Vitória Lopes Gomez
Frances e Bobbi são melhores amigas que já namoraram. Frances tem uma queda por Nick, e Bobbi, por Melissa. Nick e Melissa são casados. É partindo desse emaranhado que Sally Rooney, em seu livro Conversas entre amigos, encontra terreno fértil para dissecar relacionamentos contemporâneos e seus envolvidos, assim como as dinâmicas sociais e de poder das relações interpessoais modernas. Se a irlandesa escreve, essencialmente, sobre pessoas normais vivendo sua realidade – mesmo que seja uma realidade inventada, somente baseada na vida real da autora ,- essa obra de estreia mostra que, mesmo antes do fenômeno Pessoas normais, Rooney já mostrava a potência de suas histórias fictícias reais.
No enredo do livro, a dupla de amigas se apresenta recitando poemas, escritos por Frances. Em um dos eventos, conhecem Melissa, uma escritora e fotógrafa bem-estabelecida, que pretende escrever um perfil sobre as duas jovens. Para isso, as convida a sua casa. Na residência de classe média no centro de Dublin, história vem, história vai e não demora para os pares trocados se conectarem. Com Bobbi e Melissa preenchendo os espaços com suas personalidades, Frances captura o olhar de Nick, o marido de Melissa, que parece tão perdido ao lado da mulher quanto ela com Bobbi.
Conversations with friends (o título original) é o primeiro livro publicado por Sally Rooney, que estourou com seu lançamento seguinte, Pessoas normais. Nesse segundo, a força gravitacional que move a narrativa é o (eventual) casal Connell e Marianne. Dos 16 aos 20 e tantos anos, os dois passam da ingênua adolescência à desafiadora vida adulta um na companhia do outro, ora em um relacionamento romântico, ora aprendendo a viver sem ele. Já em Belo mundo, onde você está, o terceiro e mais recente romance da autora, Alice e Eileen são velhas amigas que se correspondem por e-mail. Com quase 30, o foco das protagonistas já não é o amadurecimento, mas outros, refletidos pelos da própria autora: vida profissional, relações românticas e de amizade menos idealizadas, capitalismo e reflexões acerca até do mercado editorial – esse, que Rooney está inserida – representam uma fase diferente da qual Connell e Marianne passaram.
Mesmo antes de Pessoas normais e Belo mundo, Conversas entre amigos soa quase como um meio-termo entre as realidades. Aqui, as protagonistas Frances e Bobbi já deixaram para trás a inocência da adolescência, mas, nos primeiros anos da casa dos vinte, não se estabeleceram o suficiente para se sentirem parte do mundo adulto – isso, como todo jovem adulto. A autora, porém, não se preocupa em verbalizar os anseios das duas explicitamente – e, na verdade, não o fez em nenhum de seus livros. Já virou marca registrada de Rooney deixar o leitor sentir por si mesmo, apresentando somente situações e diálogos tão reais e relacionáveis que não conseguimos fazer diferente de nos imaginarmos no lugar das personagens.
“Bobbi disse que não achava que eu tinha uma ‘personalidade verdadeira’, mas declarou que não se tratava de um elogio. De modo geral, eu concordava com a avaliação. A qualquer instante sentia que poderia fazer ou dizer qualquer coisa, e só depois pensar: ah, então sou esse tipo de pessoa”.
Do outro lado da moeda de Frances e Bobbi, estão Nick e Melissa. O casal é mais velho, cada um com seus 30 e poucos anos, tem um ciclo de amigos e uma casa invejável, são (aparentemente) bem resolvidos, e profissional e financeiramente estáveis. Tudo isso, coisas que as duas não são. Apesar dos mundos diferentes, a conexão das personalidades acaba sendo inevitável no decorrer dos encontros. Assim como Bobbi, Melissa é confiante, o tipo de pessoa que preenche os ambientes em que entra, e sua convicção e força são claras, até intimidadoras. Já Nick se assemelha a Frances: ele, um ator bonito e relativamente famoso, apesar de mediano em sua carreira, serve como um marido troféu, e parece se curvar à presença imponente da esposa – da mesma forma que a protagonista se sentia em seu antigo relacionamento com a amiga.
A partir do jantar da entrevista, o destino parece premeditado, mas nunca previsível. Bobbi, naturalmente, se conecta a Melissa e repele Nick. Por mais escancarada e sem vergonha que seja, a queda da jovem não vai muito além disso e a relação permanece platônica. Afinal, como Bobbi sempre lembra, ela é casada. Já com Frances e Nick acontece o contrário e a conexão se constrói lentamente, com a culpa pela relação extraconjugal sempre como um empecilho entre os dois. Do ponto inicial de terem em comum somente situações em que ficam deslocados ao mesmo tempo – além, claro, das companheiras extrovertidas -, os dois passam de meros parceiros de desconforto para descobrirem um no outro uma ligação um tanto mais profunda e complicada.
A verdade é que não parece haver muito ao que se apegar nessa nova relação. Quanto mais próximos Nick e Frances se tornam, mas indecifrável ele fica, e a incerteza move o relacionamento. Isso até para o leitor: com a narração da jovem protagonista, Conversas entre amigos se passa sob o olhar inseguro e acanhado dela. A forma com que vemos os personagens, inclusive, é sob sua visão. Bobbi parece a melhor pessoa do mundo à princípio, articulada, faladeira, engraçada, convicta em seus posicionamentos… até discordar das ações de Frances. Já Melissa fica entre a megera que pisa no marido e a mulher decidida e bem-sucedida que a jovem sonha em ser. Nick, ora é indecifravelmente atraente, um mistério a ser decifrado, ora submisso e indeciso, misterioso só porque não sabe o que quer. De novo, em nenhum momento Rooney julga seus protagonistas: eles são o que são, cada um com seus motivos.
Avançando nas 264 páginas do livro, os sentimentos e emoções vêm espontaneamente, conforme os quatro personagens vivem, se relacionam e, bem, conversam. Conversas entre amigos, como outras obras de Sally Rooney, usa do subtexto de um relacionamento – dessa vez, um fora da configuração tradicional – para ir além. Motivados pelas ações, percepções e desejos dos protagonistas, o livro discute as dinâmicas de poder dessas conexões, da monogamia à diferença de tratamento entre homens e mulheres em uma relaçãp heterossexual. Também (e, de novo, como em outras obras da irlandesa), os quatro refletem sobre novas possibilidades e dinâmicas de relacionamento, capitalismo, vida profissional, saúde mental, política e classes sociais.
“Ele tinha mais respeito por Melissa do que por mim? Gostava mais dela? Se ambas fôssemos morrer em um edifício em chamas e ele só pudesse salvar uma de nós, será que era óbvio que salvaria Melissa e não eu? Era praticamente diabólico transar com alguém que mais tarde deixaria você morrer queimada”.
Nesse coming-of-age peculiar e envolvente, não há espaços para julgamentos, não há lado certo ou errado. Definitivamente, não há moral da história. Os finais de Rooney escancaram o caráter imprevisível das relações humanas, mas também o lado esperançoso. Na tradução de Conversas entre amigos, Débora Landsberg, que trabalhou nos três romances publicados da autora, mantém a melancolia da escrita, assim como a forma direta, objetiva e fluida da irlandesa de escrever. Na estreia de seu estilo, Sally Rooney aprofunda ainda mais seus personagens ao não indicar quem verbaliza cada coisa: os diálogos não recebem pontuação precisa e, mesmo assim, sabemos quem diz o que ao final.
Completando 5 anos de idade em 2022, Conversas entre amigos ganhou sua adaptação homônima para TV, que, assim como Pessoas normais, teve o dedo da autora na concepção. Há meia década, porém, a primeira aparição das duas jovens rebeldes e cheias de idealizações, desconstruindo as aparências do meio adulto ao passo que tentam descobrir seu próprio lugar no mundo, não era uma projeto de comentário social para Sally Rooney. Na verdade, para ela, a situação era mais sobre “observar a textura do mundo em que estava habitando”, absorvendo-o. E na vida real, sobre a qual ela tanto escreve, realmente não há moral da história. O que há são pessoas como Frances e como Bobbi, como Melissa e como Nick, que navegam seus sentimentos, desejos e as consequências de suas ações. Com sua delicadeza, honestidade e olhar apurado, Rooney simplesmente os capta e coloca em palavras.