Andrei Tarkovsky: 30 anos sem o escultor do tempo

andrei-tarkovsky-cinema-stalkerNilo Vieira

Filho de pai poeta e mãe atriz, o russo Andrei Arsenyevich Tarkovsky conviveu com a arte desde sua infância: ia a recitais, ouvia Bach, admirava quadros de Leonardo Da Vinci. Desse modo, não é surpresa que seu modo de fazer cinema tenha sido de um refinamento artístico raro e, mesmo com apenas sete longas-metragens no currículo, ainda permaneça como um dos mais influentes da história.

O aspecto mais comentado de seus filmes, com justiça, é a fotografia. Embora seu estilo tenha sido lapidado mais tarde, logo em seu primeiro filme essa característica já se mostrava um forte. Os belos enquadramentos de A Infância de Ivan (1962) só confirmam a grande contradição que cerca a arte das lentes: possibilitar que mesmo as piores tragédias rendessem uma composição esteticamente agradável aos olhos. Ruínas, aliás, são uma constante na obra tarkovskiana e revelam um grande diferencial de seu trabalho – o diretor não pretende fornecer uma masturbação visual gratuita com centenas de quadros em florestas serelepes e sim, forçar o espectador a observações nos mais diferentes cenários.

A Infância de Ivan: o caos da guerra sob diversos ângulos
A Infância de Ivan: o caos da guerra sob diversos ângulos

Observação, aliás, é um termo intrínseco aos projetos de Tarkovsky. Suas filmagens em longos planos-sequência parecem dizer que o mundo não para de girar, mas que não é necessário entrar no fluxo incessante e massivo imposto pela sociedade. Os mínimos traços, sejam de um ser humano ou algum objeto qualquer, podem possuir uma beleza singular imperceptível no cotidiano e nos contar diversas histórias. É na meditação que o autoconhecimento melhor funciona, afinal; vale relembrar o clássico vídeo onde o cineasta aconselha os jovens a apreciar a solidão:

No entanto, o toque de mestre de Andrei é sua relação intimista com outras vertentes artísticas. A poesia de seu pai, Arseny, é essencial para a construção do tempo psicológico na obra-prima Espelho (1975), ao passo em que os conflitos entre arte e artista são tema central em Andrei Rublev (1966) – que, curiosamente, foca em períodos onde o pintor esteve inativo. O final deste, onde a pintura converge com a música erudita (escolha predominante nas trilhas de Tarko) após uma odisseia de mais de três horas, é um dos mais singulares já registrados – quantas outras tomadas contemplativas são tão substanciais e, ao mesmo tempo, épicas?

A arquitetura, além de fornecer perspectivas para a câmera, também colabora para a criação da ótica simbolista do cineasta, como bem representado em Nostalgia (1983). Posicionar alguém acima de uma estátua se torna um ato político, fundir uma casa de campo à construções antigas representa a grandiosidade de choques culturais; as possibilidades são infinitas.

nostalghia
Nostalgia: o perfeccionismo de Tarkovsky

Por fim, a dramaturgia teatral em sua obra derradeira, O Sacrifício (1986), além de mostrar que seus enredos não necessitavam de grandes modismos para se sustentar, denuncia sua maior influência: Ingmar Bergman. O apreço era tanto que, para este filme, Tarkovsky trouxe o diretor de fotografia de boa parte dos filmes do sueco, além de novamente ter o ator Erland Josephson no cast. O longa, produzido na Suécia, têm muito da chamada “Trilogia do Silêncio” de Bergman (composta pelos filmes Através do Espelho (1961), Luz de Inverno (1963) e O Silêncio (1963)), onde a fé – ou a falta dela – guia crises existenciais e familiares. Já em Nostalgia, o ato de um indivíduo adentrar na mente do outro é claramente uma releitura do colossal Persona (1966).

A religiosidade e os retratos tarkovskianos da fé, inclusive, lhe renderam seus maiores feitos e também os grandes problemas de sua carreira. A URSS não aprovou o teor explícito de Andrei Rublev (1966), e o filme só ganharia uma estreia formal cinco anos depois de finalizado. Pra melhorar, a produtora soviética Mosfilm fiscalizava e chegava a censurar roteiros, o que acabou limitando ainda mais a carreira do diretor.

Mas, embora curta, sua trajetória no cinema é uma das poucas que se pode chamar de irrepreensível. Mesmo que a fé marque presença em boa parte de seus filmes, Tarkovsky passou longe de ser repetitivo. Colocou nas telas o embate entre crença e ciência, questionou preceitos da igreja perante as mulheres e os considerados loucos, mostrou como a fé afeta o ofício da arte. Todavia, talvez nenhum de seus filmes demonstre tão bem essa relação como Stalker (1979), considerado por crítica e público como o seu melhor filme.

De maneira breve, o enredo do filme trata da viagem de um “stalker”, criatura seleta com o dom de guiar pessoas através de um lugar chamado de “Zona” (cuja lenda diz que possui a capacidade de tornar desejos realidade), e dois clientes, referidos apenas como Professor e Escritor. É bastante curioso notar como estes personagens representam um conflito ainda atual: a emoção contra a razão lógica, que o ambiente universitário contemporâneo insiste em segregar como “humanas vs exatas”. E, da mesma maneira como ocorre na sociedade, o filme mostra que esses dois prismas não são insolúveis e que acabam na mesma estaca zero perante reflexões interiores profundas, revelando comportamentos egoístas e destrutivos.

A filmagem paciente, a alternância entre planos em p&b e coloridos e a trilha sonora ambiental (uma raridade se tratando de Tarkovsky) criam um clima profundamente desolador, e as mais de duas horas e meia do filme se revelam desafiadoras. Porém, a mensagem final que Stalker propõe ao público – inclusive com a quebra da quarta barreira – é otimista. Ter fé não significa depender de divindades ou aceitar a vida passivamente, e sim, ter esperança.

Professor, Stalker e Escritor: cuidado com o que deseja
Professor, Stalker e Escritor: cuidado com o que deseja

A crítica mais constante aos filmes de Tarkovsky é que aparentam ser muito semelhantes entre si. De fato, o menos entusiasmado pode se cansar com o ritmo devagar, mas é muito reducionismo rotular sua carreira como homogênea demais. A Infância de Ivan é um filme de guerra raro, onde o status de criança do protagonista é sempre bem demarcado, mas jamais ileso às brutalidades da guerra – algo como um meio termo entre o afamado A Vida é Bela (1998) e o conterrâneo Vá e Veja (1985), sem cair nos extremos de ambos. Já Andrei Rublev é um biópico distinto, tanto por sua narrativa não convencional como por mostrar experimentações do próprio diretor – a invasão dos tártaros é digna dos melhores momentos de Akira Kurosawa, amigo pessoal do russo.

Mas foi com Solaris (1972) que o diretor provou a sua capacidade em imprimir seu estilo peculiar aos mais variados gêneros cinematográficos. Buscando fugir dos parâmetros da ficção científica então estabelecidos por obras como 2001: Uma Odisseia No Espaço (1968), definido pelo próprio como “estéril e frio”, Tarkovsky adaptou o romance homônimo e cravou de vez o elemento humano no estilo. O empirismo se choca com o onírico, em uma obra-prima intimista sobre solidão, memórias e arrependimento. Infelizmente, essas ideias foram herdadas e diluídas ao máximo por alguns cineastas, e servem de base até hoje para atrocidades como Interestelar (2015) e A Chegada (2016), dotadas de um didatismo ofensivo e piegas.

Contudo, os filmes de Andrei Tarkovsky também renderam bons alunos e frutos notáveis. O húngaro Bela Tárr quiçá foi seu aprendiz mais hardcore, diminuindo ainda mais o ritmo da câmera e criando obras dantescas em preto e branco, como a epopeia Satantango (1994), uma boa pedida para suas férias. O norte-americano Gus Van Sant e seu Elefante (2003) também não seriam os mesmos sem Tarkovsky, e mostram que sua influência vai além do continente europeu – notável notar que, embora tenha sido crucial para a consolidação do cinema russo, nenhum de seus dez filmes favoritos seja de diretores conterrâneos.

O ápice de todo esse reconhecimento, entretanto, viria de seu maior professor, certeiro em sua definição: “Tarkovsky é, para mim, o maior (diretor), aquele que inventou uma nova linguagem, verdadeira à natureza do cinema, ao capturar a vida como uma reflexão, como um sonho“. Três décadas após sua morte, essa citação se mantém isenta de qualquer exagero, bem como seus “meros” sete filmes parecem não ter envelhecido um segundo; nada incomum para um artista que dominou o tempo como poucos, no final.

Akira Kurosawa e Andrei Tarkovsky: tudo que você precisa saber sobre cinema
Akira Kurosawa e Andrei Tarkovsky: tudo que você precisa saber sobre cinema

 

 

 

 

Deixe uma resposta