Ma Ferreira
Em 1988, surgia um novo ícone do Cinema de Terror, uma figura dócil, mas, ao mesmo tempo, demoníaca: Chucky, o brinquedo assassino. Aterrorizando sonhos de muitas crianças dos anos 1990, o boneco entrou para o rol dos psicopatas da cultura pop e ganhou uma franquia de oito longas, um curta-metragem e, atualmente, uma série, que já está renovada e sua segunda temporada sai este ano. A história original de Don Mancini foi ressuscitada e aprofundada no seriado Chucky, voltando às origens do assassino Charles Lee Ray, mostrando sua trajetória até o que se tornou e seus atuais planos.
A narrativa começa quando Jake Webber (Zackary Arthur) compra um boneco da linha Good Guys em uma venda de garagem. A partir de então, acompanhamos a vida do garoto, que está imerso em problemas, como diferenças com seu pai, bullying, homofobia e a dificuldade em fazer amigos. O cenário se torna ótimo para que Chucky se revele a Jake e tente fazer do adolescente um psicopata, convencendo o mesmo a eliminar de sua vida todos aqueles que lhe fazem mal. Apesar da grande tentação, o menino mantém sua essência, e é então que o inferno em sua rotina começa.
Com o uso de vários flashbacks, vemos Charles traçando seu caminho de crimes desde à infância, com diversos personagens que passaram por sua vida e foram extremamente importantes para a narrativa da franquia, como Andy Barclay (Alex Vicent), grande inimigo e seu eterno antagonista, e Tiffany Valentine (Jennifer Tilly), seu imortal par romântico. Não é necessário ver os filmes para conseguir entender Chucky, mas, ao ter em mente os acontecimentos anteriores a aparição de alguns componentes e caminhos que escolhem, auxilia a trama a fazer mais sentido. Entretanto, cabe notar que o filme Brinquedo Assassino, de 2019, não é considerado canônico neste cenário.
Don Mancini, criador da saga original, conseguiu realizar nesta série o que não lhe foi permitido seguir nos filmes: a visão cômica e ao mesmo tempo profunda sobre a vida de Chucky. Mesmo não participando de continuações da franquia, o roteirista se apropriou dos escritos anteriores para dar vida e sentido ao universo de Charles Lee Ray. O seriado, que vai e volta no tempo, nos deixando migalhas sobre os acontecimentos, conta desde os assassinatos que Charles cometeu em sua infância e adolescência, os seus conhecimentos sobre ritual vodu que o permitiram passar a alma para o brinquedo, até os personagens que o ajudaram ou tentaram impedir seus planos.
Acompanhamos também Andy Barclay, que volta como caçador de Chuckys, e é interpretado por Alex Vincent, mesmo ator que deu vida ao personagem no primeiro filme. Os fãs da franquia se empolgaram com a presença de personagens icônicos da saga representados por seus intérpretes originais, além de verem cenas e discussões atuais levantadas de maneira descontraída, com mortes no estilo característico do brinquedo assassino, e com muitos desfechos que os longas não puderam mostrar sendo revelados.
Com esse clima nostálgico, a primeira temporada conseguiu cativar novos admiradores e entregar o melhor que podia aos seus antigos seguidores. Chucky traz ótimas discussões, com críticas à hipocrisia da família tradicional americana, presente, por exemplo, na explanação do contexto familiar da personagem Lexy Cross, interpretada por Alyvia Alyn Lind. De modo a não se levar a sério, ela também brinca e satiriza as problemáticas, mas defende suas pautas como a autoaceitação, a amizade e discussões acerca do universo queer. Não podemos esperar menos da próxima temporada do que mortes bizarras, falas escrachadas do boneco e muita confusão.
A produção apresenta pontos socialmente relevantes, como a divergência de Jake e o pai, que não aceita a sexualidade do mesmo, em que ainda há a descoberta do amor que o garoto sente por um amigo. O bullying, a homofobia, as desavenças que o menino passa e a revolta com as ações do boneco são superados pelos laços de amizade e pela união de forças no combate ao mal. Chucky é de grande relevância LGBTQIA+ e conseguiu amadurecer a discussão dessas questões, deixando o humor escrachado de alguns momentos para falar sério.
Don Mancini sempre tentou envolver a narrativa com personagens de diversas sexualidades e com diferentes expressões de gênero, sendo assim, apesar de muitos espectadores não terem se atentado, Chucky nunca apresentou um discurso heteronormativo, como algumas produções de terror costumam realizar. Ter um protagonista assumidamente gay e que sofre socialmente com isso, além de ser uma crítica à falsa ideia que se tem de que os EUA aceitam a diversidade, é também uma forma de mostrar por meio dele, e demais personagens que são do cenário LGBTQIA+ da trama, que essa diversidade existe, deve ser respeitada e apresentada cada vez mais em grandes produções como esta.
Uma das grandes questões da franquia é a visão de que o queer não é sinônimo de mal. Muitas narrativas de horror, terror e fantasia trazem os personagens sombrios e bizarros como sendo pertencentes a comunidade LGBTQIA+, reforçando, assim, estereótipos. O que Chucky faz é romper com essa visão, mostrando que ambos os lados apresentam e aceitam a diversidade. É fascinante perceber como o terror se renova sempre, trazendo críticas de maneira sutil, cômica, irreverente e dialogando com aqueles que conseguem enxergar além das manchas de sangue.
O ponto alto da série é a mistura do velho humor de Chucky com as discussões atuais e o retorno dos personagens ícones da saga, porém esse também é seu ponto baixo, pois eles poderiam ser melhores explorados na história e não apresentados apenas como um fanservice. As figuras aparecem mais envoltas na narrativa nos episódios finais e com soluções rápidas que nos deixam querendo saber mais e como eles estão relacionados aos planos de Chucky. Mas resta-nos esperar que nesta segunda temporada eles retornem mais envolvidos aos acontecimentos e apresentando respostas às nossas dúvidas.