A experiência de Hendrix

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Gabriel Leite Ferreira

Em setembro de 1970 um meteoro desapareceu da atmosfera terrestre – não sem antes deixar rastros de seu facho de luz por todo o planeta. Morreu, aos 27 anos, o guitarrista Jimi Hendrix em circunstâncias conturbadas envolvendo overdose de pílulas para dormir e asfixia. Uma queda tão meteórica quanto sua ascensão três anos antes.

Nascido Johnny Allen Hendrix, depois rebatizado James Marshall Hendrix, Jimi era apenas um jovem que havia trocado o exército dos Estados Unidos pela guitarra quando o ex-Animals Chas Chandler o levou para Londres. A ficha corrida do nativo de Seattle não era de se jogar fora: de 1963 a 1966 ele passou pelas bandas de Little Richard e Sam Cooke, entre outros nomes do rhythm and blues. Já nessa época se destacava entre os colegas de instrumento. Mas, apesar da experiência como músico de apoio, ele não estava preparado para o efeito que sua ida à Inglaterra causaria. E vice-versa.

O rock psicodélico se estabelecera como o mais novo movimento da juventude, o som lisérgico se alastrava com igual intensidade nos Estados Unidos e na Inglaterra, polo criativo do subgênero. Não foi por acaso que Chandler apadrinhou Hendrix. Enquanto os psicodélicos norteamericanos estavam interessados na improvisação coletiva (vide Grateful Dead), os britânicos optavam por um formato mais enxuto. O power trio (guitarra-baixo-bateria) dava mais espaço para os músicos brilharem individualmente e se mostrava uma opção comercial rentável. Hendrix não só pegou carona nessa tendência como a maximizou com seu grupo, o Jimi Hendrix Experience. Ao lado do baixista Noel Redding e do baterista Mitch Mitchell ele levou a experiência psicodélica às últimas consequências.

Névoa púrpura: a ascensão

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Em entrevista de 1989, o lendário Eric Clapton contou sobre seu primeiro encontro com Hendrix, antes mesmo da estreia do Experience, em um show de sua banda à época, o Cream: “Ele me perguntou se podia tocar algumas músicas. Eu disse que sim.” Hendrix, então, entrou no palco e tocou uma versão arrebatadora de “Killing Floor”, clássico do bluesman Howlin’ Wolf. “Ele foi embora e minha vida nunca mais foi a mesma”, diz Clapton.

Em maio de 1967 o resto da Inglaterra pode enfim testemunhar o meteoro Hendrix. Com o apropriado título Are You Experienced, o primeiro disco do Jimi Hendrix Experience alterou profundamente a forma de se fazer rock’n’roll. A vanguarda da invasão britânica – Clapton, John Lennon, Paul McCartney, Mick Jagger, Keith Richards, entre outros – ficou de queixo caído em presença do afro-americano canhoto que tocava guitarra como se sua vida dependesse daquilo. Basta dar play em “Foxy Lady”, a primeira faixa da edição inglesa, para descobrir o porquê. Ruídos de amplificador abrindo caminho para um trio absurdamente entrosado e – a cereja do bolo – riffs exuberantes que pareciam ser obra de dois ou mais guitarristas. Um som cru, com direito a pigarros do guitarrista no microfone; um sopro de vida.

E, então, sem aviso prévio, os três instrumentistas levam o ouvinte ao extremo oposto da energia sexual de “Foxy Lady” com a arrastada “Manic Depression”. Acompanhado pelo blues torto de Redding e Mitchell, Hendrix desfere acordes dissonantes e logo antes do solo entoa uma frase emblemática: Music, sweet music, I wish I could caress and kiss…. Vê-se aí uma faceta pouco explorada do guitarrista: a melancolia.

É fato que a tristeza teve papel primordial nas raízes do rock. O blues de Robert Johnson, Muddy Waters e tantos outros tinha como marca registrada o desalento emocional tanto na interpretação quanto na execução. Contudo, quando o assunto é guitarra, é comum priorizar a técnica fria, calculada, em vez do sentimento. Hendrix uniu esses dois mundos de tal maneira que o título de maior guitarrista de todos os tempos não é exagero algum. Se a década de 1960 foi tão rica em sinestesia, deve muito à expansão da paleta de cores e sons que ele promoveu, seja por meio de acordes ou palavras.

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Vindo de um lar desestruturado – seus pais se separaram quando ele tinha nove anos –, o pequeno Jimi se apegou cedo à guitarra, talvez como uma forma de suprir a carência, e nada foi capaz de separar ambos. A partir daí, guitarra e guitarrista se tornaram uma pessoa só – e se isso soa extremamente romântico, ora, é porque estamos falando de um indivíduo extremamente romântico. Isso é explícito em “Love Or Confusion”, quinta faixa da edição inglesa do debut: Will I be truthful in choosing you as the one for me? / Is this love, baby, or is it just confusion?. O êxtase amoroso vem de mãos dadas com a insegurança, e só resta a Jimi debulhar sua guitarra para tentar encontrar algum sentido nas “cores sem nome e som” que ele mesmo cria.

Ao contrapor alegria e tristeza, amor e solidão, Hendrix deixa sua humanidade transparecer para o ouvinte e, então, o escapismo por meio das drogas alucinógenas faz todo o sentido. A morosa “I Don’t Live Today” (No sun coming through my windows / Feel like I’m living at the bottom of a grave) culmina em uma redentora jam session. Em seguida, a relaxante “May This Be Love” e a clássica “Fire”, única faixa a igualar a energia de “Foxy Lady”, abrem alas para a conclusão lógica da obra. A pequena odisseia “3rd Stone From The Sun” tem o improviso como base para o guitarrista exercitar as técnicas pelas quais ele ficou conhecido. Distorção, microfonias e alavancas dão um tom alienígena à música, não por acaso narrada do ponto de vista de um extraterrestre.

Sacrifício em Monterey: ícone iconoclasta
Sacrifício em Monterey: ícone iconoclasta

Gravado praticamente ao vivo, Are You Experienced serviu de aperitivo para as experimentações do trio no palco, o habitat natural de Jimi. Lá a fusão guitarra-guitarrista ficava ainda mais aparente, e dá-lhe tocar guitarra de costas, com os dentes e demais pirotecnias – literalmente. O sacrifício da Stratocaster no festival de Monterey em 1967 tornou-se símbolo do vanguardismo de Hendrix, uma imagem permanentemente cravada no imaginário dos colegas de instrumento, contemporâneos dele ou não.

Se a música universal é um mito, Jimi provavelmente foi um dos que mais se aproximou desse ideal: de Jeff Beck a John Frusciante, passando até mesmo por fritadores como Steve Vai e Yngwie Malmsteen, Hendrix é ovacionado por todos como o maior inovador do instrumento. Nem mesmo o gigante do jazz Miles Davis ficou incólume: seu monstruoso Bitches Brew (1970) não seria o mesmo sem as experiências do Experience.

Sucesso absoluto na Inglaterra, o trio não perdeu tempo e soltou o igualmente clássico Axis: Bold as Love naquele mesmo ano. Gravado às vésperas da primeira excursão da banda para os Estados Unidos, a simplicidade de Axis reflete as sessões mais curtas: é um disco de singles, com pouco das pirações de Experienced, mas nem por isso menos memorável. Afinal, dele saíram pelo menos quatro dos maiores clássicos de Hendrix: a potente “Spanish Castle Magic”, a axiomática “If 6 Was 9”, a lírica “Bold as Love” e a sublime “Little Wing”, seu melhor momento em estúdio. Interessante notar como o disco exala certa influência beatle; psicodelia pop no auge.

Mas apenas no ano seguinte é que Hendrix registraria o mais próximo do que se pode chamar de seu manifesto artístico definitivo. O colossal Electric Ladyland (literalmente: a edição em vinil é dupla) trazia o Experience mais livre que nunca, afastando-se do hard rock psicodélico dos antecessores e chegando perto das viagens intergalácticas de Davis e John Coltrane. Pérolas atemporais como “Crosstown Traffic”, “All Along The Watchtower” e “Voodoo Child (Slight Return)” dividem espaço com as abstrações chapadas de “Burning of the Midnight Lamp” e “1983” sem que a coesão do produto final seja prejudicada. O resultado disforme cativa na mesma medida que deixa um ponto de interrogação: o que Hendrix faria a seguir? Impossível saber. O meteoro já ganhava altitude…

Paz, amor e Vietnã: a queda

Uma das últimas fotografias de Hendrix, tirada um dia antes de sua morte
Uma das últimas fotografias de Hendrix, tirada um dia antes de sua morte

Meses antes de falecer, Hendrix demonstrava-se desencantado com os rumos de sua carreira. O Experience fora desmantelado após uma série de brigas entre o guitarrista e Noel Redding, sem reconciliação. Chega a ser curioso sua performance mais emblemática ter se dado em um momento tão turbulento. O show no festival de Woodstock teve acompanhamento do Gypsy Sun & Rainbows, nada menos que um nome improvisado para a turma de músicos que ele conseguiu reunir naquela manhã, e contou até mesmo com uma espécie de manifesto contra o segmento no qual era incluído, os hippies.

A versão eletrificada do hino dos Estados Unidos teve uma interpretação óbvia: uma crítica à Guerra do Vietnã, que se encontrava em seu auge no ano de 1969. Mas Hendrix logo tratou de subverter essa ideia, afirmando que se tratava de uma manifestação de apoio às tropas estadunidenses. Essa não foi a primeira vez que ele se opôs ao “paz & amor”, vide verso de “If 6 Was 9”: If all the hippies cut off all their hair / I don’t care, I don’t care. Contudo, a afirmação taxativa revela que ele vinha se ensimesmando cada vez mais perto do fim da vida.

Não dá para dizer que o esmorecimento do maior gênio da guitarra foi coincidência ou fatalidade, apesar de precoce. O ao vivo Band of Gypsys, último álbum lançado sob seu nome antes do fatídico setembro de 1970, tinha um Hendrix mais contido, dando espaço para os companheiros de banda – o baixista Billy Cox e o baterista Buddy Miles – guiarem o show. Ou seja, nada do showman de outrora. A sombra do Vietnã também já havia decantado no imaginário hippie. Coincidência mórbida ou não, Paranoid, clássico do Black Sabbath e pedra fundamental do heavy metal, foi lançado exatamente no dia 18 de setembro de 1970. A data da morte de Jimi Hendrix.

A decadência de Jimi diz mais sobre sua personalidade do que sobre a cultura das drogas ou o rock’n’roll. Toda sua curta obra foi baseada, em maior ou menor grau, na busca por algo de superior na existência, seja por meio do LSD, das viagens extraterrenas ou do amor utópico. Lamentavelmente, essa busca foi interrompida antes de atingir seu ápice, o que não o impediu de elevar o rock psicodélico sessentista a alturas inimagináveis. Mas não há que se racionalizar demais o fim de sua trajetória; resta-nos experimentar dos frutos dessa curta viagem pelo planeta Terra.

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