A Menina Silenciosa tem muito a dizer

Cena do filme The Quiet Girl. Nela, há uma menina branca de olhos azuis e cabelos castanhos, lisos e longos. Ela usa um vestido amarelo listrado, com gola branca, e está em um carro. Ela olha para o lado esquerdo, onde se encontra a janela do veículo. Ao fundo, uma estrada de concreto.
Unindo estreias na direção, no roteiro e no elenco, The Quiet Girl foi lançado no 72° Festival Internacional de Cinema de Berlim e chegou ao Brasil pelo Festival do Rio, em Outubro de 2022 (Foto: Break Out Pictures)

Vitória Vulcano

Nos anos 80, em uma região campestre e isolada no mapa da Irlanda, uma garotinha responde aos estímulos mundanos com o silêncio. Ela não é incapaz de dialogar, nem decisivamente conformada a ponto de abrir mão das palavras, mas veste a capa da invisibilidade como tática de sobrevivência em uma casa apática e disfuncional. Essa é a premissa direta, dolorida e nada despretensiosa de The Quiet Girl, filme inspirado no conto Foster, de Claire Keegan, e dono de uma única e poderosa indicação ao Oscar 2023

O papel de estreia de Catherine Clinch se move por uma eterna digestão sensorial. Na pele de Cáit, nome símbolo da pureza e riqueza em potencial, a atriz incorpora a inocência e curiosidade tipicamente infantis, que são abaladas todos os dias por várias faces da negligência, ora da escola ou daquele lar, ora de seus próprios pais e irmãos. Sem mascarar a dinâmica injustificável do abandono, as escolhas da produção de Cleona Ní Chrualaoí, entre o esconderijo nas plantações do quintal e as fugas do recreio, costuram o sofrimento de sua protagonista ao dos familiares, presos em um ciclo de pesares e pobreza. 

Diante da quinta gravidez da mãe, Cáit é enviada para morar com parentes distantes e, até então, desconhecidos. A transição de atos acontece sob os mesmos faróis que guiam a grandiosidade de A Menina Silenciosa (título no Brasil) durante seus 94 minutos: os olhos atentos e profundos de Clinch, que capturam o cerne das mudanças manifestando as opiniões roubadas de sua boca. E, quando essas orbes azuis finalmente descobrem a realidade do afeto, não há como voltar atrás.

Cena do filme The Quiet Girl. Nela, no lado esquerdo, há uma menina branca de cabelos castanhos, lisos e longos. Ela usa vestido amarelo comprido até os joelhos e sandálias marrons. Ela está com as mãos cruzadas à frente do corpo e parada em frente a um carro amarelo, que tem uma das portas traseiras aberta. No lado direito, diante da garota, há uma mulher branca de cabelos brancos presos em um coque. Ela veste camisa rosa de botões e calça marrom, além de abrir um sorriso. Ao fundo, uma estrada de pedregulhos e um jardim verde.
O longa venceu sete prêmios no Irish Film & Television Awards 2022, cerimônia mais ilustre de seu país de origem, incluindo Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Atriz (Foto: Break Out Pictures)

Amistosos e repletos de camadas, Eibhlín (Carrie Crowley) e Seán Cinnsealach (Andrew Bennett) coordenam a guinada narrativa na vida da garota, mostrando a força embutida nos gestos mais corriqueiros. Com o carinho espelhado pela presença constante do casal, Cáit se acostuma a tomar banhos quentes, compartilhar a cozinha sorrindo levemente e transformar sua quietude, antes refém do medo, em um traço de identidade em desenvolvimento. Aos poucos, os não-ditos – que preenchem igualmente a memória enlutada do novo lar – desenlaçam traumas para recondicionar os horizontes esperançosos da trama.

Dirigido e roteirizado por Colm Bairéad, que, aqui, comanda o primeiro longa-metragem de sua carreira, The Quiet Girl tem o poder especial de criar pontes entre suavidade e potência, sobretudo porque seu primor criativo é encontrar energia na simplicidade dos momentos encenados. Premiado e consolidado no universo dos curtas, o cineasta se desenvolve muito bem em uma história estendida que se batiza na dicotomia do amor: sentimento tão complexo quanto trivial, se sabemos lidar com ele.

O aspecto emotivo cresce, em paralelo ao ritmo lento e delicado da obra, pela conexão de elementos técnicos que quase cheiram à ternura. Panoramicamente imersiva e caseira, a fotografia de Kate McCullough (Normal People) acompanha a maneira de Cáit se relacionar com cada mínimo fator vital que deveria ser belo e colorido por natureza, porém, só alcança luz literal após a nítida evolução da personagem. A trilha sonora de Stephen Rennicks (O Quarto de Jack) também não apequena a experiência, climatizando da tempestuosidade à doçura deixadas no caminho.

 Cena do filme The Quiet Girl. Nela, há uma menina branca de cabelos castanhos presos em uma trança. Ela veste blusa branca de gola alta e está retratada de perfil, do pescoço para cima. Ao fundo, uma paisagem verde e um céu azul desfocados.
“O filme inteiro realmente descansa nos ombros dela. […] Ela tinha essa habilidade ou esse tipo de entendimento”, comentou Bairéad sobre a atuação de Catherine Clinch, em entrevista ao Deadline (Foto: Break Out Pictures)
Edificado por uma série de pioneirismos, A Menina Silenciosa trouxe alcance e impacto inéditos ao Cinema irlandês. A obra nasceu em Berlinale, onde recebeu o Urso de Cristal de Melhor Filme pelo Júri Generation Kplus 2022. Meses depois, se tornou a maior bilheteria já vista para um longa-metragem confeccionado na língua hibérnica, além de ganhar exibições em circuitos especializados da Coreia do Sul, Austrália, Inglaterra e dos Estados Unidos. 

Declarado Melhor Filme Estrangeiro no London Film Critics Circle Awards 2022 e indicado a dois prêmios do BAFTA Awards 2023, o longa chega à 95ª edição do Oscar alargando seu currículo histórico. Essa é a primeira vez que a Irlanda consegue emplacar um representante na lista de nomeações a Melhor Filme Internacional, enfrentando produções da Alemanha, Argentina, Bélgica e Polônia

Ainda que a vitória na competição seja projetada para o estrondoso Nada de Novo no Front, a campanha do país europeu na premiação nunca esteve em holofotes melhores. Em um movimento carinhosamente apelidado de “onda verde”, a terra dos duendes concorre com Os Banshees de Inisherin em outras nove categorias e está nas raízes de Paul Mescal, novato na disputa pela estatueta de Melhor Ator.

Cena do filme The Quiet Girl. Nela, há uma menina branca de cabelos castanhos, lisos e longos, que usa tiara e vestido amarelos. Ela está abraçada a um homem de cabelos curtos e grisalhos, o qual está virado de costas para a imagem. Ele usa casaco preto e retribui o gesto. Ao fundo, um céu azul e uma paisagem verde desfocados.
As definições de “pai” foram brilhantemente atualizadas (Foto: Break Out Pictures)

Dentro e fora de si, o filme de Bairéad é sobre construção afetiva e, acima de tudo, sobre como a ternura é revolucionária. O amor tem diferentes linguagens, ultrapassa convenções e aprende a significar por si mesmo. A cada frame, o longa mostra que não precisa de muito para emocionar com o reconhecimento de suas sutis, rotineiras e belíssimas expressões de humanidade. No fim, as palavras se apequenam, o sol paira sobre um tremendo abraço e, nas entrelinhas do pertencimento, The Quiet Girl faz sua prosa sentimental romper qualquer silêncio.

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