Mesmo dentro de excessos, Blade Runner 2049 consegue ser real

Em meio a tantas réplicas no cinema, Denis Villeneuve emplaca um sci-fi com alma em um universo que parecia até então intacto

Adriano Arrigo

Se formos parar para pensar, o universo de Blade Runner nunca fora estranho para Denis Villeneuve. A passar por Incêndios (2010), e, mais recentemente, por O Homem Duplicado (2013) e A Chegada (2016), Villeneuve demonstrou extrema interesse em descobrir o propósito do Ser humano, tanto através da sua linguagem cinematográfica quanto nos roteiros em que trabalha. E Blade Runner 2049 não foge às regras que o diretor canadense rege seu universo particular.

A expressão do vazio, as longas jornadas e o ambiente desolado de 2049 assemelham-se até a Stalker (1979), do diretor russo Andrei Tarkovsky – onde um homem adentra a Zona, local enigmático e simbólico que testa a fé de personagens nomeados com números. Na epopeia futurista de Villeneuve, um policial (Ryan Goslin) chamado por “K.” tem o dever de exterminar máquinas rebeldes (replicantes) colocadas no mundo por Wallace (Jared Leto), que se auto intitula um criador (é o mito da criação mais uma vez permeando uma obra cinematográfica esse ano.)

Mas se em Tarkovsky há a ousadia de questionar e confrontar os métodos da fé através de uma viagem que beiram a imersão ao subconsciente, Villeneuve apela para o poder de suas imagens e na reprodução de dogmas cristãos. Para ambos, cabe sempre ao arcabouço da semiótica de cada espectador encontrar sua mensagem pela sua linguagem, mesmo que, muitas vezes, estejam presas dentro dos excessos do diretor canadense.

Diferente de A Chegada, que se perde em explicações mirabolantes e em fechamento de arcos que não convencem, os excessos de Denis são bem-vindos aqui. O cenário parece pedir detalhamento, uma apreciação do universo para compreender seu lento desenvolver que se faz por dentro. Há, então, a atualização de temas existenciais que foram liberados há pouco tempo dentro da ficção científica (Ex Machina, Her), mas que haviam sólidas bases no seu antecessor, Blade Runner (1982). Nas mãos de Ridley Scott, o espaço dos caçadores de androides pareciam, até então, ser o único universo possível para um sci-fi que se enraizou no cinema sob o rizoma da filosofia.

Tudo ali parecia palpável, pois seus aspectos de espaço estavam sempre em segundo plano. A especulação tecnológica, típica dos clássicos do sci-fi, era somente imaginar um mundo sujo a se viver em pouco menos de 20 anos. Bem, estamos aqui, há 2 anos a frente do ano em que replicantes do primeiro filme foram construídos, e começamos a desenvolver somente agora ciências como a Inteligência Artificial, mas em um mote muito mais voltado para George Orwell. Então, a série só faria jus hoje se deixasse de se apegar a esse passado retrô-futurista de Ridley Scott, mas, ao mesmo tempo, fosse visionária em fazer acontecer algo que fosse surpreendente para nós, tal qual fora em 1982.

Villeneuve consegue, mas seguindo suas próprias regras através da transformação dos aspectos da obra de Ridley Scott em componentes entrópicos. Esses laços que o diretor do primeiro longa deixou aberto são captados por Denis, ao mesmo tempo em que ele consegue recontar o mito dos robôs que querem ser humanos (e vice-versa). Devido a imperceptibilidade física entre humanos e replicantes , o jogo aqui está em simular sentimentos. Isso mostra em que casa o diretor aposta suas fichas: é o seu movimento tecno-divinatório, fator esse que, no final das contas, é o que interessa nos grandes sci-fi.

Passaram-se a questão do ser físico em 2049. Ser não é mais ter um corpo, mas é ter algo etéreo e não material, que o filme insiste em chamar de alma, limitando a nomenclatura de um fantasma que habita a máquina (isso inclui os humanos). A alma, então, abre espaço para os hologramas (curiosamente, é a única tecnologia que estamos longe de atingir atualmente) altamente inteligentes que trazem tanto aos replicantes como aos humanos a possibilidade de terem experiências íntimas em seu ser.

Além de um belíssimo visual estético (a cena do holograma gigante tocando K. é uma das mais belas desse ano) com tecnologia de ponta, mas que brilham como coadjuvante, como os implantes de memória (memorável no primeiro Ghost in the Shell), a passagem de funções humanas para a máquina, como é o caso do criador, dão um complemento ao mundo criado por Philip K. Dick (devemos nos lembrar que o personagem principal chamado K. não é apenas uma coincidência).

E, assim, é possível nivelar replicantes, humanos e hologramas, já que todos, em maior ou menor forma, consomem tecnologia para suas próprias existências. Essa coexistência simbiótica rara proporciona a sincronização entre os três. Em um mote cristão, podemos dizer que é a sublimidade entre Pai, Filho e Espírito Santo, como acontece quando a namorada em forma de holograma de K. cede ao seu sentimento de posse e compartilha seu namorado com uma prostituta. É o holograma que se funde e, ao final, traz humanidade aos sentimentos da prostituta, e não vice-versa.

É como se nesse filme fosse adicionado o que faltava no seu antecessor, a tal da alma que, inclusive, faz K. se achar especial quando acredita ter uma. É a sensação de ser real que falta em um mundo que não importa mais quem é cria ou criador. Por estarem em busca desse conceito abstrato, todos, mas em especial K., não tem a consciência de que alma é dada a todos aqueles que estão vivos e são sencientes (“Penso, logo existo”), independente se são orgânicos ou não. “A dor lembra você que o prazer que você sentiu foi real”, lembra Wallace.

O minimalismo do sentido de Blade Runner 2049 segue, então, estritamente os passos do primeiro longa e reduz o universo da saga dos replicantes ao essencial. Tecnicamente, Ridley Scott, em sua visão, preferiu dar zoom em suas maquetes de pirâmides aos invés de tentar recriar um mundo que, devido aos limites tecnológicos da época, pudessem soar toscos e artificiais. Hoje temos todos os fatores tecnológicos para maximizar a experiência de um cyberpunk, mas a economia que se vê torna 2049 palpável e identificável a jornada dos seres e, é claro, traz alma à carreira de Denis Villeneuve.

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