Minha força não é bruta: as mulheres da Semana de 22

Foto retangular de fundo cor gelo e textura. Na parte central superior lê-se “MULHERES NO CENTENÁRIO DA SEMANA DE ARTE MODERNA”. Centenário e as letras S e A estão em azul, o restante está em preto. Na parte inferior está a montagem de seis mulheres da semana de arte moderna, elas estão enfileiradas e as fotos estão em preto e branco. Todas as imagens são de busto. Da esquerda para a direita, as mulheres retratadas na imagem são: Patrícia Galvão, Guiomar Novaes, Regina Gomide Graz, Tarsila do Amaral, Zita Aida e Anita Mafaltti. No canto inferior direito está a logo do Persona com a cor da íris estilizada em azul.
Destaques femininos do Modernismo, da esquerda para a direita: Patrícia Galvão (Pagu), Guiomar Novaes, Regina Gomide Graz, Tarsila do Amaral, Zina Aita e Anita Malfatti (Foto: Reprodução/Arte: Ana Júlia Trevisan)

Ana Júlia Trevisan e Vitória Silva

Quando falamos na Semana de Arte Moderna de 1922, há um retrato muito nítido na memória brasileira sobre quem eram as figuras envolvidas nesse importante capítulo de nossa história. Nele estão presentes nomes como Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, e mais uma porção de personalidades masculinas. Ao se tratar da parcela feminina, o primeiro nome que deve surgir com certeza é a popular Tarsila do Amaral, mas ela sequer esteve presente no evento. Durante os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, a pintora se encontrava do outro lado do oceano, na cidade de Paris. 

Mas esse apagamento não se justifica pela ausência completa de mulheres entre as artistas, longe disso. Na década de 20, as mulheres brasileiras ainda não tinham conquistado o direito de votar, trabalhar sem a autorização do marido, ter conta bancária ou até mesmo a guarda dos filhos. Direitos esses que viriam, pelo menos, dez anos depois (e contando). Com um papel meramente restringindo a ser bela, recatada e do lar, quem imaginaria participar de um movimento artístico que impactaria não somente em esferas culturais como também políticas? Foram poucas que tiveram não somente a audácia, mas uma condição social e econômica para tal. 

Pintura da artista Anita Malfatti. Nela, vemos uma mulher negra, com cabelos presos em um coque baixo e vestindo uma roupa branca de mangas curtas. Ela carrega uma bacia com frutas como abacaxi, banana e laranjas. Ao fundo, é possível ver uma paisagem rural.
Obra Tropical, de Anita Malfatti, uma das primeiras pinturas modernas com um tema brasileiro (Foto: Romulo Fialdini)

Anita Malfatti, Zina Aita, Guiomar Novaes e Regina Gomide Graz são as únicas das quais se tem registro de terem presenciado a Semana de 22 de alguma forma. A primeira delas é mais lembrada pelas duras reações que recebeu durante sua carreira do que seus feitos no movimento modernista. Enquanto as demais nem mesmo costumam ser citadas por seus importantes feitos antes e depois do evento. E, se vamos falar de esquecimento, por que não lembrar daquelas que sequer são condicionadas a esse posto? No livro Invenções da Mulher Moderna, o autor Paulo Herkenhoff resgata a trajetória de artistas que contribuíram para o Modernismo direta ou indiretamente, antes ou depois da Semana. Entre elas, há nomes como Antonieta Santos Feio, Maria Pardos, Nicolina Vaz de Assis, Julieta de França, Abigail de Andrade e Georgina de Albuquerque. Distantes da efervescência da capital paulista, desenvolveram um trabalho artístico que quebrava paradigmas da época e, de certa forma, respingou nos caminhos do Modernismo Brasileiro. 

Se fizermos um recorte racial, a representatividade no movimento é ainda mais reduzida, ou até mesmo nula, considerando um país com uma abolição da escravatura recente, e que não determinou a introdução da população negra na sociedade. Dessa forma, falar no centenário da Semana de Arte Moderna é também repensar os papéis que eram condicionados à população da época. Além de resgatar e imortalizar a obra daquelas que fugiram por completo da condição que lhes foi imposta, em um período que homens poderiam se profissionalizar como artistas, enquanto as mulheres deviam restringir suas práticas artísticas às limitações de seus lares, como um simples passatempo. É preciso corrigir a história das artistas à frente de seu tempo, que causaram um alvoroço na sociedade brasileira de 22. 

Foto em preto e branco da artista Anita Malfatti. Anita era uma mulher branca, de cabelos escuros e curtos. Ela está com o rosto um pouco inclinado e usa um brinco em sua orelha.
A artista nasceu com uma deficiência congênita no braço direito que, mesmo após um procedimento cirúrgico, nunca recuperou totalmente os movimentos (Foto: Domínio Público)

Anita Malfatti (1889-1964)

No ano de 1889 vinha ao mundo a mulher que ganharia o título de primeira modernista. Filha de imigrante italiano e de uma pintora norte-americana, Anita Malfatti nasceu na cidade de São Paulo. Seu gosto pela arte foi muito influenciado por sua mãe, nutrindo desde cedo o sonho de estudar em Paris. Em 1910, embarcou na sua trajetória como artista ao se mudar para Berlim, em um período marcante da arte moderna alemã. 

Sua passagem pelo país germânico e, posteriormente, pelos Estados Unidos, foi um fator importante para a construção de sua identidade. No ambiente europeu, Anita conviveu com pintores renomados e foi apresentada ao trabalho de famosos como Van Gogh, enquanto, em Nova York, vivenciou a eclosão de movimentos de vanguarda como o expressionismo de Homer Boss. De volta ao Brasil, em 1914, realizou sua primeira exposição com obras de sua autoria e, em meados de 1917, a segunda. A feição tímida de Anita não correspondia a ousadia e irreverência de suas pinturas, que rejeitavam o academicismo a partir do uso de deformidades e cores marcantes. Incompreendida pelo público da época, sua arte foi alvo de duras críticas, até mesmo pelos seus familiares, chegando a perder o apoio financeiro de seu padrinho. A mais severa e marcante de todas veio do escritor Monteiro Lobato, em dezembro de 1917, que publicou um artigo no jornal O Estado de S. Paulo acerca das obras da artista com o título “Paranóia ou Mistificação?”.

Alvo de fortes reações da elite conservadora, muitas das obras de Malfatti foram devolvidas ou quase destruídas, provocando o isolamento da própria do meio artístico. Por outro lado, a represália também culminou na manifestação de outros artistas em defesa da jovem, como Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Emiliano Di Cavalcanti. No ano de 1919, iniciou estudos com o pintor acadêmico Pedro Alexandrino Borges e também passou a frequentar o ateliê do alemão George Fischer Elpons, em São Paulo, onde conheceu Tarsila do Amaral. Unida aos seus recentes amigos e apoiadores, passam a atuar como o que ficaria conhecido por Grupo dos Cinco, que teria um importante papel na Semana de Arte Moderna de 1922.


Foto em preto e branco da artista Tarsila do Amaral. Tarsila era uma mulher branca, de cabelos escuros e lisos; eles estão presos em um coque baixo. Ela usa um par de brincos compridos em suas orelhas.
Suas pinturas mais famosas são: o Abaporu, Urutu, Antropofagia e Sol Poente (Foto: Tarsila do Amaral Licenciamentos)

Tarsila do Amaral (1886-1973)

Tarsila é uma das maiores referências artísticas do país e uma das principais pintoras da Arte brasileira moderna. Nascida em 1886, mudou-se para Europa em 1920 e cursou a Academia Julians e o ateliê do retratista de moda Émile Renard. Por esse motivo, suas pinturas eram fortemente influenciadas por aquilo que estava sendo produzido de mais atual na Europa na época, e com suas habilidade unia os ideais modernistas à brasilidade. No entanto, as pinturas de Tarsila, expostas no Salão dos Artistas Franceses em 1922, ainda não revelavam toda a importância que a artista teria na construção do Modernismo brasileiro.

A pintora não participou ativamente da Semana de Arte Moderna, mas seu retorno ao Brasil, ainda em 1922, foi decisivo tanto em sua carreira como para o rumo ao qual o movimento seguiria. Chegando à terra das palmeiras, Tarsila se liga ao Grupo Klaxon, que contava com nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Sérgio Buarque de Holanda. Posteriormente, ela se une a Anita Malfatti, Mário e Oswald de Andrade e Menotti del Picchia para formar o Grupo dos Cinco, que seria o grande responsável pelo referencial ideológico e artístico da Semana de 22. 

Em 1926, Tarsila do Amaral se casa com Oswald de Andrade, e dois anos depois, a artista pinta um quadro para presentear o marido. A obra era nada mais nada menos do que o Abaporu que, emocionando Oswald, o inspira a escrever o Manifesto Antropófago, sendo assim, um dos quadros mais importantes do Brasil e marco inicial de sua fase antropofágica. Juntos, o casal influenciou de forma incisiva a Literatura e as Artes Plásticas por meio de suas peças e da defesa do Modernismo. E, apesar de não ter participado da Semana, Tarsila é considerada a primeira pessoa que conseguiu realizar uma obra de realidade nacional.


Foto em preto e branco da artista Guiomar Novaes. Guiomar era uma mulher branca, de cabelos escuros e curtos. Ela está com a cabeça apoiada em sua mão esquerda, e veste uma blusa escura de mangas compridas, usa um colar de pérolas em seu pescoço e um par de brincos em suas orelhas.
Com carreira consolidada no exterior, ficou conhecida pelas suas interpretações das obras de Chopin e Schumann (Foto: APR)

Guiomar Novaes (1894-1979)

Mulher prodígio, Guiomar Novaes nasceu em São João da Boa Vista (SP) e foi na cidade de Campinas (SP), com apenas quatro anos, que começou a tocar piano, incentivada pela mãe e reproduzindo o que as irmãs mais velhas tocavam. Foi ainda menina que demonstrou seu talento nato para a Música, compondo uma valsinha que recebeu o título de Jardim de infância. Sua partitura foi, em 1903, publicada na revista O Malho. Nessa mesma época, a garota estava morando junto com a família em São Paulo, e por acaso do destino, ela era vizinha do escritor Monteiro Lobato, servindo de inspiração para a criação da personagem Narizinho, do Sítio do Picapau Amarelo.

No ano de 1922, a pianista foi uma das mais importantes da Semana de Arte Moderna. Em sua apresentação no Theatro Municipal de São Paulo durante o segundo dia do evento, interpretou as obras Au jardin du vieux serail (Andrinople), de E. R. Blanchet, O ginete do pierrozinho (esse integrava a coletânea Carnaval das crianças, de Villa-Lobos), e La Soirée dans grenade, das Estampes, Debussy e Minstrels. Ovacionada pela fulgurosa plateia, executou L’Arlequin, de Vallon. Neste mesmo ano, firmou matrimônio com o arquiteto e compositor Octávio Pinto. 

A partir da Semana de 22, Guiomar Novaes passou a incluir em suas apresentações as obras de Villa-Lobos, tornando-se importante divulgadora dele nos Estados Unidos. Em 30 de agosto de 1955, por decreto do então Presidente da República, o sucessor de Getúlio Vargas, Café Filho, foi condecorada com a Ordem Nacional do Mérito, juntamente a Heitor e Ary Barroso. A valorização veio pelo sentido de universalidade dado à música brasileira, projetando-a no exterior. Sua última apresentação pública ocorreu em 15 de julho de 1973, no Festival Internacional de Música de Campos do Jordão. Em 1977, foi criada, na cidade natal da pianista, a Semana Guiomar Novaes, importante evento cultural que ocorre anualmente, até hoje. 


Pintura A Sombra, da artista Zina Aita. No quadro, é possível ver ilustrações que parecem ser de 6 figuras masculinas. Todos estão em meio a uma via, com o corpo inclinado para baixo, em que é possível ver sua sombra se formando logo atrás.
Pouco se sabe ou se conhece sobre a obra de Zina, em função da falta de pesquisas e dificuldade em localizar suas produções (Foto: Romulo Fialdini)

Zina Aita (1900-1967)

Fugindo um pouco do centrismo do estado de São Paulo, Tereza Aita, conhecida como Zina, nasceu na cidade de Belo Horizonte, em 1900. Filha de empresários italianos imigrados, em 1914, transfere-se com a família para a Itália, passando a frequentar a Accademia di Belle Arti di Firenze e estudar com Galileo Chini, referência na área da pintura e da cerâmica. Sua ligação com o artista serve como grande influência para o desenvolvimento de seu estilo mais “decorativista”. 

De volta ao Brasil, em 1918, a mineira passa a conviver com nomes importantes do Modernismo, como Mário de Andrade e Anita Malfatti. Na atmosfera modernista da capital paulista, ela também começa a contribuir com ilustrações para a revista-símbolo do movimento na época, a Klaxon. Passeando por tendências impressionistas, Zina expõe sua primeira mostra individual em Belo Horizonte no início de 1920. Em função disso, é considerada precursora do Modernismo em Minas Gerais, e as reações ao seu trabalho evidenciam o fardo de carregar esse título. Na imprensa, foi declarado que Zina utilizava “cores bizarras” para “ferir a vista do público”, passando a ser para Belo Horizonte o mesmo que Malfatti foi para São Paulo.

Pouco depois, participa da Semana de 22, exibindo oito telas e diversas impressões. Em 1924, ela se muda definitivamente para a Itália, onde passa a dirigir uma fábrica de cerâmica, largando as telas para dedicar-se às artes industriais. O destino escolhido por Zina, tanto no quesito da localidade quanto de seu estilo artístico, foi um fator motivador para o seu apagamento na história, em função das concepções da época, que restringiam artistas ligadas à decoração em um outro aspecto, não sendo de fato reconhecida no meio modernista. Essa mesma imposição afetaria a lembrança da vida e obra de Regina Gomide Graz.


Retrato da artista Regina Gomide Graz, pintado por seu irmão, Antonio Gomide. Nele, vemos uma mulher com o rosto inclinado para a esquerda. Ela é branca, com cabelos castanhos escuros e curtos, e veste uma blusa rosa com gola branca.
A opção de Regina pela arte têxtil tinha um papel ainda mais revolucionário, de moldar uma nova dimensão estética para além dos quadros (Foto: Sérgio Guerini)

Regina Gomide Graz (1897-1973)

Entre todas as mulheres deixadas de lado pela memória histórica, a passagem de Regina Gomide Graz pela Semana de 22 é a que passa mais despercebida, sem ser ao menos totalmente comprovada. Nascida no ano de 1897, na cidade de Itapetininga, Regina era irmã do pintor Antonio Gomide e esposa do pintor John Graz. Passou parte de sua juventude na cidade de Genebra, onde estudou na École des Beaux Arts e conviveu com a ascensão de movimentos modernistas, como o Cubismo e o Dadaísmo. Essa parte de sua vivência seria determinante para que iniciasse seus trabalhos como artista com elementos do movimento Art Deco, após estudos dedicados sobre tapeçaria e áreas afins, âmbito em que se destacou. 

Na década de 20, juntamente com seu futuro marido e o poeta Oswald de Andrade, Regina passa a se inserir na vida intelectual da cidade de São Paulo, fato que lhe trouxe a oportunidade de participar e expor seu trabalho na Semana de Arte Moderna de 1922. Regina Gomide Graz foi a introdutora das artes decorativas modernas no Brasil, teve uma obra marcada por um design abstrato expressado por meio de formas geométricas, e realizou trabalhos que também conversavam com vanguardas artísticas, por fim se envolvendo, é claro, com o Modernismo. 

Há de se questionar (e muito) o apagão da trajetória da artista. Na História da Arte, seu nome vem muito associado aos outros dois pintores de sua família, muitas vezes intitulados como tríade de artistas-decoradores. No entanto, o protagonismo de sua obra voltada para a produção têxtil é jogado para escanteio, sendo necessária a presença de uma figura masculina para que o trabalho de Regina Gomide Graz seja minimamente lembrado. 


Foto em preto e branco da artista Patrícia Galvão. Patrícia era uma mulher branca, com cabelos ondulados e volumosos. Ela usa maquiagem forte em seus olhos e um batom escuro na boca.
Sua obra mais famosa, Parque Industrial, foi escrita sobre o pseudônimo de Mara Lobo (Foto: Agir)

Patrícia Galvão (Pagu) [1910-1962]

Indignada no palanque, Pagu é um dos maiores símbolos de mulher libertária e encarou como ninguém os ecos do movimento modernista. A pequena Patrícia tinha apenas 11 anos quando o Theatro Municipal em São Paulo abriu as portas para que os artistas criticassem a cultura tradicional. Jornalista, mulher precursora, militante política e incentivadora cultural, ela se junta aos grupos em 1929, se tornando musa modernista do Movimento Antropofágico.

Pagu era movida por ideais como a justiça social e a transformação da pessoa por meio da arte e da cultura. Suas colunas de jornal tratavam de política, literatura e teatro, fazendo também o trabalho de divulgar autores desconhecidos no Brasil e alguns no restante do mundo. Em suas críticas sobre o cotidiano social foi visionária, com olhar sensível e antecipatório. Em sua obra mais famosa, Parque Industrial (1933), falou sobre a industrialização brasileira do século XX, e acima disso, denunciou as condições humilhantes e precárias das operárias paulistanas. 

É impossível não reconhecer Pagu como referência dos desdobramentos do movimento modernista. Dona de muitos pseudônimos por conta da censura sofrida, casou-se, em 1930, com Oswald de Andrade, e, ao lado dele, passou a militar no Partido Comunista, logo se tornando a primeira presa política da história do Brasil, após participar de uma greve de estivadores. Patrícia Galvão foi presa 23 vezes ao longo da vida. O mundo não mudou muito depois de Pagu, suas obras ainda fazem sentido no contexto histórico atual do Brasil, e suas lutas frenéticas ainda são travadas diariamente por milhares de mulheres ao redor do mundo.

Um comentário em “Minha força não é bruta: as mulheres da Semana de 22”

  1. Que maravilha ler um artigo sobre a presença das mulheres nas artes. Espero que possamos ter cada vez mais modelos que sirvam como inspiração para as próximas gerações. Mulheres, que apesar das dificuldades, tiveram coragem e oportunidade de contribuir com a arte e cultura no Brasil.

Deixe uma resposta