Jho Brunhara e Vitor Evangelista
A primeira temporada de Canada’s Drag Race terminou mais amarga do que deveria. Apesar do início extremamente promissor e dos episódios que facilmente desbancam as edições mais recentes da versão americana, o cansaço causado pelos apresentadores de primeira viagem e a constante imitação dos trejeitos de RuPaul Charles mostram que o problema do sequilho só é parcialmente pela quantidade de goiabada. A falta de consistência do trio da bancada não foi um empecilho só para as competidoras. Dez episódios depois, a franquia nos relembra que Drag Race premia muito mais o barulhento e chamativo do que o melhor histórico.
Só nesse ano, as duas vencedoras do reality não ostentavam o melhor track record de vitórias. E isso não é um problema: tanto a coroação de Jaida quanto de Shea são inquestionáveis. Elas passaram por cima do pequeno detalhe de não serem as ‘melhores’ da temporada, seja pelos visuais na passarela ou pela performance nos desafios. Até mesmo nas duas ocasiões onde Essence Hall e Couleé aterrissaram no bottom, foi criada uma narrativa de redenção e merecimento. Mas agora, na terceira investida da franquia em 2020 (sem contar o Secret Celebrity), a coroação de Priyanka soa quase inadequada pro atual panteão de vencedoras do programa.
Calma lá: isso não quer dizer que Priyanka não é talentosa, muito pelo contrário. A queen de Toronto é um furacão de carisma, e seu star-quality era mais que evidente a cada take no confessionário. Porém, na competição, Pri naufragou exatamente onde colocava suas esperanças, os desafios de comédia. Com um passado de apresentador de programa infantil, ela se surpreendeu caindo nas piores da semana duas vezes, no Snatch Game e no Concurso de Beleza. Desafios carregados de veia cômica que ela deveria tirar de letra, principalmente para quem cantava aos quatro ventos seu talento na improvisação e no humor. Do trauma de quase ser eliminada, Priyanka encontrou luz em seus lip syncs geniais.
Enquanto isso, Rita Baga, outra finalista, teve um começo morno para se conectar com o público e com as outras queens. Como um cavalo de corrida treinado por anos, a francófona colocou o prêmio acima de tudo e seu profissionalismo engoliu qualquer traço de vulnerabilidade. Exatamente por se tratar de uma temporada inaugural, a atitude da mãe da Haus of Baga deu certo, e na metade da temporada já colecionava três vitórias, sendo a favorita para Coroa. Mas Rita entregou seu casco duro junto com sua estabilidade, e levou dois socos na reta final, estragando seu momentum.
O que diferencia a franco-canadense de Priyanka é que apesar dos tropeços, Rita mostrou excelência em todas as áreas que o programa avalia. Brilhou no Snatch Game com sua incrível imitação de Edith Piaf, venceu dois desafios de costura e divertiu nos de comédia. O mais importante aqui, ela mostrava as nuances e a amplitude da arte drag que a competição exige, manobras que vencedoras como Chad Michaels e Jinkx Monsoon exibiram anos atrás. Até seus lip syncs deixaram claro que a queen estava disposta limpar o chão do palco e rasgar suas roupas se fosse necessário. Quem sabe, se Rita Baga apostasse em visuais mais fora da caixinha, a sua vitória estaria no papo.
Sem RuPaul no centro da bancada, o Canada’s Drag Race juntou três forças nativas para comandar a coisa toda. A Rainha do Norte e ex-competidora Brooke Lynn Hytes assumiu a persona drag dos jurados, ao lado de Jeffrey Bowyer-Chapman, figura conhecida em Drag Race, e da experiente modelo Stacey McKenzie. A ausência da imagem desgastada de RuPaul foi um alívio à primeira vista. Os capítulos iniciais, onde o trio se revezava no ateliê e lufava ar aos pulmões enferrujados da franquia foram muito agradáveis, principalmente para quem assistia daqui de fora.
Para as 12 competidoras, porém, parece ter sido difícil solidificar a imagem dos jurados como intocáveis. Brooke Lynn era constantemente gongada por ter saído perdedora da 11ª temporada, exatamente pelas queens verem nela uma colega competidora, e não uma força maior como Mama Ru. É quase como se RuPaul saísse no fim de semana, deixando a filha mais velha no comando, nunca será a mesma coisa. Quando falamos de Jeffrey, o buraco é mais embaixo.
Principal alvo de críticas dos fãs, o ator chegou a desativar seu perfil do Twitter após ameaças de morte e ataques de ódio. É certo que suas críticas e apontamentos como jurado beiravam o ridículo, até a perseguição com algumas queens. A maquiagem à la Euphoria-sem-orçamento não ajudava em nada, e Chapman cavou a própria cova no programa. O inaceitável aqui já virou uma constante na franquia: o racismo escancarado de quem assiste e se acha no direito de acabar com a vida de alguém. Widow Von’Du, da temporada 12, declarou que vai dar um tempo da arte drag depois das constantes ofensas que ouviu nos últimos meses.
Todos os equívocos dos jurados foram feitos dentro do ecossistema do reality. A falta de expressão de Brooke Lynn não apaga seu talento como dançarina e performer. A proeza de Chapman de imitar uma RuPaul pior que a Trixie não anula seus êxitos como ator e modelo. Nessa bagunça, quem saiu “ilesa” foi Stacey. Muito mais centrada que seus colegas, McKenzie não operou em meia-fase ou forçou trocadilhos. No fim, nada disso importou muito. As decisões da bancada se saíam bem quando as escolhas de eliminação eram óbvias e, ao passo que as competidoras fillers ouviram seu Sashay Away, a carniça do alce começou a feder.
Em 2009, na estreia do programa, RuPaul e os companheiros de bancada também não sabiam como apresentar a franquia que em alguns anos se tornaria febre mundial. A Supermodel of the World era a mais desconcertada, apontando críticas vazias, sendo desnecessariamente grossa com as queens e tendo até mesmo problemas para se portar como jurada. Como esquecer dela praticamente sussurrando os jargões antes da eliminação? Muito diferente de como se deu nos anos seguintes, quando passou a impor sua voz.
Apesar dos jurados do Canadá terem como referência as outras 18 edições com RuPaul no comando, é normal que eles pareçam perdidos ou que não encontrem o tom certo de primeira. Mas, ao mesmo tempo, isso não deveria justificar certos equívocos, principalmente ao avaliar as participantes. Constranger Ilona por ter um corpo fora dos padrões, cobrar Lemon de algo em uma semana e não enxergar a mudança na seguinte, entre outros, são deslizes que não aconteceriam com uma pitada de bom senso.
Em episódios como Star Sixty-Nine e Miss Loose Jaw, alguns comentários de Brooke passaram a sensação de terem sido feitos por pura maldade. No fim do dia, Canada’s Drag Race ainda é apenas uma competição, e onde mais fracassa é em copiar o modelo americanizado de jurados de personalidade forte (lê-se malvados), mas deixar de fora uma peça crucial: o alívio cômico. Canada’s não tem um Carson Kressley, e passa longe de ter um Ross Matthews. O que vemos são apenas xérox desbotadas de RuPaul e Michelle Visage. Quem não queimou as panquecas foi Stacey, mas infelizmente esse não é o programa de uma mulher só.
Canada’s Drag Race acerta em dar um papel de destaque ao jurado convidado, para que não seja apenas uma aparição que recita piadas prontas e interage de forma artificial com RuPaul. No Norte, a visita é quem abre a porta, faz o café e acende a lareira. Além de apresentar o trio, é o guest quem brinca com os trocadilhos da semana, chama a categoria da noite e ainda tem a honra de declamar o icônico “e que a melhor mulher vença!”. Quem merece destaque dessa leva de hosts é Allie X, Amanda Brugel (de The Handmaid’s Tale), e a lendária Michelle Visage.
A imprevisibilidade do progresso das competidoras revigorou o espírito do reality. Enquanto na terra do Tio Sam assistíamos já esperando que Gigi Goode e Miz Cracker se safassem do Bottom 2, o Canadá não cansava de dar rasteira: Lemon, que sobreviveu ao primeiro lip sync, ganhou dois maxi-challenges, além do reading. Por outro lado, Kyne, a auto proclamada bitch da temporada, ruiu na segunda semana. E, pela primeira vez na herstory, a vencedora da temporada dublou duas vezes. Até então, winners como Raja, Sharon e Bob The Drag Queen, correram risco de ser eliminadas em no máximo uma ocasião.
Priyanka fez do ponto que deveria ser sua maior fragilidade na competição sua anti kryptonita. O número de I Drove All Night se mostrou digno de um double-shantay (quando ninguém é eliminado), e em Hello, a rainha mostrou que não precisa de espacates e piruetas para vencer, ao injetar comédia no momento chave da música de Allie X. Aliás, Canada’s humilhou sua irmã do Sul no quesito dublagem. Tanto a décima segunda temporada quanto o All Stars 5 não emplacaram nenhum lip memorável, e até a escolha de músicas foi terrível.
As queens do Norte também entregaram um dos melhores números musicais da franquia, com a imponente Not Sorry Aboot It. A diss-track entre girl groups uniu uma batida viciante a versos fortes e pegajosos, graças a criatividade das competidoras. O Canada’s Drag Race condensou ótimos desafios com mini-challenges inventivos e categorias da passarela que muito impressionaram quem assiste. O terceiro capítulo ilustrou uma runway capilar, sob a alcunha Québec-ky With The Good Hair, aludindo ao poderoso Lemonade de Beyoncé.
Os episódios de 1 hora se esbaldavam nas minúcias de Drag Race. A abertura pós-eliminação, a leitura das mensagens no espelho, passando pelos mini-desafios, os maxi e a passarela, ainda sobrava espaço para o Untucked. A cereja do bolo ficou à cargo das dublagens, dessa vez estendidas, pisando no calo do programa original que adora picotar os momentos musicais. Onde diabos foram parar os minutos que RuPaul insiste em passar a faca?
As discussões levantadas no programa parecem menos roteirizadas que os dramas da versão original. Violência doméstica, assédio sexual e homofobia foram algumas das problemáticas e tabus que as queens abriram o coração sobre. A representatividade de Ilona Verley, queen first nation e two spirits, foi outro passo para o discurso de aceitação que o programa de RuPaul espalha desde 2009.
Num tratamento mais humano e atencioso, o programa amparou Juice Boxx logo no primeiro episódio, quando ela experienciou um ataque de ansiedade no palco, prestes a receber a crítica dos jurados. Grande avanço para o mesmo programa que ridicularizou Max em 2015. A queen da sétima temporada chegou a encerrar o contrato com a marca de RuPaul devido ao tratamento porco e desleal que sofreu da edição, pintando-a como histérica.
Outra que sofreu pela pressão do reality foi Tynomi Banks. Com o nome mais conhecido do elenco dentro do país, a drag penou a se adequar à dinâmica da competição e acabou não acumulando êxito algum, sendo eliminada no agitado lip sync de Girlfriend, de Avril Lavigne. Tynomi é mais uma prova de que Drag Race avalia suas queens apenas dentro dos parâmetros do reality, e nunca será atestado de competência e validação fora dos estúdios da World of Wonder.
A visita ao Reino Unido ano passado já confirmou que existe muito talento para além dos Estados Unidos. Da mesma maneira que a pontinha de Katya saudou as irmãs inglesas, a inserção de Crystal, nativa do Canadá, é um aceno que o RuPaulverse está todo conectado. Outra queen que performa longe da terra natal é Lemon, residente em Nova Iorque. Com apenas 24 anos, a experiência da Grande Maçã nas costas engrandeceu sua participação e sua saída prematura foi um golpe doloroso. Lemon não é apenas um rostinho bonito, ela dança, atua, canta, gonga, e sua JoJo Siwa foi um ponto de virada na competição.
O elenco de Canada’s Drag Race não era composto por one trick ponies, muito pelo contrário, as personalidades do Norte não cansaram de mostrar versatilidade e singularidade. Anastarzia Anaquway foi a primeira queen na herstory do programa a não deixar uma mensagem de despedida no espelho. BOA chegou como candidata a primeira eliminada, mas conquistou o coração de suas colegas e do público, até os jurados se cansarem de sua comédia Zorra Total e seus visuais camp. Kiara, no outro extremo, esbanjou apatia – exceto em seu único grande momento, o verso em Not Sorry Aboot It.
RuPaul pode ter muitos defeitos como jurada, mas raramente é injusta. Seu afeto por Vanessa Vanjie Mateo e Heidi N Closet não influenciou no tempo que passaram na competição. No Norte, o trio comandante não jogou de forma limpa, como quando envolveram Scarlett Bobo numa capa de proteção. O crime hediondo veio em dose dupla no clássico desafio do makeover, quando o combo maiô verde fluorescente e jaqueta de couro com franja de ir no rodeio lhe rendeu uma posição alta na semana. E no desafio seguinte, o aguardado The Snow Ball, Bobo garantiu sua posição na final ‘costurando’ um top e uma calçola, um visual que seria detonado em qualquer outra ocasião da série.
A vencedora Priyanka recebeu botes salva-vida dos jurados, também. O favoritismo por parte de Brooke Lynn ficou escancarado semana após semana. É difícil esquecer das várias ocasiões em que Pri usou sua frase de efeito (‘qual meu nome?’) e Hytes correu pra gritar a resposta de volta. A vitória da queen quebrou outra ‘maldição’ que Drag Race mantinha há alguns anos: a da narradora da temporada. Depois de Katya, Shangela e Jujubee assistirem impotentes a Coroa de Grande Estrela parar na cabeça de outra competidora, a canadense adicionou ao currículo o cargo de voz da season, adendo ao título de Primeira Super Estrela Drag do Canadá.
Eu sei que você está esperando para ler sobre a Jimbo. Das 175 queens que já entraram no ateliê, a drag clown é única. Transbordando capacidade metamórfica, Jimbo ia de titio de perucas para dominatrix ultrassexy num piscar de olhos. Mesmo que a maquiagem não chegasse a altura de outros talentos, sua comédia, atuação, habilidades de costura, criatividade e exímia qualidade de estrela fazem de seu nome um clássico instantâneo. Alguém que veio para ficar, dentro da mitologia de Drag Race e, principalmente, fora dela.
A caça às bruxas promovida pelos jurados do painel saiu pela culatra. Sim, Jimbo perdeu, mas aqui fora, quando a corrida realmente começa, ela já é a vencedora. Favorita dos fãs logo de cara, cada semana de injustiças fortalecia a imagem de mártir, que foi consumada em sua eliminação. E de tanta cacetada, Jimbo entrou na defensiva, e assumiu uma postura amarga e arrogante. Independente do que ela apresentasse na passarela, a bancada procurava pelo em ovo para criticá-la. O cúmulo foi no makeover, intitulado A Family Affair (Um Caso de Família). A rainha palhaça foi comida viva na passarela por apresentar um rolo entre irmãs. E seu maior erro? Estava sexy demais. Desde quando isso é um problema em Drag Race?
A rejeição de Jimbo por parte de Brooke Lynn faz o mínimo de sentido: a Rainha do Norte preza muito mais por uma drag de excelência e costumes, dos chamados concursos de beleza. Mas a inaptidão de Hytes de separar seus gostos pessoais da competição escancara sua falta de tato para ocupar uma das cabeças de RuPaul. Para o show, e também para a drag clown, ter sido eliminada antes do Top 3 foi o melhor cenário, sem expectativas de ganhar a Coroa. O programa oxigenou a imagem de Jimbo para os espectadores, fechando seu arco de perseguição.
Canada’s Drag Race tem muito o que aprender com RuPaul. Não só com o reality americano, mas principalmente com o apresentador. Julgar e ponderar uma competição de drag queens requer sangue frio e a cabeça no lugar. Não existe espaço para avaliações a partir de emoção, favoritismo ou, sem mais nem menos, falar que uma competidora “não é nem um pouco glamourosa”. Por mais que o programa crie essa mística de personagens e personalidades de batom e peruca, ainda são pessoas embaixo dos tecidos, do padding e do tucking.
A vitória de Priyanka é agradável aos ouvidos e leve ao coração, mas em momento algum corrige o desvio de curso que a temporada inaugural do Canadá tomou. A frase de eliminação de Lemon já cantou a bola de como ficaríamos no final da temporada: vamos nos sentir amargos para sempre. Ou, pelo menos, até RuPaul botar ordem na casa.