Vitória Silva
Dos tipos de representações que temos em relação à maternidade no Cinema e na TV, podemos citar vários. A mãe superprotetora, a mandona, a descolada, e, é claro, a clássica mãe que abdica de todas as suas vivências pessoais pelas conquistas dos filhos, ou até mesmo para encontrá-los no mundo. Pense em quantas personagens mães você conhece, e quantas delas não estão associadas diretamente ao papel materno que as nutre. E, quando o renegam, na maior parte das vezes são movidas por uma maldade sobrenatural ou pela construção de um aspecto vilanesco de sua personalidade. Afinal, que tipo de mãe não amaria seus filhos incondicionalmente?
Transpondo para a realidade, a retórica continua a mesma. Em A Filha Perdida, a misteriosa Elena Ferrante mergulha por inteiro neste que é apenas um dos papéis da feminilidade presentes em sua Literatura. E Maggie Gyllenhaal decide abraçar a mesma narrativa para construir o que seria a sua primeira obra na direção. A trama do filme homônimo segue Leda, interpretada pela magnífica Olivia Colman, que decide passar um período em uma ilha paradisíaca da Grécia, após deixar suas duas filhas, Bianca e Martha, com o ex-marido no Canadá.
Aproveitando o tempo consigo mesma, suas pacatas férias acabam sendo tomadas por lembranças antigas apenas pela súbita chegada de uma família no local. Nela, conhece Nina (Dakota Johnson) e sua filha Elena (Athena Martin Anderson), que de imediato desencadeiam memórias da protagonista em relação a sua própria experiência materna, o que a leva a uma estranha obsessão pela jovem mãe.
A sinopse ou o trailer do filme podem enganar, por também não ser simples traduzir em poucas palavras ou minutos a hipnotizante experiência que Elena Ferrante criou com A Filha Perdida. Assim como o livro, a produção não tem grandes ganchos narrativos, que prendem a atenção pelo desfecho ou em acompanhar as conquistas da personagem. Aliás, o que a obra mais faz é deixar finais de seus capítulos em aberto, o que foi fidelizado nas cenas do longa. Se podemos definir o que de fato fixa nossos olhos na tela, só poderia ser o trabalho de Olivia Colman.
A vencedora do Oscar compõe a peculiar Leda de forma que parecemos estar lendo letra por letra das descrições de Ferrante. Unida à atuação de Jessie Buckley, que interpreta a versão mais jovem da protagonista, criam, juntas, um dualismo perfeito das mudanças sofridas nas fases da vida da professora. Tudo isso não seria possível sem a condução de Gyllenhaal, tanto pelas lentes quanto pela escrita do roteiro, que consegue traduzir até mesmo as entrelinhas da obra da escritora napolitana em frente aos nossos olhos. O que não é uma tarefa nem um pouco fácil, tendo em vista a composição de fluxos de consciência em que a história original foi construída.
Não demora muito para a aproximação entre Leda e Nina ter uma virada de chave, quando a protagonista decide roubar a boneca da pequena Elena. E, assim, engata no acontecimento que perdura como pano de fundo durante toda a produção. A recepção para quem assiste A Filha Perdida pode vir como uma avalanche de quebras de expectativas, talvez por esperar que a família de Toni (Oliver Jackson-Cohen), marido de Nina, apontada como perigosa por motivos nunca declarados, fosse realizar algum ato direto contra a personagem; alguma filha fosse ser, de fato, perdida, ou qualquer outra reviravolta que em concepções gerais seja considerada crucial para o desenrolar da narrativa.
Mas o resultado final não poderia ser outro. Tanto a obra de Ferrante quanto de Gyllenhaal é composta por dosagens significativas de simbolismos, que, no cerne da palavra, não precisam ser entregues de bandeja. Diante disso, a provocação pela busca de respostas é gritante. Afinal, por que Leda decidiu roubar a boneca? Foi por inveja da relação de Nina com Elena? Como forma de ensinamento por a jovem ter cometido os mesmos erros que ela durante seu casamento? Ou até mesmo para tirar de Elena a imposição do anseio materno que ela tanto negou durante a vida?
Sentir qualquer empatia ou apego pela história da protagonista não é algo natural quando analisamos a narrativa apenas pelo que ela nos entrega explicitamente. Mesmo que com a frieza amenizada pela interpretação de Colman, Leda não é agradável, quem dirá simpática. Não podemos esperar qualquer afeição positiva por uma mulher de meia-idade que decide viajar sozinha apenas para gozar de sua liberdade. Ao decorrer da história, também descobrimos que afeto nenhum poderia vir por uma mãe que abandonou suas filhas por três anos e sentiu que “foi maravilhoso”. Mesmo que seu ex-marido tivesse realizado feito semelhante somando os finais de semana que precisava viajar a trabalho.
A regra é clara, e a personagem Nora Fanshaw, que rendeu um Oscar para Laura Dern em História de um Casamento, resume bem: “Nós os amamos (os pais) por suas falhas, mas as pessoas absolutamente não aceitam essas mesmas falhas nas mães. Não a aceitamos estruturalmente e não a aceitamos espiritualmente. Porque a base da nossa baboseira judaico-cristão é Maria, Mãe de Jesus, e ela é perfeita”. Se formos avaliar a cinematografia como um todo, a figura da mulher adulta é inerente à questão materna. Se ela não tem filhos, por que não quer ter? E, se tem, onde eles estão?
Mais do que isso, é algo intocável. E, é claro, que o mesmo não é comparável aos pais. Na Televisão, basta contestar o fato do porquê costumam estranhar a falta dos comentários ou ações de Midge (Rachel Brosnahan) em relação aos seus filhos em The Marvelous Mrs. Maisel, enquanto personagens masculinos como Kendall Roy (Jeremy Strong), de Succession, sequer são lembrados como pai ou contestados por sua presença nada paterna. Mesmo com todas as suas questões, Bianca e Martha continuam sendo a principal referência de Leda para qualquer aspecto. Quando conversa com Will (Paul Mescal) e ele conta a sua idade, a primeira coisa que ela faz é associar a de sua filha. O papel materno que lhe foi empurrado goela abaixo a vida inteira continua sendo intrínseco a ela.
Em sua estreia, o que Maggie Gyllenhaal faz é digno de Oscar. A primazia com que transpôs a narrativa de Ferrante, e até deu novos significados a ela, ganhou sua merecida indicação em Roteiro Adaptado. A profundidade de Leda em tela também, em dose dupla, com Olivia Colman, que já virou figurinha carimbada na premiação, e Jessie Buckley estreando na categoria. No circuito independente, The Lost Daughter levou a melhor nas principais premiações do meio, o Spirit e o Gotham Awards. No Festival de Veneza, a diretora ainda ganhou Melhor Roteiro, sinalizando um vindouro reconhecimento da indústria para seu trabalho atrás das câmeras.
A genialidade da narrativa nós deixamos para Ferrante, mas o trabalho sagrado de popularizar ela tem o mérito total de Gyllenhaal. Das representações maternas que temos culturalmente, A Filha Perdida é uma das únicas que encara a questão com sinceridade e respeito a quem ocupa aquele lugar. Apesar da falta de representatividade no audiovisual, Leda está em todos os lugares, com as imperfeições, traumas e dificuldades que carrega. Daí a coragem de Olivia, Jessie, Dakota, Maggie e Elena em conseguirem retratar uma figura com tanta honestidade. De mães, e também filhas perdidas.