Mariana Nicastro e Vitória Vulcano
Como se dá a ascensão de uma estrela? E sua queda? Representar uma figura real respeitando seus contrastes não é uma tarefa simples, nem contar uma história desse calibre com originalidade. Baz Luhrmann poderia facilmente ter encaixado Elvis nos moldes narrativos típicos do gênero: lineares, focados na perspectiva do artista e, como se isso garantisse um selo de aprovação, investindo em uma homenagem. Mas o longa – que disputa oito estatuetas no Oscar 2023 – se inspira no próprio ídolo ao procurar problemas. Revelando conflitos profundos, perspectivas que fogem do unidimensional e muita identidade, a cinebiografia avessa do rei do Rock n’ Roll constrói seu espetáculo entre linhas dramáticas, sensíveis e indiscutivelmente musicais.
Lançado nos cinemas em Julho do ano passado, o filme empresta o tom extravagante e por vezes teatral de outras criações famosas de Luhrmann, como O Grande Gatsby, Romeu + Julieta e Moulin Rouge – Amor em Vermelho. Entretanto, em Elvis, toda a pompa criativa do diretor permanece atrelada à história inalterável, mas ainda indecifrada em sua totalidade, de Presley, fator que estimula o tato diversificado e a progressão frenética encontrados no texto de Baz, Sam Bromell, Craig Pearce e Jeremy Doner.
A trama por si só foge de convenções documentais ao priorizar a perspectiva do empresário de Elvis, Coronel Tom Parker (Tom Hanks). Visto como manipulador, ambicioso e calculista aos olhos da própria ex-esposa do agenciado, o antagonista assume a narração do longa evocando o leque de emoções que sua “galinha dos ovos de ouro” causava nele mesmo e nos outros habitantes do planeta, desconhecedores do que existia por trás da magia do showbusiness: um garoto humilde, natural de Memphis, no Tennessee, que descobriu no rock a oportunidade de extrapolar sua voz e embalar uma presença de palco surreal.
Ao mergulhar nesse recorte, Luhrmann abandona o detalhamento de alguns aspectos pessoais da vida de Presley, como seu conturbado matrimônio e o uso desenfreado de drogas e remédios – ainda que esses fatores sejam representados em cena. O foco é na relação codependente, problemática e extremamente destrutiva entre artista e agente. E em como a mesma pessoa que impulsionou a carreira em questão às alturas pode ser aquela que fez o castelo ruir.
Elvis conduz esse atrito de maneira astuta e até irônica, sem se afetar com a cronologia exata dos fatos e da discografia do cantor. Podemos estar no apartamento colorido de seus pais ou nas noites envolvidas pela poderosa Música da Beale Street: não importa. A licença artística fala mais alto, abusando de dúvidas, acessos de raiva e curiosidades depositados pelo trabalho arrojado de Matt Villa e Jonathan Redmond, que garantem espaço nos indicados a Melhor Montagem, apesar de terem poucas chances contra o multifavorito Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo.
Aqui, as cenas têm inúmeros cortes dissolvidos, bruscos ou que se dividem em quatro telas simultâneas, chocando informações internas e externas destinadas às personas que formavam o astro tenessiano. Recurso excessivo no filme e clichê para o diretor, o bombardeamento cinematográfico de Elvis sabe reproduzir os efeitos que Presley tinha sobre os padrões sociais e cidadãos de sua época, período que, na verdade, se estendeu com uma atemporalidade já vista em vida.
O rockeiro confeccionou sua carreira – dos palcos a Hollywood – durante diferentes fases e momentos da história dos Estados Unidos, começando na segregação racial, passando pelo surgimento da Guerra Fria e chegando até a ascensão e morte de várias personalidades públicas, como Sharon Tate, Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy. Paralelamente, Luhrmann usa o terreno para escancarar a questionável consciência política do ídolo, que quase nunca chegou a se colocar na linha de frente por causas ou ativismos, mesmo propagando um gênero musical enraizado e desenvolvido na cultura negra.
Embora o autorretrato seja uma constância, o balanço da trama para além do alter ego de Elvis, brincando com os antagonismos do artista e de Parker, preenche seu elenco geral de motivações cada vez mais escalares. O ex-Disney Austin Butler não exita em abraçar a potência necessária para ser Presley, ao fidelizar os trejeitos característicos do Rei de forma emblemática nos palcos, porém, também representar com vulnerabilidade seu backstage. Buscando humanidade nas provações do universo da fama, o californiano estreia nas nomeações a Melhor Ator, podendo, inclusive, vencer a ilustre concorrência de Colin Farell (Os Banshees de Inisherin) e Brendan Fraser (A Baleia).
Do outro lado da turnê, Tom Hanks acena à caricatura sem repelir a expressividade que seu papel exige. Constantemente tocado pela aura contagiante do astro, o veterano torna o parasitismo do Coronel um dilema existencial complexo, que seria capaz de estampar qualquer filme de Terror ou florear o melhor dos dramas. Introjetados no meio tóxico ou assistindo suas inervações, Olivia DeJonge (de The Society), Helen Thomson (de Canguru Jack), Richard Roxburgh (de Até O Último Homem) e Kelvin Harrison Jr. (de Os 7 de Chicago) incorporam arduamente o amor a Presley e a gastura física e sentimental experimentada pelos mais próximos ao sistema.
Planejando o cenário adequado para tratar sua gama de conteúdos, o longa acerta em definitivo com as decisões visuais. A cargo de Mandy Walker, a composição traduz a essência particular do cantor estadunidense e, na velocidade crescente, imprime as feridas que as décadas abriram e expuseram. As nuances entre o colorido Elvis, novato no mundo dos acordes, e o homem despedaçado e quase desprovido de perspectivas nos anos 1970 são desenhadas através dos avanços tecnológicos, capturando os impactos gerados pelo som e pela imagem desde os aparelhos analógicos. Notavelmente ancorado no realismo das caracterizações de personagens, o trabalho recebeu merecido destaque na categoria de Melhor Fotografia – em que bate de frente com Tár e Nada de Novo no Front – e tem pé quente para levar Melhor Figurino e Melhor Cabelo e Maquiagem.
Já os jogos de câmera e luz são lúdicos ao extremo e seguem confundindo a biografia com um eterno show. A estratégia martelada pela direção de arte – lembrada na disputa pelo careca dourado de Melhor Design de Produção – não se perde nos holofotes, deixando os temas corriqueiros segurarem o rojão da fluidez de Elvis, seja no falecimento da matriarca Presley, nas desilusões do ícone musical no pós-Cinema ou na constatação de que seu casamento acabou.
Em certa altura do campeonato, fica claro que Elvis não é um herói. Luhrmann está interessado em homenageá-lo, aclamando seu talento e sucesso, mas se preocupa mais ainda em não ultrapassar as restrições que o próprio ídolo impôs a seu legado. Nas lentes do cineasta, Presley contracena com artistas negros sempre entregando que, independentemente de ter trazido o rock à superfície, o povo fundador do gênero continuou sofrendo no anonimato e sendo cruelmente apagado da História. O longa também não inventa a roda ao ilustrar como era bem mais fácil para um jovem branco vender os mesmo discos que alguém racializado poderia produzir, conseguindo popularizar a Música criada, não para ele, mas como instrumento de fé e resistência.
O ponto se repete nas cenas que sucedem a polêmica apresentação de Trouble, na qual Elvis responde à problematização conservadora de seu estilo musical. Conforme os protestos surgem, o longa aproveita para pincelar que as consequências dadas ao cantor sondado por Parker não são nem de longe tão graves quanto as vivenciadas por um artista negro, em semelhantes condições.
Evidenciando a crua verdade do passado, Elvis, então, repagina canções tomadas por Presley da Música negra, tece novas versões de clássicos e elabora outros feitos pela junção de estilos, a exemplo de Vegas, performance enérgica de Doja Cat que mistura um jazz tradicional ao proficiente rap atual. Apesar da inclusão de diversidade exibida, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não considerou as submissões do carro-chefe do filme nem sua vasta trilha sonora, por ambos não atenderem aos critérios de originalidade da premiação.
Sem guia explicativo para o apelo simbólico de Presley ou teses cegadas pelo fenômeno que o estadunidense significou, Elvis parece mais uma compilação de cada elemento artístico, social, político e individual que fez de seu protagonista um ícone unânime, capaz de ser assimilado quase 50 anos após sua morte e retratado como se fosse a primeira vez. Sob essa ótica, é fácil entender porque a captura mais recente aparece na lista de indicados ao Oscar de Melhor Filme. Não queremos deixar nossos ídolos se desintegrarem e, de certa forma, nem podemos, se considerarmos a habilidade do Cinema em regenerar as copiosas visões de uma vida.
Em volta da sede por prestígio e das influências de um empresário controlador e calculista, Presley teve o ápice de sua existência na singularidade contraditória: propensa ao erro, presa ao fantasma da apropriação cultural, deslumbrada por promessas incoerentes e terminantemente apaixonada pelos solos de guitarra. No saldo final, Elvis cativa por essa explosão de circunstâncias, embrulhada no espetáculo cinematográfico de uma estrela, que, no frenesi da rotina, muito esbarra nas delícias de amar; o mundo, as pessoas e especialmente a Música.