Aviso: o seguinte texto discursa sobre temas que podem se tornar gatilhos para algumas pessoas que sofrem/sofreram com dependência química, depressão, suicídio, transtornos alimentares e violência sexual.
Júlia Paes de Arruda
Medo, insegurança, tristeza, pressão estética, ansiedade, tensão. Todos esses sentimentos foram os combustíveis para que a bomba interna de Demi Lovato chegasse ao seu limite em 24 de julho de 2018. Três anos depois, a cantora abre seu coração de uma forma honesta, sensível, comovente e corajosa à respeito daquela noite que, milagrosamente, foi sobrevivente.
O documentário Demi Lovato: Dancing With The Devil, disponível no YouTube, é dirigido por Michael D. Rather e conta a história do antes e depois da overdose pelo ponto de vista de Demi. Depoimentos de amigos, familiares e da equipe da artista são adicionados para construir arcos complementares à memória da cantora. Dessa forma, os relatos tornam-se mais verídicos e mais maleáveis de fazer o público entender o que aconteceu de fato.
Cada episódio aborda um tópico específico e, além de um aviso de conteúdo delicado, a descrição de cada vídeo nos informa meios de pedir ajuda, ainda que seja em território estadunidense. A sacada de Demi, aqui, é extremamente importante e grandiosa. Disponibilizar seu documentário numa plataforma gratuita e de alcance imensurável é indefinidamente significativo, não só pela visão lucrativa (algo que, creio eu, Demi não se importe), mas que possibilita uma apreciação e uma ligação ainda maior com os sentimentos da cantora.
No primeiro episódio, pessoalmente o mais tocante, Demi convida o público a entender sua situação antes da quase fatídica noite. A princípio, ela comenta que sua ardilosa habilidade em mentir possibilitou que escondesse suas emoções das pessoas a sua volta e que, de alguma forma, isso se estourou no dia da sua overdose. Retomando seu passado, a cantora conta sobre o relacionamento com seu pai, algo que a afetou de diversas maneiras. Os problemas dele com a bipolaridade, alcoolismo e violência doméstica foram os pontos cruciais que a fizeram perceber que “fazia mais mal do que bem tê-lo na minha vida” e, por isso, cortou qualquer relação de parentesco.
Demi define a morte de seu pai como complicada, ainda mais porque ele acabou do modo que ela mais temia: sozinho. Em seu álbum Confident (2015), a artista compôs Father como forma de homenageá-lo e, até mesmo, declarou: “Eu espero que o céu tenha te dado uma segunda chance”. Aqui, vemos uma característica extremamente admirável em Demi: seu poder de perdão. Eu digo admirável, mas acho melhor definir como destemida. Creio que depois de toda a dor, conflito e angústia com a qual viveu por tanto tempo, perdoar é o ato de mais pura bravura, algo que, particularmente, seria difícil de engolir.
O momento de mais tensão e, provavelmente, o mais enojante (e você sabe o porquê) de todo o documentário é quando Demi assume que foi estuprada naquela mesma noite. O traficante que havia ido à sua casa aproveitou da oportunidade dela estar alterada, praticamente desmaiada, e a abusou. Já no hospital, a artista afirma que havia sido consensual. Porém, depois de vários flashes daquele momento virem a sua memória, ela mesma começou a se dar conta de tudo o que aconteceu. Sua coragem não fica restrita apenas a essa declaração, mas também ao recriar aquela situação no clipe de Dancing With The Devil. Não tenho palavras suficientes que possam definir sua atitude como pessoa, mas principalmente, como mulher.
“Sinto que decisões foram tomadas por mim mais do que eu decidi por mim mesma”.
Demi nunca deixou de falar sobre seus transtornos alimentares, entre eles a compulsão e a bulimia. Grande parte desse trauma veio junto com suas participações em concursos que eram resumidos na beleza e no talento de suas participantes. Com o passar do tempo, sua autoestima foi extremamente danificada. A antiga equipe da cantora a sujeitava em controle e restrição de comida tão rígidos que, durante 8 anos da vida, ela não podia apreciar um digno bolo de aniversário. Somente bolos de melancia eram permitidos por serem menos calóricos e com poucos índices glicêmicos. Somado a isso, dietas rigorosas e excesso de exercícios desandaram ainda mais a estabilidade emocional da artista.
Nas gravações da turnê Tell Me You Love Me, ela assumiu que as roupas deveriam ser feitas para encobrir o fato de ter engordado. Porém, ela fala enraivecida que “tudo parece tão bom no desenho já que a modelo tem 2 metros, pesa 50kg e tem uma cintura de 15 cm”. A diversidade de corpos na moda ainda é um tabu e a câmera de Rather consegue comprovar esse tópico ao mostrar os desenhos dos estilistas em comparação às roupas no próprio corpo da cantora. Aliado ao sentimento imposto pela mídia de se tornar um ícone, Demi nunca conseguiu se recompor por completo dessa ferida que, mesmo com grandes picos de amor próprio, ainda insiste em abrir.
Tudo parecia estar encaminhado. Após anos sem se apresentar, Demi foi convidada a se apresentar no Grammy 2020 com sua canção de pedido de ajuda, Anyone. Ali foi seu momento de redenção e de libertação. De maneira sensível, sua voz chega a um outro nível. Ganha força, poder e autonomia de expressar com franqueza tudo que estava estagnado por muito tempo. Isso se mostrou ainda mais verídico com a sua apresentação no Super Bowl cantando o hino nacional estadunidense.
Ela também havia ficado noiva do ator Max Ehrich, mesmo com pouco tempo de relacionamento. Com a chegada da pandemia, os dois passaram a viver em quarentena juntos. Contudo, não demorou muito para a relação do casal terminasse. Juntos por cerca de 4 meses, a cantora afirmou que tudo acabou se acelerando com o ano atípico de 2020. Ela não declara que essa experiência foi jogada fora, mas que possibilitou olhar para si mesma e viver do modo mais autêntico possível antes de se aplicar um rótulo.
Demi admite que suas opções de tratamento não podem ser taxadas como eficazes para todo mundo. Entretanto, depois de uma vida de restrições e extremos, essa foi a maneira que ela encontrou para manter seu equilíbrio, ainda tendo sua válvula de escape. Como disse a própria mãe, Dianna De La Garza, “a sobriedade precisa ser escolha sua, de mais ninguém. Se for a escolha de outra pessoa, não dura”. Infelizmente, esse sentimento é verdadeiro. Não se pode ajudar uma pessoa que não quer ser ajudada.
A premissa de Dancing With The Devil, além de expor as emoções da artista, serviu como forma de limpar o nome da ex-coreógrafa Dani Vitale, que foi alvo de diversas críticas e ameaças das batatas podres da cultura de fãs. Inclusive, Demi pede desculpas publicamente por ter demorado tanto tempo para que a versão de Dani fosse contada. Tudo que aconteceu naquela noite foi difícil de ser assimilado e, com a terapia e a reabilitação, ela precisou de um prazo maior para poder abrir seu coração.
São inúmeras lições que se pode tirar do documentário Dancing With The Devil. Pessoalmente, a mais valiosa é sobre costurar as feridas da maneira mais cirúrgica possível, sendo sincera consigo mesma e com as pessoas à sua volta. Falar sobre seus sentimentos não é ruim, ‘feminino’ e muito menos vergonhoso. Demi finaliza seu desabafo com mudanças. “Não viverei mais para os outros ou suas manchetes ou seus tweets”, afirma iniciando sua arte de recomeçar.
Se você precisa de suporte, é possível buscar ajuda. Você não está sozinho. O Centro de Valorização da Vida (CVV) promove apoio emocional gratuitamente, sob total sigilo, pelo telefone 188, e-mail e chat 24 horas por dia, todos os dias.
Se você é dependente químico, não tenha medo de pedir ajuda. Os Alcoólicos Anônimos Online atendem todos os dias das 20h às 22h. Você é importante, suficiente e não merece passar por isso.