Notturno: as cicatrizes da guerra são profundas como a noite e nítidas como o dia

O documentário é parte da seção Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Reprodução)

Raquel Dutra

Um jovem casal se encontrando enquanto tiros soam ao fundo, crianças desenhando seus traumas, pacientes psiquiátricos ensaiando uma peça de teatro como parte do tratamento. Num compilado de imagens cotidianas protagonizadas por quem viu e sentiu uma violência extrema, Notturno ressalta as marcas que os conflitos no Oriente Médio deixam em seus habitantes. Filmado durante os três últimos anos nas fronteiras do Iraque, Curdistão, Síria e Líbano, o documentário chega na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo registrando a realidade material e psicológica de quem, inserido num cenário onde a guerra é uma companhia constante, tenta seguir em frente.

Em retratos lentos, o diretor Gianfranco Rosi demarca a presença constante da violência sem transformá-la em seu personagem principal. Armas, bombardeios, cidades destruídas, clarão de explosões na madrugada compõem ambientes onde mães choram a morte de seus filhos, crianças limpam armas e mulheres descansam em alojamentos de guerra. Sem criar uma narrativa linear e contextualizada, a sensação de desordem que acompanha o documentário deve ser semelhante, imagino, com a de quem tem a vida atravessada por tanta destruição. O sentimento de universalidade também, por que não importa saber em qual dos lugares que o diretor circulou nós estamos. O cenário de morte sempre se conflita com a transpiração de vida que as pessoas vibram, ainda que em frequência reduzida – também combinando com o ritmo do filme.

Gianfranco Rosi é presença constante nas principais categorias do Festival de Veneza e teve seu longa Fogo no Mar indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2017 (Foto: Reprodução)

O som é um aliado importante dos sentidos que Rosi, também na direção de fotografia, constrói. Ao nos colocar para observar soldados estadunidenses através de janelas, famílias em planos distantes e cidades destruídas em absoluto silêncio, Notturno gera uma sensação desconfortável de distanciamento, impotência e esterilidade. Confirmando a noção óbvia de que nós de fora jamais compreenderemos tamanha gravidade da situação e de seus efeitos, o documentário observa e sente, mas não toma parte das individualidades de seus personagens. 

A partir do cancelamento da sonorização, o documentário fornece suporte para que vários outros contrastes sejam criados usando a imagem e som. O silêncio lúgubre é quebrado por explosões e tiros, e a luz ofuscante do dia em campos enormes que escondem trincheiras é quebrado pela escuridão da noite em casas destruídas que se abafam como uma forma de proteção. Em uma delas, uma mãe ajeita seis crianças na hora de dormir enquanto o mais velho deles sai no meio da noite para trabalhar e garantir o sustento da família. Explorando seus recurso de construção, Notturno segue com sua proposta e material simples e concentra-se em sua montagem, que sob a direção de Jacopo Quadri, por vezes percorre locais bombardeados enquanto áudios que filhos desesperados enviam aos seus pais implorando socorro e resgate são reproduzidos ao fundo.

O documentário é resultado de uma colaboração entre Itália, França e Alemanha e venceu o prêmio Unicef do Festival de Veneza (Foto: Reprodução)

Mesmo dividindo conosco casas de famílias desmembradas pelas guerras e grupos extremistas e sessões de terapias coletivas de quem sobreviveu e agora tenta curar suas feridas emocionais, é preciso ressaltar que Notturno é menos significativo do que muitos outros filmes árabes feitos sobre este mesmo tema. A questão é que boa parte das informações sobre essa situação já são de conhecimento geral: em meio a um estado constante de alerta, com incêndios, explosões e tiroteios sempre iminentes, a violência é apenas mais uma parte natural e ordinária da realidade.

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