Júlia Paes de Arruda
Pensar na existência de um segundo live action da vilã de 101 Dálmatas não era muito animador. Seria à altura da icônica performance de Glenn Close na adaptação de 1996? Pois é, quando Emma Stone apareceu num look exuberante, já deu pra notar que não seria igual ao outro. De protagonistas, os cachorros passaram a ser meros figurantes. A antagonista invade a Londres da década de 70 carregada pela moda, cheia de frustrações e mágoas de um passado solitário. Original, criminosa, vestida para matar. É assim que Cruella se apresenta para nós.
A nova produção do Disney+ acompanha a jornada de Estella (Emma Stone), uma criança geniosa e determinada, até a fase adulta de pequenos crimes, ao lado de Gaspar (Joel Fry, de Game of Thrones) e Horácio (Paul Walter Hauser, de Cobra Kai). Inspirada pela mãe, a jovem mantém o desejo de um dia se tornar uma grande estilista. Seu talento chama a atenção da Baronesa Von Hellman (Emma Thompson), dona de uma influente grife e, a partir daí, uma sucessão de eventos farão com que Estella desapareça para que Cruella se materialize. É como se enxergássemos duas personalidades: enquanto Cruella esbanja poder, Estella é uma garota tímida e sonhadora.
O mérito de Cruella é de Emma Stone. A atriz sai da cômica Hannah de Amor à Toda Prova e da dramática Mia de La La Land para despertar a brilhante Cruella De Vil. Seu visual monocromático vibra, grita e abala os olhares gélidos e neblinosos da tediosa capital britânica. Stone se sente à vontade no papel visto que entrega cargas dramáticas com muito fôlego ao mesmo tempo que se solta para performar uma complexa e surpreendente vilã. Ela consegue transitar do ácido ao engraçado em segundos de cenas. Nossos olhos ficam fixos na sua transformação cheia de glamour e nem um pouco entediante.
A cereja do bolo é Emma Thompson, que se desprende da boba professora Sibila Trelawney de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban para dar lugar à egocêntrica Baronesa. Sua versatilidade é magnífica, incorporando uma solidão e obscuridade dignos de uma elite hipócrita da época. Aderindo somente a tons clássicos da alta costura, Thompson constrói uma personagem megalomaníaca, capaz de descartar tudo e todos para se manter no status da grandeza.
Ao lado de Baronesa, temos John (Mark Strong) que é basicamente o próprio Nigel de Miranda Priestly. Além de ser o mordomo/assistente, John tem papel fundamental para que Cruella se defina e se estruture como a personagem que conhecemos. O filme solo da vilã de 101 Dálmatas também nos apresenta Anita e Roger, os donos de Pongo e Perdita. O diferencial é que, no live-action, os dois não são um casal.
Anita (Kirby Howell-Baptiste) é uma jornalista, que auxilia Cruella a se destacar nas manchetes londrinas. Já Roger (Kayvan Novak) é o mero advogado da Baronesa. Ambos não desempenham uma função de proeminência, porém se tornam referências icônicas do desenho animado. A mudança para uma atriz negra e um ator descendente de iranianos busca trazer a representatividade, mas, pelos poucos momentos dos personagens em tela, a proposta acaba se tornando mais uma estratégia comercial.
Não se pode falar de Cruella sem explorar a ousadia e a vaidade de seus figurinos. A designer Jenny Beavan, ganhadora de dois Oscars – um deles por Mad Max: Estrada da Fúria (2015), se inspirou no movimento punk da década de 70 para demonstrar a rebeldia que a personagem precisava. Em meio ao ambiente urbano, Cruella é a própria visão do futuro.
Nesse período, a alta costura deixou de ser algo exclusivo e começou o processo de democratização da moda. Visuais andróginos estavam em alta, fazendo transparecer a sexualidade, a liberdade e a criatividade. O movimento punk, muitas vezes incompreendido, substituiu o colorido e o glitter da discoteca pelas jaquetas de couro pretas, um visual grotesco e as tachas pontiagudas. A vilã abusa da extravagância e de maquiagens carregadas. A fúria e o desejo de vingança se revelam através de suas roupas e, assim, Estella transforma-se em Cruella.
A audácia da personagem também se reflete nas suas atrevidas exibições. No meio de um monótono baile preto e branco, Cruella encarna uma Katniss Everdeen e abre espaço para o vermelho vivo tomar conta da celebração. Ela não tem medo de se arriscar e não nega o grandioso talento que possui em mãos. Ousa em tecidos, cortes e costuras exóticas para sacudir as passarelas dominadas pela Baronesa. É assim que ela conquista seu espaço.
Diferentemente de Malévola, o filme de Craig Gillespie (Eu, Tonya) é um acerto. Talvez pela participação de Emma Stone e de Glenn Close na produção executiva, unindo gerações de atrizes incríveis num trabalho que prometia muito. A diretora de arte Fiona Crombie também merece os cumprimentos, já que ela consegue transparecer ambas as personalidades da personagem de Stone de maneira sutil, mas decisiva.
Enquanto estamos com o olhar em Estella, as cenas escritas por Dana Fox e Tony McNamara (juntamente com Aline Brosh McKenna, Kelly Marcel e Steve Zissis adaptando a história de Dodie Smith) se desenrolam com mais suavidade, acompanhando o desempenho da jovem compartilhando a vida com seus novos parceiros. Quando Cruella toma posse, tudo acaba virando caótico: a organização do apartamento, os desenhos nas modelos, a relação entre a vilã e seus (agora) capangas. A iluminação dos cenários também acompanha esse desenrolar, transitando de uma paleta mais amarelada para uma mais avermelhada, quase um vinho, mais sombrio.
É em seu filme solo que conhecemos a obsessão da antagonista por dálmatas, tão evidente na elegante atuação de Glenn Close. Os cachorros demarcam um momento de dor da personagem, ao mesmo tempo que reforçam seu poder, sua ascensão num novo patamar. Seu alter ego maléfico assume a nova posição e nos confrontamos com uma anti-heroína extraordinária e destemida.
A pegada punk não se limita aos trajes de Cruella. Esse estilo também se faz presente dentro da trilha sonora do filme, o que contribuiu para essa áurea mais sombria. Além das criações de Nicholas Britell (indicado ao Oscar por Moonlight: Sob a Luz do Luar e Se a Rua Beale Falasse), músicas de The Clash, Queen, Black Sabbath e Deep Purple criam a atmosfera do lado ácido da vilã. Entretanto, existem quebras de ritmos mais pesados com as divertidas Should I Stay or Should I Go e One Way or Another, que espelham a ironia e o deboche da antagonista. Tudo foi milimetricamente pensado para que as duas particularidades de Cruella pudessem transparecer para o público.
Juntamente com uma instrumentalidade espetacular, o diretor Craig Gillespie une uma narrativa primordialmente vinda do público infantil com o adulto, trazendo o equilíbrio entre o drama e a comédia. Ele procura dar profundidade aos capangas de Cruella para que eles possam acrescentar aos arcos da vilã e não servir apenas como burros de carga. Enquanto Gaspar é inteligente, Horácio é o alívio cômico, dono das cenas mais divertidas. Os dois funcionam como questionadores da vilania da amiga. Dessa forma, o trio não forma apenas uma gangue, mas sim uma família.
Cruella reinventa a fórmula de sucesso do desenho animado e faz com que Emma Stone deixe sua marca, tanto que já acumula mais de um milhão e meio de dólares de arrecadação nos cinemas. Incorporando novos aspectos, mas ainda mantendo-se na tradicionalidade, o filme é completo e dinâmico. Com uma cena pós-créditos (obrigada pelos feitos, Marvel) curiosa, a trajetória de Cruella começa de maneira majestosa. Se depender de Craig Gillespie para criar novos filmes solos de vilãs queridas, temos uma próxima onda de live-actions belíssimos da Disney para degustar.