Radiohead, a era digital e o fator humano

Eu tenho muitas amizades virtuais, eu bato-papo pelo meu computador

N. V. #41

Um texto sobre OK Computer (1997) estava na agenda para o primeiro semestre deste ano. O terceiro álbum do Radiohead é um dos mais aclamados da década de 90, e não à toa: a música mescla diversas influências (DJ Shadow, Pink Floyd, R.E.M, Can) em um produto grandioso e distinto, enquanto as letras já adiantavam a ansiedade e isolamento proporcionados com a chegada da era digital – sem contar os belos clipes e o encarte críptico.Vinte anos após seu lançamento, o disco segue atual. Todavia, assim como Nevermind (1991), os elogios são tão constantes (e batem tanto na mesma tecla) que não há como evitar a sensação de que é difícil falar algo novo sobre. Considerando que OK Computer é bastante crítico sobre a reprodução massificada e mecânica de ideias, seria incoerente arriscar alguns parágrafos em senso comum só para arrecadar curtidas. Após ler o livro 33 1/3 dedicado ao LP, constatei que seria entendiante também.

O ano ainda guardava outra comemoração, os dez anos de In Rainbows (2007). Há alguns anos, teorias mirabolantes relacionando os dois álbuns circulam online; uma década após mencionar retratar o avanço computadorizado, a banda “vazou” o disco na Internet no esquema pague quanto acha que vale e novamente estava no front das discussões entre música e tecnologia.

A revisão revela que as semelhanças entre ambos vão além do conspiracionismo. É notável que, acima de pintar cenários virtuais claustrofóbicos, o foco do Radiohead é situar a visceralidade complexa das relações sociais dentro de ambientes que privilegiam a distância. Se em OK Computer lida com rotinas estressantes, In Rainbows aborda a intimidade de casais. O próprio Thom Yorke o define como “sua versão para canções de sedução”, e tal concepção soa até um tanto sádica para um disco com versos do calibre de “eu só fico com você porque não existem outros” e “é, todos vão embora se tem chance/ e essa é minha chance“.

Também não deixa de soar verdadeiro. Yorke entende que estabelecer intimidade com alguém pode ser um processo doloroso, especialmente em tempos onde palavras ganham interpretações cada vez mais extremas e dicotômicas. A solidão nos faz projetar expectativas de salvação em outras pessoas, e a intensidade de uma paixão à primeira vista é multiplicada em obsessões (“All I Need”) ou decepções (“Weird Fishes / Arpeggi”). O trecho “você costumava estar bem/ o que aconteceu?/ etcetera, etcetera” em “15 Step” é pragmático: vale mesmo a pena insistir em explicações ou tentar retomar diálogos que parecem ganhar outros tons?

A raiva crua de “Bodysnatchers” e a melancolia de “Nude” vêm em seguida, e essa sequência parece vir para lembrar que lidar com pessoas é uma tarefa com picos controversos – ainda mais em tempos onde distúrbios psicológicos crescem de modo exponencial a cada ano. Mas a felicidade também coexiste com sentimentos adversos, como mostram “Reckoner” (dedicada a todos os seres humanos), “House of Cards” (eu não quero ser seu amigo, só quero ser seu amante) e, curiosamente, o encerramento pesado com “Videotape”:

This is my way of saying goodbye
Because I can’t do it face to face
So I’m talking to you before-
No matter what happens now
You shouldn’t be afraid
Because I know today has been
The most perfect day I’ve ever seen

As múltiplas faces do intimismo lírico se refletem no instrumental. Não só as várias verves da banda convergem de modo orgânico, como a individualidade de cada um ali é essencial ao coletivo – como o registro In Rainbows – From the Basement ilustra, as contribuições de cada membro são bem demarcadas e cada canção é uma construção repleta de detalhes, entregues em estruturas compactas e de duração precisa.

OK Computer foi meu disco favorito do Radiohead por uma época, e não entendia quando pessoas exaltavam In Rainbows; julgava ser um bom álbum, cujo hype advinha do download grátis acima de tudo (curioso que tenha demorado tanto tempo para chegar ao Spotify, não?). Por ironia do destino, o último era o predileto de várias pessoas queridas, e a explicação para tal sempre vinha mais baseada em emoções do que qualquer coisa. A maioria delas já não faz mais parte da minha vida, mas hoje consigo entender.

A grande cartada da banda não foi criar linguagens avant-garde, e sim converter ideias complexas em algo que afetasse tanta gente de maneira incisiva e íntima – em uma década de consumo cada vez mais imediato e descartável. Acima de quaisquer revoluções pintadas pela crítica, o mérito do Radiohead é lembrar do básico: nós somos feitos de carne e osso, mesmo na esfera virtual. Relações estão cada vez mais complicadas, mas In Rainbows mostra que tentar se aproximar ainda é solução, que se deixar emocionar é raro e essencial. Dez anos depois, o melhor disco do quinteto não só merece ser comemorado; ele próprio é uma comemoração do ser humano de verdade, por mais estranho que possamos ser.

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