Nirvana: 25 anos depois, o espírito adolescente permanece mais forte que nunca

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Você deveria ter um exemplar desse álbum em casa

Nilo Vieira

Apenas colocar Nevermind como o disco mais importante da década de noventa não apenas é redundante, como se revela um reducionismo. É justamente pelo fato do álbum ter se tornado “vaca sagrada” em tão pouco tempo que reside o grande conflito de ser mais discutido do que, propriamente, ouvido. Os embates nem sempre são prolíficos: existem os detratores sórdidos, que opinam que uma banda citada como influência por um segmento de qualidade questionável no rock (o “pós-grunge”, cujos maiores representantes são os odiados Nickelback e Creed) não pode ter credibilidade, ao mesmo passo em que tem-se os admiradores ferrenhos ou até os pouco críticos (do tipo que opina “eu detesto esse disco, mas ele é sensacional, porque é importante”).O segundo disco do Nirvana não é uma obra merecedora de ser objeto para diálogos tão rasos. O argumento de que a banda não necessariamente revolucionou o rock e/ou acabou eclipsando trabalhos que mereciam igual exposição midiática são coerentes. “Quando os ouvi pela primeira vez, fiquei chocado: a dinâmica da música tinha sido totalmente roubada dos Pixies!”, afirmou o lendário David Bowie. Outra influente figura musical, o guitarrista pioneiro da no wave Glenn Branca, também não poupou farpas ao trio de Aberdeen: “eles fizeram sucesso não porque eram ótimos – eu gostaria que fossem! -, mas porque o caminho já havia sido pavimentado”.

Antes da fama: partes do documentário 1991: The Year Punk Broke, que acompanhou uma turnê do Sonic Youth pela Europa e teve o Nirvana como banda de abertura

De fato, bandas como o Sonic Youth (responsáveis pela contratação do Nirvana pela gigante Geffen Records) e o Pixies adiantaram, já no fim da década de oitenta, boa parte da estética que tomaria o rock nos anos seguintes – enquanto a primeira tinha a urgência do punk contrastando com composições dissonantes e complexas, a segunda adotaria o esquema “versos quietos, refrães explosivos” para canções de melodias grudentas e letras imagéticas. Slanted And Enchanted (1992), disco de estreia do Pavement (cujo lançamento aconteceu apenas um ano após a previsão inicial), trouxe uma estética bastante inovadora para a época, satirizando clichês roqueiros com gravação lo-fi, músicas que pareciam recortadas e letras irônicas, mas a banda nunca atingiu o sucesso comercial que merecia – por dupla ironia do destino, Slanted influenciaria a trupe de Kurt Cobain, e alguns veículos da mídia especializada apontariam o Pavement como “o próximo Nirvana” após a dissolução do grupo.

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Espírito adolescente: foto de um ensaio descartado, que inicialmente iria para o encarte de Nevermind

Todavia, apesar das influências serem explícitas, nem de longe a banda que uniu todas as tribos pode ser tachada de mero arremedo. Diferente das supracitadas, o Nirvana não apenas tinha (sim) a intenção de vender milhões de cópias como tinha a abordagem perfeita para cativar os jovens da época: a angústia adolescente do punk era conciliada com uma sensibilidade pop, e esta ainda levava o benefício da ambiguidade – os versos de Cobain eram de fácil assimilação, mas não necessariamente possuíam um único sentido linear (o fato de ainda haver quem acredite que “Polly” fala sobre papagaios é uma evidência). “On A Plain” manda o recado de maneira concreta: “Agora é hora de complicar / De escrever linhas que não fazem sentido / Amo a mim mesmo mais do que você/ Sei que está errado, então o que devo fazer? / Mais uma mensagem especial antes de ir / E depois terei terminado e poderei ir para casa”.

Mais do que desabafos de alguém diagnosticado com transtorno bipolar, as letras de Nevermind eram um retrato perfeito da juventude da época. As prioridades estabelecidas quinze anos antes com o marco inicial do punk já não faziam tanto sentido; boa parte das bandas pioneiras do gênero já haviam tomado outras guinadas, e a saturação do rock oitentista havia tomado o mainstream de maneira impiedosa. O teor político acompanhado de guitarras distorcidas agora se resumia às canções do U2, que eram mansas demais para gerar algum engajamento – a versão serelepe do Sambô para “Sunday Bloody Sunday” não me deixa mentir. O grito de “entretenha-nos!” em “Smells Like Teen Spirit” ecoou com força não apenas pela qualidade da canção, mas porque o tédio era generalizado. Dessa forma, o hit era tanto um chamado à ação como um real pedido de ajuda. De modo similar, o refrão de “Lithium”, resumido à alguns yeah, soa ora como sátira aos padrões radiofônicos, ora como mantra de escapismo juvenil após as confissões incômodas dos versos.

E não para por aí: ainda há espaço para relatos crus e sombrios sobre estupros em “Polly”, críticas ao comodismo na estrondosa “Stay Away” (cujo título inicial era “Pay to Play” – pague para pagar, atacando diretamente uma situação corriqueira no cenário da música independente até hoje), metáforas cortantes para a depressão na finalíssima “Something in the Way”, reflexões sobre relacionamentos conflituosos em “Lounge Act” e “Drain You”, dentre outras infinitas possibilidades de interpretação distribuídas entre as doze músicas do repertório de Nevermind. A capa também merece destaque, atraindo a atenção do ouvinte e dando margem para inúmeras teorias  – pessoalmente, opino que uma capa igualmente marcante e tão conceitual quanto essa só aconteceria vinte anos depois, com o álbum Floral Shoppe, igualmente crítico ao capitalismo.

Apesar de nenhuma canção do álbum poder ser considerada menor perante ao conjunto, duas merecem destaques específicos. A primeira é a mais curta e melhor do play, “Territorial Pissings”. Em menos de dois minutos e meio, a composição consegue condensar e expelir todo o poder de fogo do Nirvana em todos os âmbitos possíveis: a guitarra barulhenta alterna entre apenas três notas, a bateria é esmurrada sem dó, o baixo fornece um groove marcante e a letra é a mais marcante, abordando problemáticas estruturais em versos fortíssimos como “Quando eu era um alien, culturas não eram opiniões” e “Nunca conheci um homem sábio / se tivesse conhecido, seria uma mulher”, contrastando com a introdução riponga sarcástica. Ao vivo, era costume que a música encerrasse as apresentações do grupo – o que rendia performances antológicas, como a do Reading Festival em 1992.

A outra menção vai para a possível parte mais controversa do disco. “Come As You Are” rendeu um dos riffs mais hipnóticos da banda e também uma polêmica: o segundo single de Nevermind soava idêntico à “Eighties”, da banda Killing Joke. O grupo britânico ameaçou processar o Nirvana por plágio, só não esperavam que uma outra banda do Reino Unido também já tivesse composto algo com melodia similar. Era o The Damned, conjunto seminal do punk rock, com “Life Goes On”. A história acabaria por aí, e “Come As You Are” acabou no posto de música mais massivamente executada do trio – muito por conta dos aspirantes a guitarristas ao redor do globo, que aprendem a tocar o instrumento ensaiando a dita cuja por horas e horas (devo mencionar que colaborei nessa cota). Mesmo assim, é uma boa composição, responsável por dar uma leve tranquilizada após as pedradas que são “Smells Like Teen Spirit” e “In Bloom”.

Os aspectos de produção, aliás, são um grande diferencial aqui. Os timbres são bastante orgânicos e soam bem até para os dias de hoje, as várias camadas instrumentais e vocais formam uma massa compacta e poderosa que jamais parece exagerada e a mixagem é cristalina, mas mantém intacta a agressividade que a música do Nirvana exige – segundo o baixista Krist Novoselic, Andy Wallace só foi escolhido para a função pelo peso que seu trabalho deu para os discos do Slayer. Butch Vig conseguiu a façanha de moldar o primeiro disco punk megaproduzido e ainda garantir que não soasse como tal (muito embora o próprio Cobain fosse condenar a produção mais tarde, alegando que soava como algo do Mötley Crüe), o que lhe tornaria um dos produtores mais requisitados do rock a partir de então. A ordem das faixas é o acerto final, balanceando peso e calmaria e tornando a audição do disco dinâmica e com fluição invejável – o disco funciona bem em qualquer formato.

Mas Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl não se resumiam às quatro parede de um estúdio. O posicionamento político da banda era claro: machismo, homofobia e racismo não seriam tolerados dentro dos concertos do trio, e eles não queriam pessoas preconceituosas como seus fãs. Além de entrevistas, alguns exemplos práticos do ativismo da banda podem ser encontrados no encarte de uma das versões da coletânea Incesticide e nos shows catastróficos que a banda realizou na Argentina e no Brasil: o primeiro boicotou a plateia por ter vaiado o ato de abertura (o grupo riot grrl Calamity Jane, composto apenas por mulheres), enquanto a apresentação no Rio de Janeiro ironizou as grandes corporações e o pouco apoio às bandas independentes, com direito até à cuspe na câmera da Globo (@qui homao da porra).

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“Homens não te protegem mais”

Por essa mesma posição, o fardo de voz de uma geração acabou pesando para Kurt & Cia. Mesmo resistindo à indústria da maneira possível, o Nirvana não conseguiria controlar a imprensa rotuladora – o termo “grunge” era rejeitado por todas as bandas nomeadas como tal, e nem mesmo como movimento geográfico fazia sentido (o Stone Temple Pilots não era de Seattle, por exemplo) -, que estava apenas interessada em vender seus novos xodós. Desse modo, nem todos ouviram Nevermind: alguns apenas estavam consumindo-no (novamente: a versão folia de dce do Sambô pra “Smells Like Teen Spirit” está aí pra comprovar), e isso foi fatal à ponto de fazer Cobain se afundar de vez na heroína e tirar a própria vida anos mais tarde. Desde então, os executivos da música estão à procura de um novo messias roqueiro; até esta altura de 2016, a busca segue sem sucesso, embora o Strokes até tenha causado um burburinho dez anos após o disco do bebê nadando em direção à nota de dólar. Em contraponto, a quantidade de pessoas influenciadas ou inspiradas pelo álbum ultrapassa barreiras geográficas, raciais ou de credo e só aumenta a cada ano. Nada além do esperado para um grupo tão eclético e universal, afinal.

Muito além de um marco na história da música, Nevermind é um dos melhores discos já feitos. Perfeito em todos os aspectos, é um belo início nas guitarras pesadas para iniciantes, e seu impacto permanece mesmo após o amadurecimento musical. Direto, misterioso, cru, lapidado, punk, pop, dentre outros adjetivos só conseguem dar uma pequena noção do poderio do álbum. Coloque no último volume e apague as luzes – é menos perigoso.

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