Há 5 anos, Linn da Quebrada cristalizou o Pajubá

Capa do CD Pajubá, de Linn da Quebrada. Imagem quadrada e colorida. Em foco, está uma travesti negra, usando um vestido branco florido e chinelos brancos nos pés. A câmera a capta somente do pescoço para baixo, de forma que seu rosto não esteja à mostra. Ela se apoia em uma mesa branca, enquanto passa uma peruca de cabelos escuros e lisos com um ferro de passar. O cenário é uma casa humilde, com chão e portas de madeira.
Aniversariante do mês de outubro, Pajubá é o primeiro álbum de estúdio da cantora, rapper, atriz e agitadora cultural Linn da Quebrada (Foto: Linn da Quebrada)

Enrico Souto

Não adianta pedir, que eu não vou te chupar escondida no banheiro”. É com este primeiro verso, na faixa (+ Muito) Talento, que Linn da Quebrada abre as cortinas de Pajubá, instituindo desde o princípio o tema central que perdura por todo o projeto: ela não será mais escusa. Rejeitando um posicionamento conciliador e desafiando o conservadorismo, é declarado que, não interessa o incômodo e constrangimento que lhe cause, a sociedade será obrigada a enxergá-la. Lançado em 6 de outubro de 2017, o primeiro álbum de estúdio da artista completa cinco anos em 2022 e, depois de fazer seu nome na Música, reivindicando espaços que corpos trans nunca ocuparam, se ressignifica no próprio tempo.

(+ Muito) Talento, por sua vez, é uma releitura de Talento, single que a lançou na indústria em 2016 sob a alcunha de MC Linn da Quebrada, quando colocava-se mais próxima do funk tradicional. Entretanto, a partir de 2017, a cantora se apresentou em uma estética totalmente nova. Através da direção musical de BADSISTA, que repetiu a função em Trava Línguas, Pajubá se apropriou da cultura de ballroom e imputou a ela uma identidade típica da vivência brasileira, unindo o funk e o vogue em uma musicalidade crua e poluída, muito inspirada nas experimentações do trabalho de Arca.

Imagem de divulgação do CD Pajubá, de Linn da Quebrada. Fotografia retangular e colorida. Em foco, vemos duas pessoas. Linn da Quebrada, uma travesti negra, com cabelos crespos escuros e longos, vestindo um top verde-musgo e unhas pintadas de vermelho. Ela segura um copo vermelho e joga seus cabelos para o lado, enquanto olha para Jup do Bairro, uma travesti negra, vestindo uma peruca verde de cabelos curtos e lisos, com uma coroa de plástico e óculos escuros apoiados sobre a cabeça. No corpo, ela usa uma camisa preta e uma jaqueta escura com alguns adereços. Ela olha para frente e tem a boca aberta, como se dissesse algo. O cenário, em desfoque, é uma floresta durante o dia.
Jup do Bairro, que fazia shows com Lina antes de lançar carreira solo, é uma personagem ativa em Pajubá e participa em grande parte das faixas (Foto: Nu Abe)

A qualidade de composição e produção do disco já apontava para um orçamento maior em relação a suas empreitadas anteriores. Isso só foi possível, porém, através da promoção de um financiamento coletivo, responsável por garantir a verba necessária para a concretização do projeto. Construindo sua obra a partir de um ato de pura subversão, Linn aproxima-se intimamente de sua audiência e ressalta o caráter coletivo de sua obra. Não é por acaso, afinal, que tenha sido nomeada como “Pajubá”, nome do dialeto popular construído coletivamente por comunidades LGBTQIA+ que combina palavras do léxico português informal e de línguas africanas, frisando também suas raízes negras – da artista e da cultura queer.

O título também acentua outro dos elementos do LP: a linguagem. Da mesma forma que o pixo, ainda que se comunique por códigos que apenas os pichadores conseguem decifrar, faz questão de ser visto e ocupar o patrimônio público, Linn da Quebrada se converge ao pajubá e o utiliza como ferramenta de choque. Mesmo compondo canções de enfrentamento endereçadas diretamente aos seus opressores, a artista não abandona seu dialeto e, ao invés disso, o sublinha a fim de intensificar o senso de agressividade das faixas – ao passo que endossa que, no fim do dia, este é um trabalho produzido por e para a comunidade. 

Um exemplo claro disso é a própria abertura do álbum, (+ Muito) Talento. Antes um funk pop ardente feito especialmente para as pistas, a faixa em Pajubá é transformada em um spoken word – quando a letra é falada em vez de cantada. Os versos tornam-se ainda mais incisivos quando recitados por Lina, em uma performance teatral e resoluta, que anuncia a qualquer ouvinte que ouse enfrentá-la: ser bicha não é só dar o cu, é também poder resistir”. A intro ainda finaliza com um trecho instrumental que sintetiza toda a direção musical do disco, moldando o funk e o voguebeat a uma produção industrialmente apocalíptica, cheia de noize e bumbos estourados. Aqui, declara-se sentenciada a hegemonia branca e cisheteronormativa.

Imagem de divulgação do CD Pajubá, de Linn da Quebrada. Foto retangular e colorida. Linn, uma travesti negra, com cabelos crespos escuros e longos, vestindo um sobretudo bege e um top verde-musgo, olha para frente, contemplativa. O cenário são as paredes de uma casa abandonada, decomposta pelo tempo.
Linn da Quebrada brinca e muito com a língua: Pajubá não só é cheio de neologismos – de Necomancia à Enviadescer – como também foi pioneiro no uso do pronome neutro como conhecemos hoje (Foto: Nu Abe)

Desde que se consolidou na música, Linn da Quebrada se tornou conhecida por sua abordagem poética e figurativa. Famosa por versos comoEntre a oração e a ereção, ora são, ora não são”, não é incomum observar a artista passear com suas rimas pelos instrumentais como se preenchesse os papéis de uma poesia concreta. Essa conduta aparece em Pajubá através de faixas como Serei A: uma quebra mansa em meio ao caos que, acompanhada à voz de Liniker e leves batuques, relaciona a lenda da sereia com seu anseio em desejar-se e ser desejada como um corpo travesti. 

Entretanto, essa é uma exceção em um projeto que se fortifica na incisão. Ao contrário, não há espaço algum para digestão e assimilação, muito menos abertura para interpretação. Lina dá corpo e terreno ao explícito, fazendo do álbum literal em seu fundamento. O disco se faz arma, investindo em versos cortantes e em uma linguagem indecorosamente obscena, de maneira a dar voz à ira e revolta que irremediavelmente permeiam a existência da artista. Antes invisibilizada, ela aguça os aspectos mais desconfortáveis de sua arte – lírica e musicalmente –, de tal forma que seja impossível ignorá-la.

Esse detalhe, em específico, deu abertura para outros dilemas na posteridade. Linn da Quebrada ultrapassou a marginalidade: seu documentário Bixa Travesty estreou no Festival Internacional de Cinema de Berlim e recebeu mais de 30 prêmios internacionalmente; sua música furou a bolha, atingiu rádios e charts e, então, ocupou o horário nobre das televisões de todo o Brasil com sua trajetória no Big Brother Brasil 2022. Entre os últimos cinco anos, Lina cristalizou por definitivo seu lugar na cultura pop.

Cena do documentário Bixa Travesty, dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla. Imagem retangular e colorida. Nela, Linn da Quebrada, uma travesti negra, se apresenta de perfil, do ombro para cima. No lado à mostra, seu couro cabeludo está completamente à mostra, enquanto o outro ainda é preenchido por seus cabelos crespos e escuros. Ela olha para sua mão esquerda, levantada na altura de seus olhos, que segura um tufo de seus cabelos escuros. Linn está nua e o cenário é um banheiro.
Dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla, o documentário Bixa Travesty detalha a luta de Lina contra o câncer em 2014, antes de se lançar na indústria (Foto: Válvula Produções)

Nesse meio tempo, surgiu Trava Línguas. O sucessor de Pajubá, lançado em 2021, nasceu em um momento em que Linn da Quebrada não precisava mais se preocupar em atrair os holofotes para si. Já estavam todos lá. Nesse contexto, portanto, ela opta por uma aproximação considerada mais limpa e menos desafiadora. Como a paronímia do título sugere, o foco da cantora se apresenta na brincadeira com as palavras, sacrificando, assim, composições mais diretas e afiadas. Isso trouxe, inclusive de fãs, questionamentos sobre a razão dessa posição, como se o projeto fosse um esforço em adequar-se à lógica e estética dominante. Linn da Quebrada responde essa questão em entrevista ao blog Volume Morto:

“Eu procurei jogar muito com a contradição nesse álbum. A contradição me interessa. A contradição das coisas que eu estava trazendo no álbum, envolta numa sonoridade que estrategicamente procura aproximar quem ouve, para que com essa aproximação eu fizesse com que as pessoas me escutassem e, então, se perguntassem e percebessem o que é isso que elas estão ouvindo. Porque eu percebo uma certa aversão da maioria das pessoas, que quando ouve o palavrão já se recusa a ouvir o resto das músicas e entrar em contato com a obra”.

Enquanto uma artista que trava batalhas através da língua, Linn nega rótulos e demonstra a volatilidade de sua arte. Se Trava Línguas parte da necessidade de disputar espaços discursivos, ampliando seu alcance a partir de uma sonoridade mais convidativa, a visceralidade de Pajubá justifica-se por seu ápice de urgência: trata-se de uma expressão da pura e simples reação. Um resultado contraditório? Talvez. Mas a artista incorpora sua persona complexa e assume que esses paradoxos são peças fundamentais que formaram sua identidade e sua subjetividade emocional, dos amores aos ódios.

Reduzir Trava Línguas a uma tentativa ‘higienizada’ de assimilação é um pecado tão ominoso quanto diminuir Pajubá aos sofrimentos e discriminações que Lina relata. Não somos nossas dores e a potência do disco floresce não no preconceito, mas em uma ode à liberdade sexual e ao gozo. A cantora reúne amigas e grandes nomes da cultura LGBTQIA+ nacional para, portando as mesmas ferramentas que em certo momento usou no fronte, declarar coletivamente seu desejo e tesão aos quatro cantos.

Esse exercício se manifesta em diferentes frentes. Junto a Pepita, Linn da Quebrada transforma o ‘funk putaria’ em uma experiência lúdica em Dedo Nucué. Já em Coytada e Necomancia, com Gloria Groove, a artista opera sob o mesmo fundamento para fazer escárnio da branquitude, expondo sua faceta mais prepotente e patética. Quando Lina ratifica em Pirigoza: “Sabe a minha identidade? Nada a ver com xota e pau”, ela arranca as más-línguas da elite, castra seus falos e se apossa de sua identidade, exorcizando-a da norma binária e atribuindo a si seus próprios símbolos.

Há 5 anos, pessoas trans não podiam se dar ao luxo de pedir permissão. Pajubá reclamou o controle das narrativas de gênero antes mesmo dessa ser uma alternativa e, assim, arrombou os portões. Se hoje a cantora tem capacidade de pautar debates sobre transgeneridade em plena rede nacional, foi porque um dia ela disputou esses territórios, materiais e linguísticos. E, sobretudo, se essa brecha mantém-se exposta e artistas continuam passando por ela, foi porque, um dia, em uma reinterpretação do que é possivelmente a composição mais importante de sua carreira, Linn da Quebrada levantou-se e gritou a plenos pulmões: “Porque antes era viado, agora eu sou travesti”. 

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