Longe dos altares, Elvis faz seu espetáculo nos conflitos e contrastes

Cena do filme Elvis. A imagem é retangular e mostra o cantor Elvis no centro da foto, em um primeiro plano. Ele está representado do quadril para cima, com o corpo inclinado para trás e olha diretamente para a câmera enquanto canta, com a sua mão direita segurando o microfone. Ele usa uma jaqueta preta de couro e sua guitarra vermelha está pendurada no pescoço. Elvis é interpretado por Austin Butler. Ele tem cabelos escuros, lisos e penteados para trás, olhos azuis e uma pele clara, mas bronzeada. Em segundo plano é possível ver a plateia assistindo ao show. A maioria dos presentes é composta por mulheres que observam Evis encantadas.
Retorno de Baz Luhrmann às telonas após um hiato de nove anos, a cinebiografia de Elvis Presley arrematou indicações nas principais premiações dos Sindicatos estadunidenses da Sétima Arte (Foto: Warner Bros. Pictures)

Mariana Nicastro e Vitória Vulcano

Como se dá a ascensão de uma estrela? E sua queda? Representar uma figura real respeitando seus contrastes não é uma tarefa simples, nem contar uma história desse calibre com originalidade. Baz Luhrmann poderia facilmente ter encaixado Elvis nos moldes narrativos típicos do gênero: lineares, focados na perspectiva do artista e, como se isso garantisse um selo de aprovação, investindo em uma homenagem. Mas o longa – que disputa oito estatuetas no Oscar 2023 – se inspira no próprio ídolo ao procurar problemas. Revelando conflitos profundos, perspectivas que fogem do unidimensional e muita identidade, a cinebiografia avessa do rei do Rock n’ Roll constrói seu espetáculo entre linhas dramáticas, sensíveis e indiscutivelmente musicais.

Lançado nos cinemas em Julho do ano passado, o filme empresta o tom extravagante e por vezes teatral de outras criações famosas de Luhrmann, como O Grande Gatsby, Romeu + Julieta e Moulin Rouge – Amor em Vermelho. Entretanto, em Elvis, toda a pompa criativa do diretor permanece atrelada à história inalterável, mas ainda indecifrada em sua totalidade, de Presley, fator que estimula o tato diversificado e a progressão frenética encontrados no texto de Baz, Sam Bromell, Craig Pearce e Jeremy Doner.

Cena do filme Elvis. A imagem é retangular e foca no personagem Coronel Parker, nela centralizado. Ele é interpretado por Tom Hanks, um homem na casa dos sessenta anos que está com uma maquiagem realista cujo objetivo é engordar o ator. Coronel é um homem branco, com um nariz pontudo e cabelos grisalhos. Ele usa um terno xadrez e apoia-se com as duas mãos em uma bengala, enquanto segura um charuto entre os dedos.
Quase duas décadas antes de dar vida a Coronel Parker, Tom Hanks imitou o próprio Presley em Elvis Ainda Não Morreu! (Foto: Warner Bros. Pictures)

A trama por si só foge de convenções documentais ao priorizar a perspectiva do empresário de Elvis, Coronel Tom Parker (Tom Hanks). Visto como manipulador, ambicioso e calculista aos olhos da própria ex-esposa do agenciado, o antagonista assume a narração do longa evocando o leque de emoções que sua “galinha dos ovos de ouro” causava nele mesmo e nos outros habitantes do planeta, desconhecedores do que existia por trás da magia do showbusiness: um garoto humilde, natural de Memphis, no Tennessee, que descobriu no rock a oportunidade de extrapolar sua voz e embalar uma presença de palco surreal.

Ao mergulhar nesse recorte, Luhrmann abandona o detalhamento de alguns aspectos pessoais da vida de Presley, como seu conturbado matrimônio e o uso desenfreado de drogas e remédios – ainda que esses fatores sejam representados em cena. O foco é na relação codependente, problemática e extremamente destrutiva entre artista e agente. E em como a mesma pessoa que impulsionou a carreira em questão às alturas pode ser aquela que fez o castelo ruir. 

Elvis conduz esse atrito de maneira astuta e até irônica, sem se afetar com a cronologia exata dos fatos e da discografia do cantor. Podemos estar no apartamento colorido de seus pais ou nas noites envolvidas pela poderosa Música da Beale Street: não importa. A licença artística fala mais alto, abusando de dúvidas, acessos de raiva e curiosidades depositados pelo trabalho arrojado de Matt Villa e Jonathan Redmond, que garantem espaço nos indicados a Melhor Montagem, apesar de terem poucas chances contra o multifavorito Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo.

Cena do filme Elvis. A imagem é retangular e mostra em primeiro planos os personagens Coronel Parker (à esquerda) e Elvis (à direita) sentados em um banco de roda gigante à noite. Coronel é interpretado por Tom Hanks e é um homem branco, corpulento, com um nariz pontudo e cabelos grisalhos. Ele usa um chapéu, terno e apoia-se em uma bengala. Seu olhar recai sobre Elvis, personagem de Austin Butler. O personagem é branco, tem cabelos escuros penteados para trás e usa uma camiseta preta. Ele olha para baixo e apoia-se com os cotovelos nos joelhos. Ao fundo, em segundo plano, é possível observar os contornos de um parque de diversões desfocado. Há muitas luzes redondas e brancas que contrastam com a imagem mais escura dos personagens.
Lisa Marie Presley, filha única do Rei do Rock, classificou o filme como “nada menos do que espetacular”; ela também era cantora e faleceu em Janeiro (Foto: Warner Bros. Pictures)

Aqui, as cenas têm inúmeros cortes dissolvidos, bruscos ou que se dividem em quatro telas simultâneas, chocando informações internas e externas destinadas às personas que formavam o astro tenessiano. Recurso excessivo no filme e clichê para o diretor, o bombardeamento cinematográfico de Elvis sabe reproduzir os efeitos que Presley tinha sobre os padrões sociais e cidadãos de sua época, período que, na verdade, se estendeu com uma atemporalidade já vista em vida.

O rockeiro confeccionou sua carreira – dos palcos a Hollywood – durante diferentes fases e momentos da história dos Estados Unidos, começando na segregação racial, passando pelo surgimento da Guerra Fria e chegando até a ascensão e morte de várias personalidades públicas, como Sharon Tate, Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy. Paralelamente, Luhrmann usa o terreno para escancarar a questionável consciência política do ídolo, que quase nunca chegou a se colocar na linha de frente por causas ou ativismos, mesmo propagando um gênero musical enraizado e desenvolvido na cultura negra.

Cena do filme Elvis. A imagem é retangular, em close, os personagens Elvis e B.B. King lado a lado. Elvis é interpretado por Austin Butler. O personagem é branco, tem olhos claros e cabelos escuros penteados para trás com alguns fios caindo sobre a testa. B. B. King é interpretado por Kelvin Harrison, um homem na casa dos vinte anos, negro, de cabelos bem curtos. Ele usa uma camiseta xadrez vermelha. Ambos olham para baixo, para um mesmo ponto. O fundo está desfocado.
Segundo Michael T. Bertrand, autor do livro Race, Rock and Elvis, o cantor não era político, seja por influências de sua gravadora e seu agente, ou pela falta de entendimento sobre seu papel em uma sociedade racista (Foto: Warner Bros. Pictures)

Embora o autorretrato seja uma constância, o balanço da trama para além do alter ego de Elvis, brincando com os antagonismos do artista e de Parker, preenche seu elenco geral de motivações cada vez mais escalares. O ex-Disney Austin Butler não exita em abraçar a potência necessária para ser Presley, ao fidelizar os trejeitos característicos do Rei de forma emblemática nos palcos, porém, também representar com vulnerabilidade seu backstage. Buscando humanidade nas provações do universo da fama, o californiano estreia nas nomeações a Melhor Ator, podendo, inclusive, vencer a ilustre concorrência de Colin Farell (Os Banshees de Inisherin) e Brendan Fraser (A Baleia).

Do outro lado da turnê, Tom Hanks acena à caricatura sem repelir a expressividade que seu papel exige. Constantemente tocado pela aura contagiante do astro, o veterano torna o parasitismo do Coronel um dilema existencial complexo, que seria capaz de estampar qualquer filme de Terror ou florear o melhor dos dramas. Introjetados no meio tóxico ou assistindo suas inervações, Olivia DeJonge (de The Society), Helen Thomson (de Canguru Jack), Richard Roxburgh (de Até O Último Homem) e Kelvin Harrison Jr. (de Os 7 de Chicago) incorporam arduamente o amor a Presley e a gastura física e sentimental experimentada pelos mais próximos ao sistema.

Cena do filme Elvis. A imagem é retangular e mostra em primeiro plano a cabeça de Coronel Parker vista de trás. Ele está parcialmente desfocado, mas é possível observar por sua silhueta que ele usa um terno com escritas pretas e um chapéu. Coronel é um homem branco, na casa dos sessenta anos, grisalho. Ele é interpretado por Tom Hanks. Em segundo plano, olhando para o Coronel, estão Priscilla (à esquerda) e Elvis Presley, abraçados. Priscilla é interpretada por OIivia DeJonge. Ela é uma mulher branca, de cabelos escuros e lisos. Tem um rosto e nariz finos, usa um penteado alto de época e tem os olhos bem marcados por um lápis preto. Ao seu lado está Elvis, personagem de Austin Butler. O personagem é branco, mas bronzeado, tem olhos claros e cabelos escuros penteados para trás. Ele usa um paletó azul sobre uma camiseta brilhante da mesma cor.
Austin Butler revelou ter pedido conselhos de atuação a Rami Malek, intérprete de Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody, cinebiografia do Queen reconhecida pela Academia dos carecas dourados (Foto: Warner Bros. Pictures)

Planejando o cenário adequado para tratar sua gama de conteúdos, o longa acerta em definitivo com as decisões visuais. A cargo de Mandy Walker, a composição traduz a essência particular do cantor estadunidense e, na velocidade crescente, imprime as feridas que as décadas abriram e expuseram. As nuances entre o colorido Elvis, novato no mundo dos acordes, e o homem despedaçado e quase desprovido de perspectivas nos anos 1970 são desenhadas através dos avanços tecnológicos, capturando os impactos gerados pelo som e pela imagem desde os aparelhos analógicos. Notavelmente ancorado no realismo das caracterizações de personagens, o trabalho recebeu merecido destaque na categoria de Melhor Fotografia – em que bate de frente com Tár e Nada de Novo no Front – e tem pé quente para levar Melhor Figurino e Melhor Cabelo e Maquiagem

Já os jogos de câmera e luz são lúdicos ao extremo e seguem confundindo a biografia com um eterno show. A estratégia martelada pela direção de arte – lembrada na disputa pelo careca dourado de Melhor Design de Produção – não se perde nos holofotes, deixando os temas corriqueiros segurarem o rojão da fluidez de Elvis, seja no falecimento da matriarca Presley, nas desilusões do ícone musical no pós-Cinema ou na constatação de que seu casamento acabou.

Cena do filme Elvis. A imagem é retangular e mostra o cantor Elvis em primeiro plano, visto da janela de um carro. A janela reflete um letreiro brilhante e colorido em neon, que gera uma luz colorida e arroxeada sobre a imagem. Elvis é interpretado por Austin Butler. O personagem é branco, tem olhos claros sob um óculos escuro, e cabelos pretos penteados para trás. Ele olha para fora da janela e sua expressão é pensativa.
Inspirado por Rocketman, Elvis utiliza registros documentais do último show do artista como gran finale (Foto: Warner Bros. Pictures)

Em certa altura do campeonato, fica claro que Elvis não é um herói. Luhrmann está interessado em homenageá-lo, aclamando seu talento e sucesso, mas se preocupa mais ainda em não ultrapassar as restrições que o próprio ídolo impôs a seu legado. Nas lentes do cineasta, Presley contracena com artistas negros sempre entregando que, independentemente de ter trazido o rock à superfície, o povo fundador do gênero continuou sofrendo no anonimato e sendo cruelmente apagado da História. O longa também não inventa a roda ao ilustrar como era bem mais fácil para um jovem branco vender os mesmo discos que alguém racializado poderia produzir, conseguindo popularizar a Música criada, não para ele, mas como instrumento de fé e resistência.

O ponto se repete nas cenas que sucedem a polêmica apresentação de Trouble, na qual Elvis responde à problematização conservadora de seu estilo musical. Conforme os protestos surgem, o longa aproveita para pincelar que as consequências dadas ao cantor sondado por Parker não são nem de longe tão graves quanto as vivenciadas por um artista negro, em semelhantes condições. 

Evidenciando a crua verdade do passado, Elvis, então, repagina canções tomadas por Presley da Música negra, tece novas versões de clássicos e elabora outros feitos pela junção de estilos, a exemplo de Vegas, performance enérgica de Doja Cat que mistura um jazz tradicional ao proficiente rap atual. Apesar da inclusão de diversidade exibida, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não considerou as submissões do carro-chefe do filme nem sua vasta trilha sonora, por ambos não atenderem aos critérios de originalidade da premiação.

 Cena do filme Elvis. A imagem é retangular e mostra o cantor Little Richard cantando com um microfone na mão, sob um ângulo que o engrandece. Ele é interpretado por Alton Mason, um homem negro, jovem e magro, de cabelos escuros, com um penteado alto. Ele canta de olhos fechados e usa um terno cinza. O lugar em que ele está é uma sala fechada, pouco iluminada e as paredes têm pinturas de casas e árvores.Há uma lâmpada atrás de si, que ilumina a imagem.
Em meio a baixas, o longa conseguiu emplacar uma nomeação na categoria de Melhor Som, concorrendo com Nada de Novo no Front, Avatar: O Caminho da Água, Batman e Top Gun: Maverick (Foto: Warner Bros. Pictures)

Sem guia explicativo para o apelo simbólico de Presley ou teses cegadas pelo fenômeno que o estadunidense significou, Elvis parece mais uma compilação de cada elemento artístico, social, político e individual que fez de seu protagonista um ícone unânime, capaz de ser assimilado quase 50 anos após sua morte e retratado como se fosse a primeira vez. Sob essa ótica, é fácil entender porque a captura mais recente aparece na lista de indicados ao Oscar de Melhor Filme. Não queremos deixar nossos ídolos se desintegrarem e, de certa forma, nem podemos, se considerarmos a habilidade do Cinema em regenerar as copiosas visões de uma vida.

Em volta da sede por prestígio e das influências de um empresário controlador e calculista, Presley teve o ápice de sua existência na singularidade contraditória: propensa ao erro, presa ao fantasma da apropriação cultural, deslumbrada por promessas incoerentes e terminantemente apaixonada pelos solos de guitarra. No saldo final, Elvis cativa por essa explosão de circunstâncias, embrulhada no espetáculo cinematográfico de uma estrela, que, no frenesi da rotina, muito esbarra nas delícias de amar; o mundo, as pessoas e especialmente a Música.

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