Nilo Vieira
Bastante rústico e ainda obscuro ao grande público, o curta-metragem The Image (1967) é uma produção peculiar na carreira de David Bowie. Primeira aparição do camaleão no cinema, o filme dirigido por Michael Armstrong já mostrava o cantor no papel que marcaria sua trajetória: uma entidade fantástica – bem antes das fábulas de Major Tom no espaço sideral e indagações sobre a existência de vida em Marte.
Cinco anos depois, Bowie levou a ideia de um personagem sobrenatural ao extremo em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). Essa guinada poderia não representar nenhuma novidade, mas o perfeccionismo visionário do disco surpreende até hoje. Inspirado pelo glam rock do T. Rex e a narrativa lisérgica dos Beatles em Sgt. Peppers (1967), David criou a história de um alien que chega à Terra com mensagens de paz e acaba cedendo aos vícios do rock ‘n’ roll, amarrada em uma sonoridade riquíssima e ainda acessível.
Marc Bolan, líder do T. Rex, era amigo de Bowie e sua influência é escancarada em Ziggy Stardust. Os violões suaves contrastando com guitarras explosivas e a abordagem contida da voz são elementos chave de Electric Warrior (1971), e nas mãos de seu parceiro são colocados em um prisma ainda mais imaginativo. Basta ouvir “Soul Love”, onde os instrumentos cuidadosamente postos em escalada se assemelham à pinceladas de cores no movimento impressionista, e a interpretação vocal emotiva fornece maior dinâmica em comparação às composições de Bolan. Este, aliás, parece ter recebido inspiração bowieana em seu The Slider (1972), onde as letras oníricas ganharam ainda mais espaço.
Em comparação ao clássico maior de Paul McCartney & cia, pode se afirmar que David foi ainda mais além: ao invés de pegar Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band como ponto de partida e expandir sua grandiosidade (ideia que levaria Brian Wilson, do Beach Boys, ao delírio), captou a ideia essencial acerca da estética e a entregou em um produto mais compacto. As canções das Aranhas de Marte possuem timbres muito mais encorpados, e possuem a vantagem de funcionar tanto sozinhas como em conjunto, enquanto a Banda do Sargento Pimenta ainda soa como um grande quebra cabeça pomposo de experimentações pop. “Moonage Daydream” é um belo exemplo: o simples uso de eco nos vocais e notas longas sustentadas pela guitarra de Mick Ronson já remete ao espaço sideral, a classe dos arranjos de cordas é contrastada pelos versos com distorção – sem nunca cair no exagero.
O real trunfo de Bowie em relação aos Beatles, porém, se dá no aspecto prático. Ao passo em que o quarteto de Liverpool criou a fanfarra imaginária como uma válvula escapista, o camaleão incorporou o decadente astro alienígena em carne, mente e figurinos. Se já no LP o enredo de David Robert Jones soava mais convincente – compare a interpretação visceral e descritiva de “Lady Stardust” com o retrato cartunesco de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” -, em cima dos palcos ela triplicou sua potência.
Ao pensar em shows de rock como apresentações teatrais, barreiras artísticas conceituais foram derrubadas e, mais importante ainda, a ideia de transformação foi abraçada com força. Além de extraterrestre, Ziggy Stardust foi como um grande amigo imaginário onde muitos jovens rebeldes ou inseguros se espelharam, que personificou como ninguém o típico ideal de astro pop. O final de “Star” é o equivalente a uma cena cinematográfica, em câmera lenta, de um pirralho trajando fones de ouvido e sonhando que está executando um grande solo de guitarra perante uma multidão, como se só aquilo bastasse para afastar os momentos ruins. A última estrofe é emblemática:
I could fall asleep at night
as a rock & roll star
I could fall in love all right
as a rock & roll star
O impacto foi tão forte que algumas publicações da época logo declararam que Elvis Presley já era passado, e o novo rei do rock atendia por David Bowie. O posto é justo até a atualidade, e há de se reconhecer que um do motivos para tal foi a sabedoria de retratar também os pontos baixos da cultura do estilo e ainda fazê-lo de maneira grandiosa e pegajosa. O encerramento com “Rock ‘n’ Roll Suicide” soa tão definitivo que o disco sucessor, Aladdin Sane (1973), parece mais ser uma exploração de um mundo microscópico dentro da narrativa original (opino que estaria situado entre “Hang on to Yourself” e “Ziggy Stardust”) do que propriamente uma continuação. A morte do protagonista é de um romantismo bíblico: assim como Jesus, é assassinado por seus seguidores – com o adicional de que Ziggy compartilhou também os pecados de seus fãs.
Pessoas encararam a maquiagem em seu rosto
Mas o mundo do rock não era o suficiente para o músico. O figurino trajado por ele e sua banda era extravagante, repleto de cores, cortes assimétricos e referências culturais; o macacão usada na capa do álbum, por exemplo, é uma releitura das vestimentas dos droogies da Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick, e outros modelos foram inspirados por trajes espaciais, a psicodelia do Verão do Amor, símbolos budistas e costumes japoneses. O estilista Kansai Yamamoto faz questão de reafirmar o pioneirismo do amigo: “Minhas roupas eram feitas para modelos profissionais – aquela foi a primeira vez que foram usadas por um artista ou cantor. Foi o começo de uma nova era.”
As roupas, por mais chamativas que fossem, não bastariam sem uma postura condizente. Elvis foi censurado por seus quadris, mas era apoiador ferrenho do presidente Nixon. David, por sua vez, rebolava o corpo inteiro, trocava olhares com sua plateia, se maquiava sem pudor, mudava de modelitos durante o show e chegava a ficar apenas de cueca em cima do palco. Além, é claro, das comentadas performances homoeróticas com Mick Ronson, seu inconfundível corte de cabelo e entrevistas onde abordava sua sexualidade abertamente – tudo isso ao mesmo tempo.
Sua androginia caiu como uma bomba para alguns e como uma luva para outros: o público LGBTQ+ o alçou a ícone em um piscar de olhos, lhe dando o apelido de “rainBowie”. A identidade de cada um não precisava ser apenas o cumprimento de uma fórmula estabelecida por padrões caquéticos, afinal.
A famosa performance de “Starman” no Top of the Pops (BBC), responsável por catapultar Zig-, David Bowie ao estrelato: sensualidade à flor da pele
Enquanto o flower power do Woodstock ia morrendo junto de seus principais ídolos e com a Guerra do Vietnã, Ziggy Stardust acendeu a faísca para uma nova revolução sexual na arte. O livro David Bowie Is Inside (2013), editado para a exposição David Bowie Is (com passagem pelo MIS, São Paulo, em 2014), aponta que essa direção estava até nos pequenos detalhes:
“(…) a now short-haired, Nordically blonde Bowie is posted in macho mode, leg up on a rubbish bin on a London night street, his guitar slung like a rifle at his side while he warily scans the distance like a soldier on patrol. (…) That sexual contrary is revealed by the sensational photograph on the back of the album: Bowie piercingly meeting the viewer’s eyes from a within a lighted telephone box, where he loiters with the graceful hands and hip-shot stance of a woman but the bare chest and bulging crotch of a male hustler. (…) Bowie’s eccentric posture here was his first public use of drag queen mannerisms, which have been highly stylized since the Victorian era and probably long before.”
Sua androginia e olhar fashion influenciaram alguns dos mais importantes artistas pop posteriores – Prince, Kate Bush e Lady Gaga, ficando nos exemplos mais óbvios -, mas já em 72 o Starman ajudou a moldar trabalhos de sucesso de dois sujeitos que o inspiraram.
Lou Reed (cujo Velvet Underground era conhecido por Bowie antes mesmo da clássica estreia) lançou Transformer (1972), seu álbum solo mais conceituado, produzido pelo camaleão. O DNA de Mick Ronson, co-produtor e responsável pela maioria dos arranjos, é quase incômodo na sonoridade do disco, que soa como um apanhado de lados b de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. O diferencial fica por conta das letras, com as tradicionais observações de Reed sobre pessoas peculiares e grupos rejeitados: na clássica “Walk on the Wild Side”, fala de prostitutas, traficantes e transsexuais. Assim como o disco de seu mentor, Transformer também virou um clássico do rock entre o público LGBTQ+.
Meses mais tarde, Iggy Pop e seus Stooges desembarcaram em Londres. O resultado das sessões com David foi Raw Power (1973), a obra-prima da banda e apostila básica para todo o movimento punk. Até mesmo a maquiagem em Pop na icônica capa parece sintomática, e o álbum consegue ser o mais pesado e bem produzido dos Stooges ao mesmo tempo. Curioso notar que, apesar do disco ser estupendo, a participação de Bowie é questionada: audiófilos apontam que sua mixagem original enterrou as guitarras no produto final. No entanto, sua amizade com Iggy permaneceu e, cinco anos depois, os dois embarcaram juntos em novas guinadas sonoras na Alemanha.
Vida em Marte? Sim!
O efeito mais pesado de Ziggy Stardust, todavia, seria em seu próprio criador. Após o sucesso do álbum, “Space Oddity” e “Life On Mars?” (respectivamente partes do álbum homônimo de 1969 e do estupendo Hunky Dory (1971)) ganharam videoclipes e, por que não, novas possibilidades semânticas dentro do universo do artista. A primeira foi inspirada pela contemplação mecânica de 2001: Uma Odisséia No Espaço (1968) mas, após o surgimento e queda do rockstar alien, ganhou tons emocionais mais próximos a Solaris (1972), adaptação do romance de mesmo nome dirigida por Andrei Tarkovsky. O Major Tom não mais é um astronauta fascinado com os avanços da corrida espacial, mas sim um ser humano deslocado de sua origem e com imenso vazio emocional, como sugere o trecho do livro de Stanislaw Lem: “O homem saiu para encontrar outros mundos, outras civilizações, sem saber nada sobre seus próprios recessos, ruas sem saída, poços e portas bloqueadas e escuras.”
Já o surrealismo de “Life On Mars?”, objetivamente a melhor música já registrada na história da humanidade, transpassou os limites da abstração ao ser apropriada pelo novo protagonista. Um retrato brilhante do fluxo bizarro das sociedades capitalistas, capitaneada por uma grande questão interplanetária, agora é cantada por um marciano de terno azul na tela prateada. Teria Ziggy sido cooptado por grandes empresas terrestres como novo garoto propaganda ou seria apenas parte de sua mensagem codificada para os humanos? Ou apenas um grande simulacro orquestrado pelo artista, onde o título da canção se refere mesmo a um show de TV hipotético, e ele apenas estaria testando nossas percepções de fantasia e realidade? Respostas sequer são necessárias quando as perguntas são tão amplas e fascinantes.
Mais ainda, é possível interpretar o David Bowie de Hunky Dory como um cigano que, após experienciar o nascimento de um filho (“Kooks”), a esquizofrenia do irmão (“The Bewlay Brothers”), a filosofia nietzschiana (“Oh! You Pretty Things”), o ocultismo de Aleister Crowley (“Quicksand”) e ícones da contracultura (“Andy Warhol”, “Song for Bob Dylan”) se encontra sem outra opção senão abraçar as mudanças por completo. O verso “turn and face the strange”, de “Changes” (Ch-ch-changeeees!) foi levado à risca, e o real estranho não poderia vir da morosa realidade terráquea – não quando se acaba de descobrir que existe vida em Marte.
Em julho de 1973, no Hammersmith Odeon em Londres, Bowie surpreendeu público e membros de sua banda ao anunciar que “este não apenas é o último show da turnê, mas o último que faremos”. Passado mais de um ano, chegava o fim de Ziggy Stardust and the Spiders From Mars como personagens de uma peça, antes que os atores ficassem insanos. “Eu estava convencido de que era o messias, era assustador”, diz David. Mick Woodmansey, baterista daquelas turnês, afirma que essa impressão também partia do público: “Você pensava “Qual é, eu sou de Driffield!”, mas todos pensam que você veio de Marte”.
Felizmente, foi apenas uma morte conceitual. Para o autor de O Homem que Vendeu o Mundo, Peter Doggett: “É quase impossível para um artista, hoje, NÃO ser influenciado por Bowie.” De Arcade Fire à Karol Conká e Open Mike Eagle, passando por Nirvana e Seu Jorge, todos devem algo a David Robert Jones – até mesmo Kanye West, fã declarado e parte de uma teoria da conspiração virtual bizarra envolvendo a capa. Mas, acima de tudo, Ziggy Stardust ainda é o melhor amigo imaginário proporcionado pela cultura pop. Fantástico, em todos os sentidos, mesmo 45 anos depois.
Artigo perfeito!!