O medo do outro em Us

(Foto: Reprodução)

Egberto Santana Nunes

Após o sucesso de Get Out, Jordan Peele e a audiência permaneceram em silêncio durante 2 anos na espera de um lampejo em sua mente criativa. Meses atrás, chegaram os pôsteres, trailers e a trilha sonora e junto deles, a expectativa aumentando. E então, a estréia mundial de Us finalmente  aconteceu, quebrando recordes de audiência e novamente reacendeu os debates sobre o gênero do horror no cinema.

O foco inicial de Us (manteremos a grafia original para evitar trocadilhos durante o texto) se concentra na viagem de férias para a praia que o casal Adelaide (Lupita Nyong’o) e Gabe (Winston Duke) estão prestes a realizar com seus dois filhos, Jason (Evan Alex) e Zora (Shahadi Wright Joseph). No entanto, a tranquilidade é substituída pelo caos com a visita de um grupo misterioso na residência, cuja aparência é idêntica à deles (interpretados pelos mesmos atores).

Peele usa a ferramenta do Doppelgänger – o exato clone do protagonista que age de diferentes formas – para concretizar o horror do filme. Exemplos desse clichê aparece em Cidade dos Sonhos (2001) e Vertigo (1958). O pesadelo de ter a casa invadida por estranhos cujo único objetivo é causar desespero aos moradores também foi testada em Violência Gratuita, (1997), de Michael Haneke.

Durante o filme, o diretor combina os elementos do clone e do caos para criar uma narrativa original e impactante. Através de pequenos signos no primeiro ato, a ideia fica cada vez maior e expande para níveis absurdos. Diferente do longa protagonizado por Daniel Kaluuya, mais conciso e fechado, esse é centrado numa complexidade de livre interpretação.

Ainda assim, há um conflito na cabeça de Peele durante o longa. O medo de deixar o público com a mente vazia no final, fez o diretor e roteirista tomar muito tempo explicando conceitos que poderiam ter sido deixados à livre interpretação ou com ações, não num monólogo de 10 minutos. Mas, na conclusão, somos levados a um plot twist que muda toda a concepção até aquele ponto e acaba em uma avalanche de vídeos no youtube com o mesmo tipo de título.

A aparição de uma família de clones marcam o início do pesadelo para os Wilson. (Foto: Reprodução)

Essa reação causada por Peele acaba sendo o principal feito da obra. Kubrick fez o mesmo com o Iluminado (1980), que tem até um documentário dedicado a explorar as teorias dos fãs. A sensação de não parar de pensar no que assistiu e não conseguir dormir à noite não é causada por simples sustos ou jumpscares, mas sim pelos espaços de interpretação que o roteiro deixa.

Em ambas produções do diretor, pistas são deixadas durante o desenvolvimento para culminar em algo maior. Porém, a profundidade de camadas e temas é muito maior em Us. Se no primeiro longa temos um problema principal debatido – racismo e suas diferentes formas -, em Us os temas vão desde privilégio, classe, trauma, política, culpa e humanidade. Para alguns, Us pode significar “United States”, como também não pode –  e essa é a beleza da coisa. Você pode olhar por qualquer ótica, verá o mesmo filme e ainda vai se divertir.

De fato, todos os temas levam a um ponto comum: o ser humano. Não estamos mais indo para cama com medo de um monstro qualquer no nosso pesadelo, é o pavor do outro, seja aquele que está atrás das fronteiras, ou aquele do seu lado. Vivemos apontando o dedo e colocando a culpa em alguém, quando nós mesmos podemos ser os inimigos. A ideia de que para você ter uma vida simples e boa, outra pessoa precisa sofrer e viver miseravelmente também está no centro da narrativa desse universo.

Com essa analogia crítica, o terror é usado para fazer algo difícil no gênero: colocar o medo em nós mesmos. Se enganou quem achou que com o elenco preto, a história ia focar em questões raciais. De fato, é uma discussão que tange todas as discussões, mas de maneira nenhuma é o foco como no seu antecessor.

E por falar no elenco, nada acima seria garantido se não tivéssemos as performances de peso que o longa apresenta. Ainda mais quando levamos em conta que cada um interpreta a sua versão clone, que é completamente diferente do “original”.

Lupita é a protagonista e o diretor usa e abusa do primeiro plano nas duas faces, seja como clone ou humana. Com a voz desgrenhada e seriedade de Red ou o olhar desesperador de Adelaide, ela consegue transmitir perfeitamente o medo e a dualidade da sua personagem. Um forte indicado na temporada de premiações de 2019, vide também seu Oscar por 12 anos de Escravidão, provavelmente o responsável pela escolha de Peele para o papel de Adelaide.

Lupita admirando a chegada do seu segundo Oscar em menos de 10 anos. (Foto: Reprodução)

O resto da família não deixa a desejar e como cada um tem que interpretar o oposto da sua personalidade, percebe-se a carga de atuação necessária na entrega do papel. O pai brincalhão e falador tem sua versão violenta e que apenas se comunica com gritos. Jason, sempre vestindo uma máscara e com dificuldade de socialização, tem sua versão sem alma e com o rosto queimado. E Zora, a filha, sempre no celular e com a cara fechada, tem seu clone ágil e com um sorriso morto.

A intenção de Jordan Peele sempre foi fazer a plateia gritar, seja de sustos ou de risos. E nessa última reação, temos foco no pai, lidando com situações tensas de forma exagerada e brincalhona.

O equilíbrio entre comédia e horror é visto principalmente na cena da família branca amiga dos Wilson. O homem de classe média sem nenhuma preocupação. A casa espaçosa, vazia e tecnológica. Sai o clima de descontração, entra o horror com a aparição dos Doppelgänger da família. E em uma trapalhada digna das sketches de Key and Peele, o diretor traz outra significado tocando em sequência Good Vibrations, do Beach Boys e Fuck the Police do N.W.A – hits do pop e do hip-hop que nunca foram postos lado a lado ganham um sentimento diferente na cultura pop graças à mente do Peele, o responsável por supervisionar as músicas do longa.

A trilha sonora é outro grande acerto. Momentos onde a orquestra toma conta e o cenário é contemplativo e agoniante, outros como os mencionados quebram o gelo do momento, enquanto a mixagem de Michael Abels entra para provocar o terror e o corte entre as cenas de dança e de luta. Mas não apenas servem para reagir com o público, como também para preencher narrativamente a história.

Família linda, não é mesmo? (Foto: Reprodução)

Chame-o de visionário, criativo ou gênio, mas Peele tem seu nome em Hollywood e estará muito ocupado nos próximos meses comandando o reboot de Além da Imaginação e produzindo uma nova série de Lovecraft. Com seus dois primeiros filmes, sucessos de crítica e de bilheteria, ele mostrou que não está de brincadeira e ainda tem mais dois horrores para tirar da cabeça ainda nessa década. Enquanto nós esperamos essas obras, ainda há tempo de enfrentar o medo e assistir Nós nos cinemas.

Um comentário em “O medo do outro em Us”

  1. Adorei a análise. A ideia de trazer o ser humano como seu próprio monstro foi muito bem trabalhada em Us. E a trilha sonora aaaaa, tão bem pensada! Demais

Deixe uma resposta