Gabriel Oliveira F. Arruda
Há como argumentar que não há sentimento mais antigo à humanidade do que a fome. Não apenas a sempre presente fome metafórica para expandir a experiência humana (poder, conhecimento, amor, etc), mas a fome que serve ao imperativo biológico máximo: sobrevivência. Todos nós nascemos com um espaço vazio na barriga, que grita para ser preenchido que paradoxalmente nunca o será – pelo menos não por muito tempo. Neste exato momento, se você se concentrar, é possível olhar para dentro e sentir a besta arreganhando os dentes ou lambendo as patas, se preparando para a próxima caçada. Até que ponto você consegue deixar ela enjaulada?
Na segunda temporada de Yellowjackets, drama do Showtime indicado ao Emmy, nos reencontramos com o time de futebol feminino de Wiskayok High, dessa vez tendo que sobreviver ao brutal inverno canadense, com a falta de comida e tensões crescentes entre o grupo ameaçando enterrá-las sob a neve. Em um flashforward para o momento de seu resgate, diversos repórteres se amontoam sobre elas, todos desejando serem os primeiros a perguntar o que todos querem saber: como elas sobreviverem lá fora? Lottie (Courtney Eaton) é a única a oferecer uma resposta, na forma de um grito primal e sinistro que ecoa sobre a audiência antes de ser engolido pela abertura do seriado.
O canibalismo sempre foi o grande segredo aberto de Yellowjackets. Desde que o episódio piloto fechou com uma ceia macabra entre figuras mascaradas, nós sabíamos que aquelas garotas iriam se tornar caçadoras de si mesmas. Ao fornecer primeiro o resultado da equação, o seriado derrama seu foco sobre as variáveis que o possibilitaram, em que o mistério não é o que vai ou não acontecer, mas o porquê de acontecer. Havia mesmo uma força sobrenatural influenciando os acontecimentos naquela floresta, ou apenas um grupo de garotas forçadas a se desprender da realidade para sobreviver? E, crucialmente, há alguma diferença entre um e outro?
Fica óbvio relativamente cedo que Yellowjackets não voltou com a intenção de se provar. Enquanto a primeira temporada termina com um questionamento (“Quem diabos é Lottie Matthews?”), a segunda começa imediatamente com a resposta, na forma da introdução da versão adulta da personagem, interpretada pela neozelandesa Simone Kessell, que lidera uma “comunidade intencional” que, segundo a própria, definitivamente não é um culto. Tanto lá quanto na floresta, a motivação de Lottie parece ser apenas a de querer ajudar aqueles ao seu redor a sobreviver. Ao invés da líder religiosa pagã que nos foi prometida, a personagem na nossa frente parece ser um livro aberto.
A disposição a subverter nossas expectativas é inerente à Yellowjackets, que sempre soube surpreender usando seu arsenal duplamente versátil de atrizes. Na segunda temporada, essa disposição se torna uma faca de dois gumes, já que agora não estamos mais atrelados à versão introdutória dessas personagens e começamos a determinar melhor o arco prometido pela produção, que insiste em jogar com cautela quando esperamos que ela será ousada. O ritmo lento, a exibição semanal e a sede por respostas de seu público contribuem para uma temporada que por vezes frustra por parecer reter suas melhores cartas para sua conclusão. Não demora para percebermos que cada fim de capítulo termina com uma promessa para a semana seguinte, um padrão desleal de serialização que parece ir contra às tendências subversivas da série.
Na linha temporal de 1996, o inverno faz as Yellowjackets a se abrigarem quase que exclusivamente na cabana abandonada, restringindo os movimentos físicos de suas personagens e criando um ecossistema inteiro dentro dos poucos cômodos que elas possuem para se proteger das nevascas que não param de cair. Se por um lado a temperatura do lado de fora está baixando, no interior da cabana os sentimentos estão entrando em ebulição. Cada sobrevivente tem que lidar com seus próprios problemas e, posicionada como uma intermediária entre o grupo e a floresta, Lottie se torna um ponto chave na estrutura social sendo lentamente estabelecida.
No presente, as coisas estão mais fresquinhas, embora a ameaça do inverno paire sobre todas, ainda mais com o aparente ressurgimento de sua antiga colega. Shauna (Melanie Lynskey) tenta reparar seus laços familiares enquanto se prepara para a possibilidade de seus pecados retornarem para atormentá-la. Taissa (Tawny Cypress), agora eleita senadora estadual, também vê seu núcleo familiar se desintegrando graças aos traumas do passado e procura por salvação no colo de Van (introduzindo Lauren Ambrose na versão adulta da personagem). Já Misty (Christina Ricci) se vê obcecada por preservar o laço entre suas ex-companheiras de time e desvendar o desaparecimento de sua “melhor amiga”, Natalie (Juliette Lewis), brevemente presa no complexo de Lottie.
Apesar das diferenças, o grande trunfo de Yellowjackets continua sendo a interposição entre os dois períodos e a maneira com que a edição e as interpretações duais tensionam a narrativa para diferentes direções. Todos os pares continuamente adicionam camadas às personagens que, mesmo 25 anos depois, não conseguem escapar dos ciclos de violência e da lógica sacrificial que marcaram seu tempo na floresta.
Ainda como coadjuvantes, Eaton e Kessell fazem de Lottie uma das figuras mais intrigantes da série, central mesmo enquanto orbita outras narrativas. Juntas, elas pintam um quadro de empatia radical e quase psicótica, muito mais interessante e evocativo do que apenas uma vilã cultista seria capaz de oferecer. Após o rapto de Natalie ao final da temporada anterior, Lottie faz o possível para explicar a nobreza de seus atos e, mesmo quando parece óbvio que ela não está falando toda a verdade, fica difícil duvidar da sinceridade de suas motivações.
No passado, ela se encontra quase que acidentalmente na posição de líder do grupo, sendo a única capaz de se “comunicar” com a floresta e de receber suas dádivas. Seja essa comunhão verdadeira ou fruto da mente de Lottie, é algo que o restante das Yellowjackets abraça ou rejeita, causando uma cisão entre devotas e céticas que só vai ficando mais turva conforme a temporada avança. Linhas são traçadas na neve, mesmo que as meninas (e a própria audiência) não saibam enxergá-las ainda. O mistério acerca do que realmente há na floresta permanece uma incógnita, apesar da temporada ser fortemente marcada pelos sacrifícios que o time precisa fazer para o quer que haja lá.
Mas e se não houvesse nada lá? E se, como elas repetem desde o início, tudo o que aconteceu foi que um bando de crianças ficaram presas numa situação impossível e tiveram de sobreviver da forma que podiam? E se os sacrifícios feitos foram apenas para elas mesmas? Yellowjackets, mais uma vez, não oferece uma resposta definitiva, mas um conjunto de signos para fornecer uma reflexão. Parte do gênio da narrativa está não só em como as linhas temporais se espelham, mas em como elas tematicamente se cruzam. Nenhuma dessas garotas realmente escapou daquela floresta nos 25 anos que se passaram desde a queda do avião. E boa parte delas gostaria de poder voltar para lá de algum jeito.
Fizemos muitas pesquisas, como sempre fazemos, e percebemos que TEPT [transtorno de estresse pós-traumático] — é realmente quando algo te engatilha e os mesmos neurotransmissores, as mesmas sensações que você teve quando o evento aconteceu no passado, você as tem de novo. Não acontece com todos nós, mas acontece com essas personagens. E nós sentimos que reviver isso pode ser vívido. A última coisa que irei dizer é que, apesar do que elas passaram, apesar do quão angustiante e horrível foi, essas jovens mulheres — na verdade agora na fase da meia-idade — estranhamente ainda sentem saudades daquele tempo, porque havia uma liberdade extasiante e poética naquela loucura.
— Jonathan Lisco, Produtor Executivo
Mesmo após os eventos dramáticos da primeira temporada, Shauna continua sua sequência de escolhas duvidosas, que agora ameaçam não apenas sua própria segurança como também a de sua família, e sua relação fragilizada com sua filha, Callie (Sarah Desjardins), e seu marido, Jeff (Warren Kole), entra em primeiro plano. Apesar de estar à beira de mais um precipício, essa é a Shauna mais segura de si que vemos desde que o avião caiu. Melanie Lynskey reconhece a complexidade narrativa da personagem, mas ancora sua interpretação com uma sentimentalidade doce e intoxicante.
A família Sadecki forma um núcleo inesperadamente meigo, ou tão meigo quanto possível nas atuais circunstâncias. Nele, o roteiro de Yellowjackets se transforma numa tragicomédia de erros, explorando relacionamentos de sexualidade, intimidade e repulsa que repousam no fundo do ideal familiar americano. Na pele de Jeff, Kole expande o marido amável e meio sem noção que conhecemos no ano anterior, lidando com as curvas que sua esposa não cansa de lançar em sua vida. Sarah Desjardins surpreende ao habitar uma Callie muito mais inserida na vida secreta que seus pais aparentemente levam, ansiando por entender uma mãe que mantém seu próprio coração fechado à sete chaves, criando um dos pontos de tensão mais frequentes da trama.
Contraparte jovem de Shauna, Sophie Nélisse é igualmente impressionante no quadro retroativo que a audiência monta sobre a personagem. Imersa no luto pela perda evitável de Jackie (Ella Purnell), ela se vê sem direção, tendo que redescobrir a pessoa que é no meio da selvageria que consome as Yellowjackets pouco a pouco. Sua gravidez inesperada também é outro dos fios condutores da temporada, atingindo seu auge no sexto episódio, Qui, talvez o melhor do novo ano, em que a performance potente de Nélisse abre uma ferida profunda na narrativa que não será fechada tão cedo.
Apesar de começar no encalço do ano anterior, demoram alguns episódios para que Yellowjackets encontre seu novo ritmo. Apesar de um começo forte com o capítulo Friends, Romans, Countrymen (fazendo referência à célebre passagem da tragédia de Shakespeare, Júlio César), a trama separa o caminho de suas personagens muito cedo e priva a audiência das dinâmicas tão bem formadas entre elas. A série usa essa separação como respiro, introduzindo mais alguns personagens secundários (em ambas as linhas temporais) para reforçar as narrativas individuais traçadas até então.
Acompanhando Misty no presente, conhecemos Walter (Elijah Wood), outro “detetive cidadão” cujo passatempo é desvendar mistérios reais e que toma interesse no caso do desaparecimento de Adam (Peter Gadiot). Juntos, o peculiar duo vai traçando o caminho de Natalie até Lottie, e também vai ecoando a amizade inusitada que Misty (interpretada na adolescência por Samantha Hanratty) fez na floresta com Crystal (Nuha Jes Izman), uma sobrevivente do time reserva. Tanto Ricci quanto Hanratty claramente se divertem com a instabilidade de sua personagem, guiando-a numa direção de psicopatia que por vezes cai de cabeça no camp, particularmente numa sequência alucinógena próxima ao fim da temporada, com direito à papagaios antropomorfizados e uma participação especial de John Cameron Mitchell.
As que mais sofrem com a falta de ritmo inicial são Taissa e Van, que são relegadas a algumas cenas por episódio dedicadas ao restabelecimento de sua relação (que só começa a ser explorada na linha do tempo atual a partir da segunda metade da temporada). Em 1996, o conflito das duas parte tanto da fé que Van deposita em Lottie quanto das escapadas noturnas que o alter ego sonâmbulo de Taissa parece dedicado a continuar. Assim como Kessell, Lauren Ambrose se prova uma adição orgânica ao elenco da produção, contracenando perfeitamente com os maneirismos estabelecidos por Liv Hewson na versão jovem da personagem.
Entre as sobreviventes, Natalie é a que mais serve como ponto de conexão entre as duas linhas temporais. Enquanto Juliette Lewis constrói o relacionamento entre ela e Lottie no presente, Sophie Thatcher é a primeira a duvidar da influência da mesma sobre o restante do grupo na cabana. Embora aborde a construção da hierarquia selvagem que as meninas formaram (e que até certo ponto se mantém na versão adulta), Yellowjackets não se interessa tanto pelas estruturas de poder em si, mas pelos processos que as mantêm. Se na temporada anterior foi estabelecido que a violência tem seu papel na ordem social, essa vai nos perguntar como tal violência é sancionada e, eventualmente, santificada. O ritual de sacrifício permanece o mesmo, não importa quem use a máscara ou o distintivo.
Natalie, ocupando o papel principal de provedora do grupo em 1996, vê sua utilidade esvaindo conforme a influência de Lottie ganha força e suas oferendas para a floresta obtêm resultados. Lottie parece apenas desejar pela sobrevivência das garotas, mas o sacerdócio formado ao redor dos rituais a transforma numa mártir viva, puxada para muitos lados sem saber para onde de fato irá. As figuras das duas vão se refletindo durante os nove capítulos, até chegarem no ponto de ruptura trágico em Storytelling, episódio final da temporada. Reunidas sob um mesmo teto pela primeira vez em anos, cabe às cinco mulheres decidirem, apesar de suas ressalvas, quem será caça ou caçador, quem irá tomar e o que será tomado dessa vez. Ao final de tudo, quem será culpada pelos erros de todas?
No início da temporada, estamos inclinados a enxergar Lottie como escolha clara para ocupar esse papel: querendo ou não foi ela quem primeiro escutou os sussurros da floresta e trilhou o caminho que as levaria para o canibalismo. Mas, quanto mais acompanhamos as escolhas do grupo, mais claro fica que ela foi a primeira a ser sacrificada: todas as Yellowjackets sacrificaram a menina, transformando-a em santa ou louca conforme a necessidade ditava, jogando culpa ou esperança sobre ela e esperando que seu papel fosse cumprido. Mesmo depois de serem resgatadas, Lottie não tem direito nem ao seu próprio silêncio, sendo obrigada a regredir ao papel que ocupou durante os 19 meses em que elas passaram na floresta para fazer sentido de sua vida.
Regressão é a palavra da vez no segundo ano de Yellowjackets. Não vemos essas personagens superando seus traumas, muito menos seguindo em frente, e não necessariamente porque elas não são capazes, mas porque algo dentro delas anseia por voltar para aquela floresta. Por mais que elas resistam a ideia de que havia algo na floresta com elas, a possibilidade de que não há é ainda mais assustadora. Cada uma delas tem seus motivos para aceitar voltar às mentalidades daquela época, mas no fundo, cada uma tenta expiar a própria culpa em outra pessoa, em poder apontar um criminoso para ser castigado em seu lugar, para ocupar o papel que Lottie interpretou depois que foram resgatadas.
Na religião da Grécia Antiga, pharmakós era o nome dado a um ritual feito em tempos difíceis de conflito ou escassez, na qual um sacrifício (pharmakoi) era selecionado (geralmente entre escravos, pessoas com deficiência ou criminosos) para ser espancado, exilado, ou até morto. Ele era visto como um rito de catarse social, um bode expiatório para sentimentos de agressão crescentes entre uma determinada população e, segundo alguns teóricos contemporâneos, um sinal de desconfiança não só entre seus membros, mas com os próprios deuses. Ao mesmo tempo que supre o impulso de violência, o ritual acaba reafirmando sua necessidade, dando continuidade a desconfiança social e espiritual, em um ciclo paradoxical.
É difícil qualificar os sacrifícios feitos pelas Yellowjackets na segunda temporada, porque ainda não temos como saber se os deuses são reais ou não, benevolentes ou maliciosos. Na resposta cruel da equação que ainda temos de resolver, essas mortes são desdobramentos da violência e da desconfiança que se instaurou naquela cabana no inverno de 1996, e as consequências que persistiram mais de duas décadas depois. Os rituais que elas firmaram para manter a ordem não são tão diferentes assim do que os gregos fizeram milhares de anos atrás, numa reafirmação trágica da condição humana e do impulso máximo de sobrevivência.
Sob muitos aspectos, Yellowjackets permanece a mesma série com a qual nós nos apaixonamos antes: o trabalho excepcional de caracterização, as atuações irretocáveis, os needle drops francamente geniais, entre outros. Mas algo decididamente mudou. Quer parta com um saldo positivo ou não, a segunda temporada da produção mostra que suas ambições são bem mais elevadas do que apenas surpreender. Assim como em sua narrativa, sacrifícios são feitos em nome não só da ambição, mas da sobrevivência, ainda que nem todos eles pareçam ter um efeito óbvio. Embora não seja nem de longe tão bem amarrada quanto o ano anterior, Yellowjackets permanece como lar de algumas das dinâmicas mais saborosas da televisão, e continua nos deixando com fome por mais.