Raquel Dutra
A história de uma jovem que muda de rumo a partir de uma tragédia dentro de um contexto familiar do século 19. Isso é tudo o que Tea Lindeburg precisa para revelar a metafísica do patriarcado e a epistemologia da religião em Assim Como no Céu. Celebrado no Festival Internacional de Cinema de Toronto e premiado no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián, o filme de estreia da diretora dinamarquesa chega ao Brasil pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, numa manifestação crítica e estética tão implacável quanto as determinações sociais e religiosas que são o cerne de sua criação.
Aqui, estamos junto das 24 horas mais importantes da vida de Lise (Flora Ofelia Lindahl), uma típica irmã mais velha de 14 irmãos que aos 14 anos é a primeira mulher de sua família a frequentar a escola, graças ao apoio da mãe (Ida Cæcilie Rasmussen). Cheia de esperanças para o futuro e prestes a deixar sua casa para se dedicar aos estudos, a garota percebe que sua vida está prestes a mudar pelos motivos errados: quando sua mãe entra em trabalho de parto para dar a luz ao 15ª filho, Lise sente que está perto de se tornar a mulher da casa.
O pretexto é perfeito para as linguagens do Cinema dinamarquês, que se derrama em dramas psicológicos meticulosamente controlados. De tão mundano e aplicado, o trabalho cinematográfico de Assim Como o Céu beira o horror. Sem apelar para críticas rasas e caminhos simplistas, o filme de também não é nada sutil mesmo quando imerso numa complexa ironia ou entregue a uma contundente premonição. O texto e a direção de Tea Lindeburg preferem usar sua brutalidade sublimada no agir verossímil de suas personagens – com destaque, claro, para a(s) protagonista(s).
A genialidade de Assim Como no Céu é totalmente focada na atuação das suas mulheres e nas relações estabelecidas com o poder masculino que ali impera. Os representantes dessa força patriarcal são periféricos ao filme: o pai da família é ausente, o médico da cidade é ineficiente e os funcionários do local são inconstantes. O outro lado daquele sistema, por sua vez, está fazendo tudo acontecer, através de um elenco brilhante e vasto, excepcionalmente encabeçado por Flora Ofelia Lindahl.
A juventude da protagonista de Assim Como no Céu não poderia significar uma ausência de responsabilidade. Lise é uma garota que existe exatamente entre a mocidade e a maturidade, e a atriz que a trouxe para a tela de Tea Lindeburg sabe encontrar o equilíbrio difícil porém ordinário que orquestra toda a narrativa do filme. É visível que o trabalho foi conjunto, pois o texto de Lindeburg não corre na frente da atuação de Lindahl. Como toda boa atriz, ela não baseia a personagem na falsa fortaleza das palavras, mas usa em Lise tudo o que está ao seu favor, muito além da linguagem verbal. A personagem, embora radiante e madura, é contida, obviamente, pelas condições às quais é submetida.
A câmera de Marcel Zyskind não presta atenção em borboletas presas atrás de janelas à toa e a composição de Jesper Clausen não usa tons suaves em momentos terríveis por mero capricho. A jornada daqueles 90 minutos apresenta um processo de aceitação de um amadurecimento forçado e de assimilação de responsabilidades compulsórias. O segredo de Tea Lindeburg é basear tudo o que ela trabalhou ao longo daquelas 24 horas na vida de Lise nos caminhos inerrantes de elementos tão antigos quanto a humanidade. A morte? Sim. A religião? Também. Mas, quando lá em seus primeiros minutos, o filme se apresenta junto de uma chuva de sangue que cai sobre o rosto de uma jovem solitária, perdida e amedrontada, nós já sabemos qual é o final da história. E é claro: ele é Assim Como no Céu.