Iggy Pop, o idiota com tesão pela vida

Bárbara Alcântara

Quem teve a chance de ver Iggy & the Stooges no Claro Q É Rock, em 2005, ou no Planeta Terra, em 2009, ficou no mínimo abismado com a desenvoltura e a energia ainda exibidas pelo vocalista, mesmo aos mais de 60 anos de idade. Usando apenas um jeans feminino e um par de botas, Iggy Pop subiu nos amplificadores, fez danças inusitadas, abaixou as calças e ainda chamou o público para subir no palco – tudo isso enquanto cantava, a plenos pulmões, os clássicos da banda. No entanto, os caminhos até o topo foram ardilosos.

Ao lado de seus companheiros de banda, fez história com álbuns clássicos como o homônimo “The Stooges” (1969), o “Funhouse” (1970) e o “Raw Power” (1973), mas não passou incólume à intensa vida à la “Blank Generation” da cidade grande: quando a banda se desfez, em 1974, ele estava afundado nas drogas, sem dinheiro e sem contrato. Foi graças a David Bowie que se salvou. O amigo tirou Iggy do fundo do poço, o levou para a Europa e, em 1977, produziu os dois primeiros e aclamados álbuns em carreira solo do cantor: The Idiot, em março, e Lust for Life, em agosto.

 “A amizade basicamente era que esse cara me salvou de certo aniquilamento profissional e talvez pessoal, simples assim”, Iggy sobre Bowie. (Foto: Reprodução)
“A amizade basicamente era que esse cara me salvou de certo aniquilamento profissional e talvez pessoal, simples assim”, Iggy sobre Bowie. (Foto: Reprodução)

Um completo idiota

The Idiot chegou como uma afronta aos fãs do extinto Stooges. Trazia uma nítida influência de Bowie, com quem escreveu a maior parte das músicas em parceria, e isso definitivamente não agradou a quem estava acostumado com o som arcaico e visceral dos primórdios. Mesmo com todas as mudanças, a assinatura de Iggy estava lá: as faixas exprimiam o seu sentimento em relação ao mundo, fosse pelas letras autobiográficas, fosse pelas melodias densas e quase fúnebres.

Tudo começou em 1947, no estado de Michigan, quando nasceu James Newell Osterberg Jr. Uma criança comum, alegre e sorridente, que tinha um desempenho impecável na escola. Aos poucos, o menino foi revelando seus dons artísticos e um grande apreço pela música. No auge da adolescência, formou a sua primeira banda, The Iguanas (daí veio seu apelido, Iggy) e, a partir de então, começou a desandar nos estudos.

Como todo jovem rebelde, sentia que seu pai era superprotetor. Quando começaram as reclamações em casa sobre a influência negativa da sua carreira musical sobre a acadêmica, ele chegou a “se mudar para as ruas” – mas foi acolhido pela família novamente.

Foto do grupo The Iguanas, com o jovem Iggy Pop ao centro (Foto: Reprodução)
The Iguanas, com o jovem Iggy Pop, nas baquetas, ao centro (Foto: Reprodução)

A música de abertura do álbum, “Sister Midnight”, conta um episódio de sua juventude em que foi pego no flagra pelo pai com a filha de uma família vizinha e, a partir de então, proibido de sequer se aproximar da garota. Nela, ele fala sobre o sentimento que foi reprimido por anos. Posteriormente, a música foi regravada por Bowie sob o nome de “Red Money”, com a letra modificada.

“Calling Sister Midnight | Chamando a Irmã da Meia Noite

Can you hear me call?  | Você pode me ouvir chamar?

Can you hear me well? | Você pode me ouvir bem?

Can you hear me at all? | Você pode simplesmente me ouvir?

Calling Sister Midnight | Chamando a Irmã da Meia Noite

I’m an Idiot for you | Sou um idiota por você”

Entrou na universidade apenas para ter o primeiro contato com o que viria a ser o seu mundo. Assistiu a apresentações do Velvet Underground, MC5 e The Doors, e com o tempo passou a se identificar com a postura insolente dessas bandas, que iam contra o flower power dos hippies. Isso fascinou o jovem que, na época, preferia “My Generation”, do Who, a “Help!”, dos Beatles. Abandonou a faculdade para abraçar a sua verdadeira paixão: a música!

Após passar por uma série de bandas, em 1967, conheceu os irmãos Scott e Ron Asheton, e formou o que um dia seria os Stooges. Dave Alexander era, a princípio, roadie, mas terminou como baixista. Ron assumiu a guitarra e Scott, a bateria. Iggy Pop ficou a cargo dos vocais e, inspirado nas apresentações de Jim Morrison, passou a fazer performances intensas e audaciosas – que terminavam, geralmente, com o cantor nu ou coberto por seu próprio sangue.

Era normal Iggy se cortar com cacos de vidro durante os shows, pular nos instrumentos e se jogar em cima do público (atitude essa que ficou conhecida como stage dive) (Foto: Reprodução)
Era normal Iggy se cortar com cacos de vidro durante os shows, pular nos instrumentos e se jogar em cima do público (atitude essa que ficou conhecida como stage dive) (Foto: Reprodução)

A segunda faixa de The Idiot, “Nightclubbing”, é a música que, com uma vibe vampiresca, melhor retrata as madrugadas excursionando por festas e gigs ao redor da cidade. Noites varadas à base de álcool e entorpecentes, que fizeram com que os Stooges entrassem em um submundo que, cada vez mais, se mostrava sem futuro algum e, principalmente, sem volta.

Nightclubbing we’re nightclubbing | Festejando, nós estamos festejando

We’re walking through town | Nós estamos andando pela cidade

Nightclubbing we’re nightclubbing | Festejando, nós estamos festejando

We walk like a ghost | Nós andamos como fantasmas

We learn dances brand new dances | Nós aprendemos danças, novas danças

Like the nuclear bomb | Como a bomba nuclear

Enfim, em 1969, assinaram contrato com a Elektra Records e gravaram o primeiro álbum, The Stooges, produzido por John Cale do Velvet Underground. Um ano depois lançaram Fun House, esse por Don Gallucci do Kingsmen. Infelizmente, ambos os álbuns não foram bem sucedidos comercialmente na época e receberam muitas críticas.

Entre 1971 e 1972, a banda passou por um hiato: Iggy estava lutando contra o vício em heroína. Mais ou menos nesse período, conheceu David Bowie e foi com ele para Londres, na tentativa de gravar um álbum solo (que não rolou). No fim, acabou reunindo os Stooges e juntos gravaram o aclamado Raw Power, com Ron no baixo, Scott novamente na bateria e James Williamson na guitarra. O errado deu certo: a pegada mais agressiva do álbum, produzido pelo próprio Bowie, não só foi bem aceita pelo público como também acabou rendendo a Iggy Pop o status de “pai do punk”.

Nos anos seguintes, a vida desregrada acabou tendo sérios desdobramentos para ex-companheiros de banda: Zeke Zettner e Dave Alexander falecem, o primeiro devido à overdose de heroína e o segundo por um edema pulmonar, causado por excesso de álcool. “Dum Dum Boys”, a sexta faixa do álbum solo, fala abertamente sobre isso e se refere a eles como “garotos tolos” – lamentando o fato de terem sido ingênuos ao ponto de perderem suas vidas por pura luxúria:

What happened to Zeke? | O que aconteceu com Zeke?

He’s dead on jones, man | Ele morreu de heroína, cara

How about Dave? | E Dave?

OD’d on alcohol | Overdose de álcool

(…)

Well, things have been tough  | As coisas têm sido difíceis

Without the Dum Dum Boys  | Sem os Dum Dum Boys (garotos tolos)

Ao fim de 1976, Iggy Pop estava em um estado tão deplorável que ele se internou por livre e espontânea vontade em uma clínica de reabilitação, o Instituto de Neuropsiquiatria da Universidade da Califórnia (UCLA). Durante o período em que esteve lá, seu único visitante foi o amigo Bowie.

Recuperando o tesão pela vida

Lust for Life alcançou um lado mais positivo e dançante do cantor. É um retrato do momento em que aceita a segunda chance oferecida pela vida (e pelo amigo), e deixa para trás um passado lúgubre, macabro, de um período insano regado a, literalmente, muito sexo, drogas e rock’n’roll.

David Bowie “ressuscitou” Iggy Pop ao convidá-lo, em 1976, para acompanhar sua turnê de lançamento do álbum Station to Station. A seriedade com que tratava cada minuciosidade, deixou o amigo boquiaberto! “Ele fazia um grande show toda noite. Não importa onde fosse”, conta Iggy em entrevista. Durante a viagem pela europa, entre a França e Alemanha, produziram juntos o The Idiot – mas foi especificamente na cidade de Berlim que Lust for Life nasceu.

Além de ter a sua vontade de viver recuperada, na segunda obra em carreira solo, o cantor retoma também as raízes no rock. Com vocais mais guturais, ele deixa a personalidade selvagem tomar conta de seu trabalho. Algumas faixas, entretanto, ainda têm muito do companheiro, como por exemplo “Turn Blue” e “Fall In Love With Me”.

Em “The Passenger” (que muita gente aqui pelo Brasil conhece como “O Passageiro”, na voz de Dinho Ouro Preto), mostra que, até mesmo para falar dos períodos mais sombrios, havia amadurecido. Com um ar nostálgico, atravessa as ruas de uma metrópole e narra situações fictícias baseadas em memórias de um passado junkie. Consegue ver a beleza da vida que um dia o consumiu.

O álbum estourou, de fato, em 1996, quando teve a faixa homônima escolhida por Danny Boyle para se tornar carro-chefe da trilha sonora de Trainspotting – Sem Limites (que ganhou uma sequência esse ano, e chega ao Brasil no dia 23). O filme tem muito a ver com a vida do próprio cantor: conta a trajetória de Mark Renton e seus amigos, todos drogados tentando se livrar do vício em heroína, encontrar emprego e se estabelecer afetivamente. A letra da música logo foi associada às falas iniciais do protagonista:

O ano de 1977 foi frutífero não apenas para Iggy. Bowie lançou dois pontos altos de sua carreira: Low, em janeiro, e “Heroes”, em outubro. A influência de um na carreira do outro é nítida, sobretudo nesse período em que estiveram juntos em Berlim. Bowie excursionou com Iggy, tocando teclado durante os shows, enquanto o segundo ajudou na gravação de alguns backing vocals de Low.

Os amigos se apresentando juntos. Não é fofo? (Foto: Reprodução)
Os amigos se apresentando juntos. Não é fofo? (Foto: Reprodução)

Após os dois álbuns solos, Iggy ainda lançou mais 18. Mas nunca escondeu o protagonismo de Bowie em sua vida e carreira, tanto que se pronunciou publicamente diversas vezes após a morte do amigo, em 2016.

A relação profunda entre os dois chamou tanto a atenção que, em 1998, foi enredo do filme Velvet Goldmine, de Todd Haynes. Sob os pseudônimos de Brian Slade (Jonathan Rhys Meyers) e Curt Wild (Ewan McGregor), o longa narra, entre muitos floreios e muita romantização, desde o primeiro encontro dos dois, até o que ficou conhecido como a “fase Berlim” de Bowie.

6867449000695

Iggy Pop também ficou famoso por quebrar os estereótipos de gênero e chocar a sociedade, muito antes do Liniker e a geração do tombamento sonhar em existir. Já apanhou muito por ter a mania de andar de vestido pela cidade de Ann Arbor, em Michigan, e inclusive chegou a ter os dentes da frente quebrados por conta disso. Sempre preferiu roupas mais apertadas e espalhafatosas (de preferência no modelo feminino), era assumidamente bissexual, usava maquiagem e nunca demonstrou qualquer problema com isso.

Visual andrógino para um ensaio fotográfico nos anos 70 (Foto: Reprodução)
Visual andrógino para um ensaio fotográfico nos anos 70 (Foto: Reprodução)

Com uma disposição de dar inveja até nos mais jovens, em 2007 e 2013 reuniu os Stooges e lançou mais dois álbuns, The Weirdness e Ready to Die. Em 2010, foi induzido ao Rock’n’Roll Hall of Fame. Em 2015 retornou ao Brasil para mais uma apresentação, dessa vez sem a banda e, no ano seguinte, lançou mais um álbum, junto com o vocalista da Queens of the Stone Age, Josh Homme. Atualmente, continua fazendo participações especiais em shows, filmes e entrevistas, e não seria estranho se resolvesse sair em uma outra turnê mundial.

Além de toda a contribuição musical, atuou em filmes como Cry-baby (1990), de John Waters, Tank Girl (1995), de Rachel Talalay, O Corvo – A cidade dos anjos (1996), de Alex Proyas. Até dublagem ele fez, em Persépolis (2007), de Marjane Satrapi, e (pasmem!) na animação da Nickelodeon, Rugrats – Os Anjinhos (1998).

Enfim, Iggy Pop foi um visionário: se o som pesado e intenso dos Stooges deu origem ao que ficou conhecido como o punk rock, a morbidez de seu primeiro álbum solo previu o que viria a se tornar o pós-punk (o disco ganharia uma aura ainda mais sinistra três anos depois, ao ser descoberto que foi a trilha sonora do suicídio de Ian Curtis, do Joy Division). A onda pesada de The Idiot serviu como um ponto de descarga emocional, abrindo espaço para a leveza e bom humor de Lust for Life, que se estendeu até os dias atuais. Sua genialidade influenciou e continua influenciando grandes nomes, entre eles Kurt Cobain, do Nirvana, Anthony Kiedis, do Red Hot Chili Peppers, e Thurston Moore, do Sonic Youth.

Quem diria que um idiota com sérios problemas com drogas seria capaz de alcançar tudo isso?

   

Deixe uma resposta