Vitória Lopes Gomez
Mais de uma década depois de sua primeira aparição no Universo Cinematográfico da Marvel, e ao som de Smells Like Teen Spirit, finalmente vemos Natasha Romanoff virar a Viúva Negra. Nos 11 anos desde a estreia da personagem em Homem de Ferro 2, o estúdio não aproveitou o que tinha em mãos e renegou a assassina de aluguel à coadjuvante, mas deu mais tempo (e motivo) para que a injustiçada conquistasse o público. Com a pandemia e o fechamento das salas de cinema, a enrolação da empresa adicionou mais 14 meses à espera até inevitavelmente ceder ao Disney+. Antes tarde do que nunca, Viúva Negra ainda é pouco para a despedida que a Vingadora merece.
O longa começa onde Capitão América: Guerra Civil parou: procurada internacionalmente por violar o Tratado de Sokovia, Natasha (Scarlett Johansson) está foragida, assim como os outros heróis do Team Cap. Ela até tenta se manter fora do radar, mas quando uma maleta com frascos misteriosos chega em suas mãos – e vem acompanhada de um vilão à la Soldado Invernal para recuperá-la -, ela se vê obrigada a reencontrar a irmã, Yelena (Florence Pugh), e confrontar os traumas do seu passado.
De cara, o prólogo já anima e nos joga na história onde queremos estar. A reviravolta na calma e agradável infância de Natasha (aqui, Ever Anderson) e sua irmã mais nova manda as duas de volta à Rússia, direto ao treinamento para virarem agentes secretas. Embalados por uma releitura que amplifica a mensagem do clássico da Nirvana, os perturbadores créditos iniciais são angustiantes ao saltarem da até então domesticidade para a crueldade da organização que fabrica as Viúvas Negras.
Em pouco tempo, a atmosfera tensa e sinistra que o passado da Vingadora evoca já está mais do que justificada e dá o tom ideal para Viúva Negra – só que não o segue. Corta para o presente (que é passado, na linha do tempo do MCU) e logo cai a ficha: 21 anos se foram em 15 minutos e já assistimos Natasha passar pela traumática preparação e virar a Viúva Negra que conhecemos. Se a Marvel demorou quase uma década só para acreditar que a personagem de Scarlett Johansson se sustentaria em um filme solo, talvez fosse pedir demais que a história de vida completa da agente seja destrinchada como merece.
Com o devido reconhecimento, toda a trajetória de Natasha renderia produções mais do que interessantes, seja em longas no cinema ou em séries no streaming. Infelizmente – e não só pela demora da empresa -, as migalhas do passado em Viúva Negra destroem as chances de a testemunharmos jovem, em treinamento e até tentando escapar da organização. Ainda que as agentes possam – e mereçam – produções inteiramente dedicadas a elas, a descrença da Marvel e o roteiro no tempo errado dão um ultimato para Natasha Romanoff.
Depois de sonhar alto, é melhor aceitar a desilusão e abraçar o que as duas horas seguintes de Viúva Negra têm a oferecer – afinal, essa é a despedida da Vingadora. O passado ficou para trás, mas a encomenda enviada por Yelena força a espiã a viajar a Budapeste e confrontar partes dele. Depois de anos separadas, o reencontro com a irmã mais nova é eletrizante e vai das lutas e cenas de ação aos papos emocionais com direito a drink em família.
Como Natasha descobre, ela não conseguiu matar Dreykov (Ray Winstone), o diretor do programa que treina as Viúvas, e ele continuou capturando meninas inocentes para servirem a seu dispor. Na iniciação, a tortura a qual submetia as recrutadas não era só psicológica e física, mas ele também as manipulava quimicamente para garantir sua influência. Então, Yelena, que também foi forçada ao treinamento e virou uma das maiores assassinas da organização, recorre a Natasha: os frascos enviados contém o antídoto para a subjugação química e, nas mãos certas, podem libertar as Viúvas do domínio de Dreykov.
Se a atuação já conhecida de Scarlett Johansson sempre sabe medir entre a frieza e a vulnerabilidade, a personagem de Florence Pugh se destaca. Yelena Belova é tão durona quanto a irmã mais velha, mas descontraída, teimosa e divertida, não demora para roubar a cena. Entre implicâncias e confidências, as duas são a dupla perfeita: atormentadas pelos traumas em comum e acostumadas a estarem por conta própria, encontram uma na outra momentos de fragilidade e apoio necessário para baixarem a guarda.
As irmãs, até há pouco vítimas das torturas da organização, se unem para colocar fim na manipulação de Dreykov, mas precisam de ajuda para encontrá-lo. Assim, Alexei (David Harbour) e Melina (Rachel Weisz), os agentes que haviam sido designados ao disfarce de pai e mãe das protagonistas, entram em jogo. A família disfuncional está reunida novamente.
Mesmo perdendo a mão em alguns momentos, como nas irritantes tentativas de tornar o Guardião Vermelho o alívio cômico, nos exagerados ‘Casos de Família’ ou nos batidos estereótipos russos, o roteiro de Eric Pearson, Ned Benson e Jac Schaeffer sabe como chegar onde quer. Quando somado à direção magnética de Cate Shortland, as interações entre personagens viram o grande destaque e, misturadas às tensas sequências de ação, criam a vibe certa para a condução da história.
O primeiro e segundo ato envolventes, no melhor estilo filme de espião, indicam uma conclusão espetacularmente sombria – finalmente veremos a Sala Vermelha por completa! -, mas Viúva Negra não escapa da fórmula Marvel. Todo o potencial drama e suspense ao adentrarmos o centro de treinamento, assim como o plot twist com o vilão do filme, são desperdiçados com as cenas de ação espalhafatosas. Os embates em plena queda livre com aeronaves explodindo e um grande sacrifício ainda perdem para a luta inicial de Natasha e Yelena na cozinha.
Quando, finalmente, cara a cara com Dreykov, era de se esperar que os abusos sofridos pelas agentes recebessem a atenção que o tema pede. Se as protagonistas só embarcaram na missão para libertar as Viúvas, que sofrem com o mesmo que as duas sofreram na infância e ainda carregam os traumas consigo, a motivação é ofuscada pela porradaria e a sensibilidade resume o assunto a um subtexto de uma narrativa maior. A abordagem de um dos temas mais importantes acaba superficial frente ao que poderia ser, mas as espiãs continuam espalhadas e infiltradas por aí e a Marvel ainda pode fazer jus a elas.
Falando em fazer jus, em tempos em que até uniformes confortáveis e apropriados para lutas são alvo de reclamações, ainda temos que destacar a importância das mulheres contarem suas próprias histórias. Anos atrás, a intérprete da Viúva Negra só queria que a personagem fosse retratada devidamente, sem ser objetificada ou sexualizada para a apreciação do público masculino. Em Black Widow, com o protagonismo feminino à frente e por trás das câmeras, a visão de Scarlett Johansson se concretizou: olhando em retrospecto à primeira aparição de Natasha no MCU, seu filme solo arranca um suspiro de alívio.
Apesar de tudo e mesmo com as limitações que o futuro impõe – a Guerra Infinita já passou, Thanos e a rixa dos Vingadores também -, Viúva Negra não aproveita a liberdade que uma produção deslocada e isolada confere. As revelações do passado, das origens e das relações da agente são menores do que gostaríamos, mas nos aproximam da Vingadora.
Ao final, o filme solo de Natasha é envolvente e afetuoso ao enriquecer a personagem, que é bem mais do que a assassina treinada a qual fomos introduzidos. Ainda que a despedida não tenha chegado nem perto do que ela merecia, Natasha Romanoff é mais querida depois de Viúva Negra.