Em um ano livre da pandemia, janeiro é considerado o mês dos descartes. A temporada 2020 jogou todas as regras pela janela, entretanto, e lançar filmes no primeiro mês do ano ainda qualifica-os para a glória do Oscar. Dito isso, a Netflix continua sua linha de produção massiva em busca da estatueta dourada, e finalmente disponibilizou sua compra mais importante do Festival de Veneza: o brutal Pieces of a Woman. Na vizinhança ao lado, a Amazon nos agraciou com Uma Noite em Miami…, estreia de Regina King como diretora de longas.
No mundo televisivo, a Netflix reina soberana. O formato de maratona impera no mercado, e novas temporadas de (Des)encanto, o fenômeno Cobra Kai, e as avassaladoras estreias de Lupin e da controversa Fate: A Saga Winx foram pautas de conversas acaloradas nesse início de ciclo. Mas todos os olhos foram vidrados pela aparente esquisitice vintage de WandaVision, primeira investida televisa do Universo da Marvel e que, semanalmente, tem surpreendido pelo delírio.
O Cineclube voltou em 2021 para recapitular o melhor e o pior que passou na TV e no cinema. Para filmes, a regra é simples: entra na Curadoria do Mês o que foi lançado nas salas, no streaming ou o que vazou online. Quando falamos das séries, as que aparecerem aqui devem ser transmitidas por completo no mês (como a Netflix faz), ou finalizar a exibição da temporada (por isso a série da Feiticeira Escarlate só aparecerá em março, quando acabar seu percurso na TV). Por enquanto, vamos descobrir o que Janeiro de 2021 nos proveu em termos audiovisuais.
Cinema
Uma Noite em Miami… (One Night in Miami…, Regina King)
Uma Noite em Miami… é uma cinebiografia feita da maneira certa. Com o recorte temporal da celebração da vitória do boxeador Cassius Clay em 64, o filme da Amazon Prime Video passeia pela excelência de seus protagonistas, discutindo temas viris e cheios de camadas. Os quatro homens batem de frente, e o roteiro de Kemp Powers (que codirigiu Soul) é recheado de toques sensíveis, sem a camada de plasticidade muito comum aos ‘filmes de Oscar’.
Ainda mais quando o assunto são os longas que dramatizam lutas raciais e de direitos sociais, acostumados com a preguiça e o clichê. Regina King, que ano após ano acha um jeito de ser aclamada numa área diferente, dirige com a maestria de alguém confortável com a história que conta. Sua suavidade transitando nos quatro núcleos do elenco é de uma primazia invejável, principalmente considerando que Uma Noite em Miami… marca sua estreia como diretora de cinema.
Os debates político-religiosos de Malcolm X dão à Kingsley Ben-Adir material suficiente para aclamação, assim como a voz acolhedora de Leslie Odom, Jr. no papel de Sam Cooke. Quando ele canta Speak Now, candidata ao careca dourado de Canção Original, é fácil imaginar uma sala de cinema com os olhos marejados e o coração acelerando. Eli Goree tem o charme que Cassius Clay emana, e só de saber que ele saiu do cativeiro de Riverdale já ficamos felizes. O destaque, todavia, fica com Aldis Hodge na pele do jogador da NFL, Jim Brown, sarcástico e com sangue nos olhos. Uma Noite em Miami… é um filmaço imperdível. – Vitor Evangelista
Bela Vingança (Promising Young Woman, Emerald Fennell)
Jovem Promissora. Não existem palavras que melhor definam Emerald Fennell do que as que batizam seu primeiro filme, talvez uma das obras de estreia mais corajosas e irretocáveis de toda a história do cinema. A diretora e roteirista não se aquietou em encarar machismo, a misoginia e a cultura do estupro corriqueiros da indústria cinematográfica e da vida cotidiana de uma mulher e levou tudo isso numa comédia ácida incômoda paras telas que reproduziram Promising Young Woman.
No enredo do filme, entretanto, o significado que o título toma é um pouco mais sombrio e nada positivo. Cassie (Carey Mulligan) teve cada aspecto de sua vida roubado por traumas decorrentes de um estupro que aconteceu com sua melhor amiga. Depois de deixar seu sonho da faculdade de medicina em apoio à amiga, trabalha numa cafeteria junto de sua única colega, Gail (Laverne Cox), ainda mora com os pais e não se relaciona amorosamente com ninguém. Seu passatempo favorito, no entanto, não é nada pacato, e é para onde Cassie direciona sua energia e inteligência: assombrar todos os homens que cruzam seu caminho até chegar ao seu plano final de vingar a amiga.
O trabalho que Mulligan faz com cada uma das camadas da personagem de Cassie é dolorosamente impressionante, junto à direção e roteiro destemidos, confiantes e certeiros de Fennell, que já fez história abalando a predominância masculina nas categorias de direção das premiações e em muito lembra a ousadia de Michaela Coel para tratar dos mesmos temas em I May Destroy You. Assim como a série, em meio à aura psicótica-cômica da narrativa, o que nos assombra de verdade é a lembrança da dimensão da cultura do estupro e do potencial destrutivo que ela tem para nós, mulheres, que se converte em algo revoltante de tão ameno e insignificante para eles, os homens. – Raquel Dutra
Pieces of a Woman (Idem, Kornél Mundruczó)
Após a estreia no Festival de Veneza em setembro do ano passado, finalmente foi disponibilizado pela Netflix o sensível Pieces of a Woman. A trama da narrativa é marcada logo no início com uma tragédia durante um parto domiciliar que dá errado, retratado, inclusive, com um plano sequência teatral brilhante. Já Vanessa Kirby interpreta com firmeza uma mulher lidando não apenas com sua perda, mas também com o tratamento hostil e a insensibilidade de seu marido e mãe.
Ao contrário do esperado, pouco se tem do processo criminal contra a parteira (Molly Parker). O foco é justamente o longo processo que Martha, vivida por Kirby, passa nos próximos meses, a dificuldade de voltar ao casamento e o relacionamento conturbado com a mãe marcam esse drama sobre o luto parental, e a dor incomparável que Martha sente enquanto tenta voltar à realidade.
Além da atuação impecável da protagonista, outros nomes surpreendem no longa, Ellen Burstyn e Shia LaBeouf também impressionam com personagens que ora geram raiva, ora nos instigam certa empatia. Pieces of a Woman, dirigido pelo talentoso Kornél Mundruczó, não apresenta grandes reviravoltas ou a busca desenfreada por justiça, mas sim a calma e transparência de uma história sobre dor e arrependimento. – Isabella Siqueira
A Escavação (The Dig, Simon Stone)
Com a temporada de premiações encaminhada, a Netflix lança o drama de época A Escavação quase que atrás dos panos. A história e os conflitos são potentes, asseguro isso, mas o filme parece ter sido ofuscado pelo contexto em que foi inserido. Carey Mulligan, que será indicada ao Oscar por Promising Young Woman, estrela aqui ao lado do ardiloso Ralph Fiennes, no papel principal. É bom ressaltar que o roteiro adaptado do livro de John Preston narrativiza uma história real.
Fiennes vive Basil Brown, um escavador experiente e desacreditado pelos colegas, que é contratado para investigar montes de terra no terreno da bem afortunada Senhora Pretty, a personagem de Mulligan. A primeira hora de The Dig parece rumar para o entrelaçar espiritual dos protagonistas, mas assim que o objeto escavado vira de conhecimento da comunidade de arqueólogos, o longa dá um cavalo de pau.
O foco se afasta da díade Fiennes e Mulligan e mergulha em Lily James, o terceiro dos grandes nomes que estampa o pôster diurno do filme. Ela é Peggy, esposa de um dos escavadores, mas que acaba encontrando refúgio, físico e sentimental, no primo de Mulligan, um charmoso loiro (papel de Johnny Flynn) que logo, logo vai servir na Guerra. A Escavação tem tragédia, tem sentimentalismo e mostra que filmes do nicho de época e guerra não precisam se engessar em homens brutos e intrigas alemãs. – Vitor Evangelista
A Assistente (The Assistant, Kitty Green)
A arte imita a vida de diversas formas, e A Assistente mostra a mais perversa de todas elas. A diretora e roteirista Kitty Green buscou abordar sobre as denúncias do movimento Me Too sob uma visão subjetiva, na vivência da fictícia Jane (Julia Garner), assistente de um empresário do ramo cinematográfico. Sem grandes reviravoltas ou discursos de empoderamento, a narrativa vaga pelos mínimos detalhes da rotina da funcionária, que mostram muito sobre a verdade escondida por trás das cortinas de Hollywood.
O filme é quase uma obra documental, que transpõe acontecimentos da realidade na sua mais pura forma, e é isso que o torna tão cruel. Na ausência de muitos diálogos, os movimentos da trama são quase todos explicados pelo olhar e feições da protagonista, com a atuação majestosa de Julia Garner. A Assistente traz uma abordagem totalmente necessária ao se tratar de um tema tão delicado, o que retrata a importância de se ter mulheres contando histórias sobre outras mulheres. – Vitória Silva
O Tigre Branco (The White Tiger, Ramin Bahrani)
Quando um filme do naipe de Parasita estoura em audiência e crítica, sua transformação em token é inevitável. Então, não foi surpresa alguma ver O Tigre Branco ser referenciado como a versão indiana da trama de Bong Joon-ho. O subgênero de guerra de classes que coloca o termo ‘eat the rich’ na boca do povo é comum ao cinema fora do eixo norte-americano.
Esse lançamento da Netflix, que adapta o livro de Aravind Adiga, brinca com conceitos estereotipados da Índia, mas encontra, especialmente na sagacidade do protagonista Adarsh Gourav, a chave para se sobressair e alcançar o status de filmão. Ele interpreta o pobre motorista Balram, que trabalha para patrões corruptos e que abusam de sua boa vontade e espírito leve, mas não por muito tempo!
O Tigre Branco inverte a lógica da história recorrendo ao recurso de mostrar o coitado do garoto narrando sua história de ascensão. Agora, ele é um homem rico, de terno caro e cabelo penteado, mas como diabos ele chegou ali? A jornada é prazerosa, o trabalho coadjuvante de Rajkummar Rao e Priyanka Chopra Jonas enche os olhos, e The White Tiger merece ser a recomendação do momento no catálogo da Netflix. – Vitor Evangelista
Pai em Dobro (Cris D’Amato)
Não é de hoje que Thalita Rebouças nos presenteia com histórias fofas, conscientes e ainda divertidas. E, por mais que Pai em Dobro, adaptação do livro homônimo da autora pela Netflix, tenha todos esses elementos, é na estereotipização que ele se afunda. Ao acompanharmos a história de Vicenza em busca de seu pai, acabamos nos deparando com a reprodução de preconceitos que se destacam mais do que o roteiro.
Engraçado e leve, o filme é uma ótima pedida ao estilo Sessão da Tarde, trazendo Maísa que, pela terceira vez, interpreta uma das personagens de Rebouças, mas que, agora, está ainda mais confiante e natural em seu papel. E é exclusivamente pelo carisma dos atores que constroem a trama que nos apegamos a ela, permitindo que alguns furos passem como se não tivéssemos nem percebido. Mesmo preso em meio a características pouco originais e repetitivas que reproduzem estereótipos, Pai em Dobro ainda conquista o coração dos espectadores com sua delicadeza ao lidar com a ideia de família. – Ana Laura Ferreira
Locked Down (Idem, Doug Liman)
Se a pandemia inviabilizou algumas produções, outras só existem por conta dela. É o caso de Locked Down, a comédia de assalto ambientada na cidade de Londres nas primeiras semanas do isolamento social, e gravada em moldes pandêmicos. A história gira em torno de Linda (Anne Hathaway) e Paxton (Chiwetel Ejiofor), que, além de seus problemas emocionais pessoais, enfrentam um casamento de mais de dez anos em ruínas e permanecem juntos apenas por conta da quarentena. A atmosfera é a pandemia-da-classe-média mais familiar possível: explorar os cantos da casa, muitas vídeochamadas de trabalho, experimentar todas opções de delivery, matar o tempo fazendo pão caseiro e conhecendo os vizinhos de janela, e surtar vez ou outra. Exceto, claro, pela parte do roubo – assim espero.
Estruturalmente, o filme é tudo o que a gente espera de algo que seja fiel à nossa realidade pandêmica: nada demais e sem dramatizações desse período tão difícil e destrutivo. Justamente por ter consciência disso, Locked Down guarda boas reviravoltas, tensões e emoções para quem está preso no ciclo apático do isolamento social com a vazão que os personagens encontram para seu tédio e seus problemas pessoais e de relacionamento. De quebra, podemos matar um pouco a saudade de alguns atores queridos, com pontinhas de Lucy Boynton e Ben Stiller, e assistir ela, a majestosa Anne Hathaway, pirando com as emoções à flor da pele por estar presa em casa, batendo panela com os vizinhos como forma de agradecimento aos profissionais da saúde e envolvida em roubos de artigos de luxo mais uma vez. – Raquel Dutra
Os Pequenos Vestígios (The Little Things, John Lee Hancock)
Nos tempos em que vivemos, até o anúncio de elenco pode estragar as surpresas de um filme. Então, dando o play em The Little Things, quando percebemos que Denzel Washington é o policial veterano e Rami Malek o jovem detetive, já fica claro que o vilão virá na cadavérica e sebosa cara de Jared Leto, com pele de vampiro, cabelo oleoso e a profundidade artística de um requeijão fora da geladeira.
O filme, um dos primeiros lançamentos híbridos de cinema e HBO Max nos EUA, é um simples jogo de gato e rato investigativo. John Lee Hancock escreve e dirige, mas não fornece ao espectador suficientes elementos para gerar intriga, inquietação e o senso de recompensa quando a dupla da lei liga os pontos e descobre o culpado. O texto corre pelas beiradas, mas o trabalho de direção nunca nivela acima do comum, falta assinatura ou visão de autor.
O trio de, infelizmente, vencedores do Oscar brinca bem com a química e os trejeitos necessários para construir um feijão-com-arroz com ritmo acelerado e devidamente proveitoso. A surpresa de Os Pequenos Vestígios (o filme chega no Brasil em março) veio com o reconhecimento de Leto como Melhor Ator Coadjuvante no Globo de Ouro e no SAG. Quem sabe a quinta vaga da categoria no Oscar esteja reservada ao cantor, que venceu anos atrás pela caricatura de um personagem trans. The Little Things cria frases de efeito e ângulos na tentativa de se tornar icônico, e, quem sabe, no futuro ele consiga. – Vitor Evangelista
TV
High School Musical: A Série: O Musical (High School Musical: The Musical: The Series, 1ª temporada, Disney+)
Anos após o lançamento da trilogia de High School Musical que, além de uma legião de fãs, ganhou um spin off e até uma versão brasileira, a Disney nos presenteou, no final de 2019, com High School Musical: The Musical: The Series. Mesmo com mais de um ano de seu lançamento original, a obra só recebeu seu devido holofote poucos meses atrás, com a chegada do Disney+ ao Brasil.
Com o título tão grande quanto o talento do novo elenco, a série traz de volta East High, o mesmo local que foi sede das gravações originais. Norteada por um tom que não preza por qualquer semelhança com os filmes, a nova leva de Wildcats não procurou nos dar uma sequência, mas sim relembrar os queridinhos musicais de um modo jovem, atualizado e com todos os traços que nos fizeram nos apaixonar. A chegada de uma nova professora de teatro agita a escola para uma produção de High School Musical, que, ironicamente, ninguém ainda havia pensado. Em meio a toda a atmosfera musical são apresentados os novos personagens, bem como seus dramas adolescentes que nos prendem em frente às telas.
Uma das muitas revelações do elenco foi Olivia Rodrigo. A estadunidense de apenas 17 anos estreou em uma série da Disney no ano de 2016, porém só atingiu o estrelato ao interpretar a protagonista Nini Salazar-Roberts. Sendo peça principal de todo o drama teen, Nini tem seu coração partido e passa por um processo de autoconhecimento enquanto se envolve com as produções do musical, no qual recebe o ilustre papel de Gabriella Montez. Além de uma excelente atriz, Olivia também emplacou seu novo single, drivers license, que lhe rendeu posições de destaque no cenário musical. High School Musical: The Musical: The Series foi uma grande surpresa que fez a Geração HSM reviver os bons momentos, e ter um gostinho de quero mais. – Heloísa Ançanello
As Five (1ª temporada, Globoplay)
Após o sucesso de Malhação: Viva a Diferença, as Five, nome do grupo formado pelas protagonistas da edição, renderam um spin-off homônimo e consagraram a vigésima quinta temporada da novela, que é a única a se prolongar por mais de um ano. Seis anos após os acontecimentos que encerram a temporada, Benê, Tina, Lica, Ellen e Keyla se reencontram no velório da mãe de Tina. Com o fim do Ensino Médio, cada uma tomou um rumo, mantendo sua essência e personalidade. Tina passa pelo término de um longo relacionamento, enquanto Benê está apenas começando a descobrir mais da própria sexualidade. Ao mesmo tempo que Keyla sofre para conciliar a maternidade e o trabalho, Lica, ainda sustentada pela mãe, tenta descobrir o que quer da vida.
Até Ellen, que está noiva e terminando o mestrado nos Estado Unidos, não tem tudo resolvido como parece. Apesar de estarem em momentos distintos da vida, as cinco procuram se encontrar no mundo e relembram que as diferenças entre elas as unem e torna a amizade tão cativante para o espectador. Usando das situações inusitadas em que cada uma se encontra, o criador Cao Hamburguer traz temas comuns à geração Z, bem ilustrada pelas meninas, que são acompanhadas de personagens secundários já conhecidos e novos, prezando pela diversidade.
Vício nas redes sociais, sexualidade, as consequências da pornografia, relacionamentos amorosos e com os pais, drogas e problemas da vida adulta em geral são assuntos explorados francamente, sem tabu ou um moralismo desnecessário, ainda que com os limites da emissora. As Five estabelece um diálogo honesto com o jovem espectador: as meninas cresceram e amadureceram, mas continuam perdidas e em busca do seu lugar no mundo – assim como todos nós. – Vitória Lopes Gomez
Part 2: Jules – Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob (Episódio Especial de Euphoria, HBO)
Depois de ressoar em nós que Problemas Não Duram Para Sempre, com a primeira parte do Especial dedicada às indagações de Rue (Zendaya) sobre morte, deus e revolução em pleno Natal pós-recaída, Euphoria não tinha um trabalho fácil pela frente com o próximo episódio – como sempre, graças à profundidade com que escolhe tratar as coisas. O público esperava, a série pedia e a personagem merecia algo que atingisse a mesma profundidade emocional com Jules (Hunter Schafer), que, embora presente e marcante na trama da série, sofria suas dores sozinha de uma forma abstrata e distante desde a primeira temporada.
E então, o showrunner Sam Levinson e a própria Hunter trabalharam juntos no roteiro de Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob, a Parte 2 do Especial, e o resultado testifica mais uma vez a potência que Euphoria é em cada uma de suas esquinas. Na primeira sessão de terapia de Jules, uma fenda no espaço-tempo se abre para encontrarmos o fantasma que era a personagem e para descascar as camadas de traumas, medos, culpas e incertezas que a sufocavam. Longe dos clichês de episódios aprofundados no psicológico de seus personagens e de debates rasos que podem permear a existência de uma jovem trans na ficção, a performance de Hunter voa sem qualquer amarra para dissecar os sentimentos de sua personagem diante de temas como feminilidade, sexualidade, relações familiares e amorosas, além da própria ideia de amor.
Mas como tudo de Euphoria, as questões trabalhadas, as intenções e os impactos ainda vão além. Muito mais do que dar sustância para a personagem de Jules, a Parte 2 do Especial consegue transformá-la em uma pessoa de carne e osso que reage a todos os incômodos que a atingiram – e a nós também – em toda a sua conturbada história. E eu não sei como explicar isso em palavras. Cada episódio da série que tem a essência da nossa juventude em todo canto (roteiro, produção, atuação, trilha…) consegue ser uma revolução que precisa ser sentida. – Raquel Dutra
Night Stalker: Tortura e Terror (Night Stalker: The Hunt for a Serial Killer, Minissérie, Netflix)
A palavra que melhor define essa minissérie documental é cautela. Primeiro, para não glamourizar o assassino Richard Ramirez, o Night Stalker (ou Perseguidor Noturno). Segundo, para dar voz aos policiais e detetives, sob o ponto de vista técnico, e também para filhos e netos das vítimas, além de entrevistar alguns sobreviventes, focando no lado emocional da história.
Night Stalker: Tortura e Terror navega a partir dos anos 80, catalogando cada crime, visitando cada cena e nos levando no banco do passageiro da longa e entruncada investigação. Misturando imagens de documentos, filmagens da época e uma porção de fotos (censuradas, mas ainda muito gráficas), a direção de James Carroll e Tiller Russell sabe como quer contar essa delicada história.
As pouco mais de três horas, condensadas em quatro capítulos, passam num piscar de olhos, por mais que a série toque em tendões sensíveis, mas sempre tomando pausas para, assim como os que depõem em cena, deixar o espectador sentir uma parcela mínima do horror infligido. Como obra audiovisual, Night Stalker: Terror e Tortura é bem sucedido em todas as categorias, e como produto jornalístico e investigativo, o resultado é melhor ainda. – Vitor Evangelista
A Cor do Poder (Noughts + Crosses, Minissérie, Rede Globo)
Um dos maiores investimentos da Globo durante o ano de 2020 foi em sua plataforma digital de streaming de vídeos sob demanda, a famosa Globoplay. Além de melhorias técnicas, o foco da gigante de comunicação no Brasil foi e segue sendo em ampliar o seu catálogo de séries, filmes, documentários e outros produtos audiovisuais. Nesse cenário, e levando em conta as questões raciais em voga no mundo todo, a emissora decidiu comprar a obra britânica A Cor do Poder (originalmente Noughts + Crosses), produzida pela BBC One.
A obra, inspirada no romance de mesmo nome da autora Malorie Blackman, em um primeiro instante, chama a atenção ao retratar um mundo inverso da realidade onde as vítimas sociais são os brancos e não os negros. Mas ao longo da trama sofrida entre o casal shakespeariano, muitas coisas problemáticas vão aparecendo até tornarem a série um tanto intragável. Um exemplo é como os brancos da classe baixa reproduzem falas, estereótipos e comportamentos – inclusive estéticos – dos negros na realidade em que vivemos. Tudo isso faz da minissérie uma ilusão de existência de um racismo reverso. Talvez essa tenha sido a ideia, fazer com que os brancos se simpatizem pelas temáticas raciais os representando na situação de minoria. Ideia interessante, execução nem tanto. – Giovanne Ramos
A História do Palavrão (History of Swear Words, 1ª temporada, Netflix)
Essa série de comédia original da Netflix pode parecer uma bobeira fútil, mas é muito mais que isso. O programete, dividido pelos tais palavrões do título em capítulos de 20 minutos, usa de comediantes e especialistas em linguística para dissecar a origem, propagação, significado e impacto dos xingamentos.
Nicolas Cage apresenta com a virilidade que lhe é de direito, e as piadas chulas ganham contornos artísticos vindas de suas expressões faciais e modulações da voz. Uma porrada de comediantes famosos aparece para opinar e se divertir, mesmo os linguistas, cientistas e especialistas se esbaldam de bom humor e não demoram a cair na gargalhada.
A História do Palavrão busca encontrar as raízes e o reflexo na cultura popular dessas palavras proibidas. Afinal, é impossível falar sobre Fuck sem citar Samuel L. Jackson e o cinema negro dos anos 70 e 80, ou conversar sobre Bitch sem reconhecer a maneira como as mulheres e a comunidade LGBT ressiginificaram o termo, e seria ridículo discutir o uso de Pussy sem WAP de trilha sonora. Tudo numa aula de história, línguas e muito bom humor. – Vitor Evangelista
Shippados (1ª temporada, Rede Globo)
Quase dois anos após a sua estreia, Shippados finalmente foi transmitida na TV aberta. A série original do Globoplay trata sobre as relações amorosas na era digital, com foco nos personagens Rita (Tatá Werneck) e Enzo (Eduardo Sterblitch), que ficam frustrados por não encontrarem o seu par ideal em um aplicativo de relacionamento. A partir dessa premissa, surge uma linda história de amor e amizade.
Alexandre Machado e Fernanda Young, dupla da vida e dos roteiros, conseguiram dosar a quantidade ideal de comédia e drama, criando uma narrativa divertida, mas que também nos faz refletir sobre a superficialidade das nossas relações. E não poderiam ter escolhido figuras melhores para interpretar o casal protagonista, Tatá e Sterblitch tem a química e timing perfeitos, consequentes de seus anos de amizade. A sintonia se completa ainda mais com o resto do grupo de amigos: Brita (Clarice Falcão), Valdir (Luis Lobianco), Hélio (Rafael Queiroga) e Suzete (Júlia Rabello).
Shippados poderia ser colocada perfeitamente como uma adaptação de Os Normais para a atualidade, por relembrar a essência dos diálogos de Young e Machado na vivência de um casal e por servir de conforto em meio ao caos que enfrentamos diariamente. Fernanda, sem dúvidas, deixa muitas saudades. – Vitória Silva
Fate: A Saga Winx (Fate: The Winx Saga, 1ª temporada, Netflix)
Para as crianças dos anos 2000 que não conseguiam decidir entre ser a Flora ou a Stella, a Netflix anunciou que O Clube das Winx seria adaptado em uma série live-action. Quando o primeiro trailer saiu, o choque. Tudo bem que todo mundo esperava glitter e minissaias, mas aquela vibe dark com monstrões queimados não colou muito. No entanto, quando se trata de adaptações, é sempre bom manter a cabeça aberta. Afinal, se você quer assistir o material idêntico ao original, é mais fácil voltar a ver o desenho.
O problema de Fate: A Saga Winx não é necessariamente ser diferente da animação. O problema é ser ruim. Pavoroso. Chato. Mal desenvolvido e sem sustentação. As fadas são sonsas e irritantes e os especialistas são tão cativantes quanto pombos em um terminal de ônibus. A história passa a impressão de que poderia ser facilmente resolvida com um diálogo, já que os antagonistas vão oscilando entre diretoras vivas e mortas, uma fada desequilibrada cujo único traço de personalidade é ser desequilibrada e uma rainha que não sabe lidar com a filha adolescente (ou não, já que a Stella se veste como uma CEO de 40 anos).
Nem tudo é uma desgraça, a mente que criou aquele triângulo amoroso ridículo e infantil entre Sky, Bloom e Stella também conseguiu misteriosamente criar Musa, que conseguiu o posto de, literalmente, fada sensata. Musa é a única personagem que gera algum tipo de interesse no espectador, inclusive quando engata um relacionamento com Sam, que é o mais fofo da série (tá, não precisa de muito para conseguir o posto). Apesar das polêmicas que envolveram Fate: A Saga Winx desde o anúncio do elenco, a sacada de homens fadas e mulheres especialistas foi satisfatória. E, bem… só. O resto a gente ignora. – Caroline Campos
(Des)encanto (Disenchantment, Parte 3, Netflix)
Após ficar mais de um ano sem lançar episódios novos, a terceira temporada de (Des)encanto finalmente chegou à Netflix para trazer a dose de humor ácido que janeiro precisava. Sem desapegar da particularidade sarcástica de Matt Groening, a animação explorou novas aventuras, reinos e personagens em cenas que revelam mais maturidade na narrativa.
Com a instabilidade tomando conta, não só da Terra dos Sonhos, como do Rei Zog (John DiMaggio), a Princesa Bean (Abbi Jacobson) assume o trono e começa uma jornada de evolução e autoconhecimento que vai de enfrentar conflitos a viver um novo amor, e insere um ponto de vista um pouco mais sóbrio para a produção. A nova fase do universo também é marcada por carregar temáticas e alusões muito bem trabalhadas sobre questões como o trabalho nas indústrias, a desigualdade de gênero e a situação política dos Estados Unidos.
Os pontos negativos ficam por conta dos muitos fios ainda soltos, e da participação fraca e repetitiva dos também protagonistas Elfo (Nat Faxon) e Luci (Eric André), que apareceram com menos relevância nesses 10 episódios. Ainda sim, (Des)encanto tem potencial para devolver as coisas aos trilhos na próxima temporada, por enquanto, a série se mantém como um ótimo entretenimento com audiovisual maravilhoso e comicidade inteligente que vale a pena assistir. – Jamily Rigonatto
Lupin (Parte 1, Netflix)
Lupin, a nova empreitada francesa da Netflix criada por George Kay e François Uzan, é uma série plural. Digo plural porque ela é capaz tanto de agradar aquele espectador mais despercebido e casual, quanto o mais atento. O primeiro, fisgado pela proposta e pela trama, recebe twists satisfatórios e sequências de assalto divertidas, protagonizados com versatilidade por Omar Sy (de Intocáveis). O segundo, mais exigente, percebe alguns detalhes mais interessantes e sutis, mas que perdem força ao longo dos episódios, dando lugar a uma trama simples e, infelizmente, mais desinteressante e pouco inventiva.
A sensação que fica é que, depois de um primeiro episódio feito com maestria, que contextualiza as motivações do protagonista intercalando passado e presente enquanto nos apresenta um plano de assalto coerente e bem executado, e ainda arranja tempo para inserir um subtexto social marcante, o desenvolvimento da trama não recebeu o mesmo carinho da produção. Os próximos capítulos têm sequências muito menos inspiradas e muito mais convenientes, e a história ganha contornos mais clichês e parece enrolar para chegar onde quer, fugindo da proposta inicial (o gênero de assalto) e embarcando num drama que se sustenta, mas não tem impacto. No fim, a série acabou por construir em mim expectativas que não conseguiu cumprir. – Flora Vieira
Cobra Kai (3ª temporada, Netflix)
Cobra Kai já é um fenômeno do streaming e os espectadores realmente abraçaram a série. Desta vez, Jon Hurwitz, Josh Heald e Hayden Schlossberg optaram por resgatar as personagens essenciais na construção do passado de ambos (Johnny e Daniel). A empolgação da nova temporada acabou, também, sendo enxergada como motivo de descontentamento pelo público.
Fato é que a terceira temporada soube conversar com os problemas mal resolvidos da anterior, começando pela maneira como Daniel Larusso se portou diante de seus conflitos financeiros e familiares. A escolha da filmografia e fotografia foi espetacular. Rapidamente percebemos o espaço/tempo das cenas, sem nos desviarmos necessariamente do contexto onde são narrados os fatos apresentados.
Há também de se elogiar a trilha que, novamente, soube selecionar o melhor do rock old school dos anos 1980. Dee Snider teve uma participação extraordinária, que representa o sentimento de dever cumprido para o fan service. Além disso, podemos transitar por peculiaridades nunca antes esclarecidas, a exemplo do passado sombrio de Kreese. Em suma, os produtores foram ousados, brincaram novamente com a cronologia dos acontecimentos e trouxeram o melhor da fusão entre os millenials e os old school em prol da mesma causa: “cobras never dies”! – Gabriel Gomes Santana
Faz de Conta que NY é uma Cidade (Pretend It’s a City, Minissérie, Netflix)
O título curioso brincando com a metrópole mais cobiçada do mundo e a assinatura de Martin Scorsese tornam Faz de Conta que NY é Uma Cidade uma das produções mais organicamente atraentes de todo o catálogo da Netflix. Sem muitas promessas, a série documental nos apresenta à Nova Iorque de uma das melhores amigas do diretor, a escritora e humorista Fran Lebowitz, através das suas opiniões impopulares sobre questões corriqueiras da cidade, como arte e cultura, mobilidade urbana, dinheiro e economia, que vez ou outra desembocam em lembranças pessoais e devaneios aleatórios sobre uso da tecnologia, vícios e até as impressões da intelectual sobre as Kardashians.
A liga de tudo é a conexão da dupla, que vem da combinação da personalidade disruptiva de Fran e da admiração e confiança que Martin conserva pela amiga, que, mesmo tímidas, são completamente visíveis em todas as vezes em que o diretor gargalha das ideias e histórias malucas de Lebowitz. Nem sempre o espectador pega todas as piadas internas dos dois, que cultivam a amizade há mais de 50 anos e conhecem a cidade como a palma de suas mãos, mas a diversão genuína que os dois emanam quando estão juntos já é mais do que o suficiente para ganhar quem está do outro lado da tela.
Tudo fica ainda mais único quando o caráter documental de Scorsese entra em cena, atingindo o feito majestoso de transpor aquela identidade mais pura do cinema clássico que vem à cabeça quando pensamos no nome do diretor para uma série de TV não-ficcional de 30 minutos. E falando de riqueza cinematográfica, a produção ainda inclui recortes de outras entrevistas divertidíssimas e imperdíveis que Fran forneceu para outros grandes nomes do cinema estadunidense, como Spike Lee, Olivia Wilde e Alec Baldwin. Divertida, inteligente e cheia de personalidade, Faz de Conta que NY é Uma Cidade tem tudo para ser uma das melhores produções originais da Netflix do ano. – Raquel Dutra
Pose (2ª temporada, Netflix)
A segunda temporada de Pose finalmente chegou ao serviço de streaming mais queridinho do mundo, com atraso de mais de um ano. Transmitida originalmente pela FX em meados de 2019, o segundo ano dessa que é uma das séries mais importantes da atualidade foi lotado de novas emoções e novas narrativas. Diferentemente dos episódios anteriores, que seguiram uma cronologia mais fechada (já que existia a possibilidade de nem existir continuação), na segunda temporada podemos passear de forma mais livre nos eventos do universo da série.
Nos novos rumos, vemos Blanca Evangelista se envolver com o grupo ativista ACT UP, que lutou pela conscientização do HIV e da AIDS na década de 90 em todo o mundo. Também a assistimos enfrentar o mercado imobiliário transfóbico e racista de Nova Iorque ao tentar alugar um imóvel para montar seu salão de manicure. No mundo dos balls, a esperança de reconhecimento nasce ao Madonna lançar sua icônica Vogue.
Novos romances desabrocham e novos medos também. Com o avanço da epidemia do HIV, assistimos apreensivos outros personagens se tornarem soropositivos, e tememos por aqueles que já estão em estados mais avançados da doença. O talentosíssimo elenco mostra, mais uma vez, atuações viscerais, que foram completamente esnobadas nas principais premiações. Com inspiração na morte real de Venus Xtravaganza, nos despedimos de uma personagem extremamente querida, com direito a um emocionante número musical bem à la Ryan Murphy. Pose é um clássico instantâneo, e a cada novo capítulo assistimos a história ser feita na TV. A terceira temporada vem aí para provar isso mais uma vez. – Jho Brunhara