se fazer é torcer para que Glenn Close saia da cerimônia de mãos vazias, pela oitava vez, para que Era uma vez um sonho caia no esquecimento total.