Vitor Evangelista
Asghar Farhadi já tem cadeira cativa na Mostra Internacional de São Paulo, e com Um Herói (Ghahreman) a história não mudou. Premiado em Cannes e com um burburinho absurdo desde sua exibição em terras francesas, o novo drama do aclamado diretor aterrissa na capital paulista recheado de tensão e uma discussão muito boa a respeito de lei, moral e até mesmo dos limites da prisão.
Rahim (personagem do eufórico nos momentos errados Amir Jadidi) está preso por conta de uma dívida não paga. Em uma licença de dois dias fora da penitenciária, ele precisa convencer seu credor a perdoar o crime para que ele possa ser libertado. Simples assim, Farhadi movimenta peças familiares, verdades silenciosas e um drama que não sabe a quem dirigir sua culpa e seu ódio.
Fica claro desde o princípio, porém, que Rahim tem tudo para ser o coitado da história, o mocinho indefeso que enfrenta o vilão que lhe denunciou e colocou atrás da grades. Mas não é bem assim. Como de costume nos brilhantes filmes do cineasta iraniano, Um Herói não contorna seus personagens com traços simples. O credor (Mohsen Tanabandeh) é um homem de família, que perdeu quase tudo que tinha pagando as dívidas quando Rahim não o fez.
O dilema moral de entender o lado das duas partes se faz presente no roteiro, minuciosamente arquitetado pelo próprio diretor, para que Um Herói não caia no maniqueísmo. A narrativa enclausura nosso protagonista, que logo de cara chega ao trabalho do cunhado, em uma espécie de construção à margem da estrada, fotografado quase engolido pelas grades que separam o local da rua.
O trabalho visual na cinematografia de Ali Ghazi é cuidadoso ao deixar pequenas pistas de como essa é uma história com final decidido, isso já nos primeiros minutos. Rahim está preso, dentro e fora da cadeia, independente de usar macacão laranja ou não. Por isso, perto do encerramento, quando sua sobrinha, uma criança a princípio enérgica mas que vai murchando ao passo que a história fica nublada, pergunta como é a prisão, Rahim não responde.
É como se Asghar Farhadi olhasse para o seu redor e implicasse que não existe diferença. Seja na cela, seja na sala da casa da irmã, Rahim mantém seu status quo como maldito, delinquente e indigno de qualquer sentimento meramente positivo. Aspecto espelhado no enlace romântico com Farkhondeh (Sarina Farhadi), a jovem que mantém um vínculo com o protagonista, e faz o possível para vê-lo livre do fundo do poço em que se encontra.
Morando nos detalhes, o afeto físico entre o quase-casal morre pelos próprios costumes e dogmas da religião que seguem. Sem um beijo, abraço ou mesmo um toque mais acolhedor, A Hero (título internacional) apresenta um veículo de amor “distante”, mas irremediavelmente genuíno. Eles batalham para alcançarem seus objetivos, eles dilaceram os obstáculos, mas nada é o bastante.
Quem recebe todos os golpes invisíveis é o filho de Rahim, um garoto gago e muito silencioso, que passa pelo maior arco dramático do filme. De primeira raivoso à figura distante do pai, o menino se permite crescer ao longo das duas horas e sete minutos de rodagem. Quando ele chora inconsolado à noite, ninguém o acode, ninguém o salva dos grilhões invisíveis que lhe pesam a alma. Não há saída, não há futuro, não há Super-Homem que chegue voando e conforte os cidadãos..
Chamar algo tão mundano de “Um Herói” desmascara o caráter disruptivo de Asghar Farhadi, que deu ao Irã maior visibilidade no Ocidente ao vencer duas vezes o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O cineasta mais pop do país continua desmantelando sua sociedade, dando força a discussões cada vez mais complexas e sem conclusão nenhuma. O Herói de Farhadi, na verdade, não voa, tampouco solta raios laser pelos olhos. Ele acorda de manhã, respira, e segue sua rotina restritiva, provando que às vezes, se manter vivo nesse sistema é muito mais digno de graças do que salvar o dia.