Gina Zapparoli
Nunca é esperado que alguém tome notas de ações boas e ruins que fazemos durante o tempo em que as pessoas passam na Terra, correto? Talvez colar em uma prova importante a qual você queira muito passar ou comprar uma “mistura de margarita para mulheres solitárias” para passar o fim de semana não parecem ser opções tão ruins vez ou outra.
No entanto, The Good Place mostra que há sempre uma pessoa anotando seus erros e acertos e que, bem, isso poderá te dar uma futura dor de cabeça. A narrativa da série se baseia em como as decisões dos personagens principais Eleanor Shellstrop (Kristen Bell), Tahani Al-Jamil (Jameela Jamil), Jason Mendoza (Manny Jacinto) e Chidi Anagonye (William Jackson Harper), por mais bobas que sejam, tragam grandes consequências para os mesmos.
Além dos quatro protagonistas, a história ainda acompanha Michael (Ted Danson), o suposto arquiteto que planejou toda a vizinhança que geraria o Bom Lugar, e sua assistente que possui conhecimento de tudo, Janet (D’Arcy Carden). Ambos personagens trazem ao grupo o “ar” fantasioso que a série brinca – principalmente ao considerar que Janet é alguém que detém todo conhecimento do mundo, enquanto Michael consegue produzir lugares para o pós-vida.
A trama inicial gira em torno de Eleanor percebendo que não pertence a vizinhança, já que este é basicamente o lugar onde todas as auras bondosas e benfeitoras do mundo foram alocadas no pós-vida. E, bem… Ela está meio longe de fazer parte dessa minoria de pessoas que causaram uma real mudança nele. Chidi acaba sendo puxado para dentro dessa bagunça criada por Eleanor ao receber o papel de sua “alma-gêmea”.
É importante frisar que Eleanor e Chidi são como faces opostas da mesma moeda. Ela é impulsiva e não consegue ter tanta empatia pelos outros, enquanto ele se baseia em pensar demais e é sua gentileza que faz com que a farsa de Eleanor continue. Michael, mais adiante na série, admite que o pareamento dos dois era para incomodá-los, mas eles fazem com que tudo aquilo dê certo.
A partir daí, a história se desenrola. Eleanor passa por bons bocados durante a primeira temporada, enquanto tenta se alocar aos padrões éticos que Chidi a ensina. Ao mesmo passo, a protagonista tenta ser ajudante de Michael para que ele não a descubra como uma “penetra” na vizinhança.
As coisas se tornam mais complicadas, quando Eleanor descobre que o monge Jianyu, na verdade, é um aspirante a DJ originário da Flórida. O grande clímax da história é que, ao Michael descobrir a existência de Jason e da Eleanor “falsa”, como ela passa a ser chamada, ele precisa mandá-los para o Lugar Ruim. Mas… Surpresa! Eles já estavam lá.
E sim, eles realmente estavam no Lugar Ruim. Toda a farsa sobre o Bom Lugar era um plano novo de tortura que Michael gostaria de apresentar para seu chefe e seus companheiros de trabalho. Ao ser descoberto, o até então arquiteto apaga a mente das pessoas de seu experimento, incluindo Janet. E, com isso, a primeira temporada termina.
Mas o objetivo dessa resenha não é discorrer sobre como as quatro temporadas são desenvolvidas – já que isso daria um texto muito grande. Ela é voltada para os pontos positivos que faz dessa série única. Um deles é baseado na escolha narrativa da obra, sendo a série toda pautada em filosofia. Até o conceito da tortura proposta por Michael é baseado em uma teoria filosófica apresentada por Jean-Paul Sartre de que “o Inferno são os outros” – essa frase se dá pela peça, Entre Quatro Paredes (Huis Clo), do filósofo.
A peça se baseia na ideia de três pessoas que convivem entre quatro paredes e basicamente se torturam psicologicamente, enquanto discutem sobre seus pecados. Toda essa ideia é bem próxima da primeira temporada da sitcom, lançada em 2016.
Não apenas a tese de Sartre é discutida. Durante os anos seguintes, novas teorias são levantadas e comentadas, de maneira cômica e até educativa. Filósofos como Aristóteles e Platão são citados, como nomes para a construção da moral e da ética. E truques de filosofia, no qual se destaca “o problema do bonde“, são colocados para fazerem analogia com o contexto que os personagens passam.
The Good Place se torna uma aventura de auto-descoberta filosófica da ética e da moral dos próprios telespectadores. A questão da possibilidade de mudança também é um assunto bastante discutido, sendo mostrado que várias vezes, por mais difícil que seja, é possível mudar.
Em todas temporadas, existe esse “reboot“ da realidade, tendo que começar de novo e de novo os universos alternativos que os personagens passam. Em todas as tentativas, eles crescem juntos – tanto que é isso que arruína várias e várias vezes os planos de Michael em torturá-los, já que sempre que tentava apertar as feridas dos protagonistas, eles se juntam e se reerguem, cada vez melhores.
The Good Place constantemente questiona o determinismo. São várias as vezes que ela demonstra que até mesmo uma Zé Ninguém de Phoenix pode ser alguém moralmente boa – mesmo que essa pessoa tenha nascido em uma casa desestruturada e sem pessoas eticamente boas para guiá-la.
Ver Eleanor ajudar a mãe Donna Shellstrop (Leslie Grossman), com quem ela tem uma parede emocional grande e se sente inferior já que não recebeu o amor materno o qual ela desejava, é doloroso. Mas, ao mesmo passo, mostra como a personagem cresceu de uma ladra de camarões em festa, para uma personagem que consegue sentir empatia e se colocar em segundo plano para salvar quem ama.
The Good Place também discorre temas sociais, como o desenvolvimento do capitalismo, as questões penais e de gênero e sexualidade. A série traz essa última em um tom leve e sem muita profundidade, mas em vários momentos é possível ver Eleanor comentando sobre bissexualidade e demonstrando interesses em pessoas de gêneros opostos – tanto que em um dos reboots, sua alma gêmea é Tahani e ela já comentou sobre se atrair por Janet. Além é claro, de Janet, que se intitula como “not a girl” – remetendo a possibilidade da ajudante de Michael ser uma representação não-binária.
Ainda neste tópico, é possível ver problemas reais como o abandono maternal e negligência familiar – tanto no caso de Eleanor quanto no de Jason e Tahani, além do transtorno de ansiedade de Chidi. Esse último caso é relatado em por volta de 19 milhões de brasileiros, segundo uma reportagem do Fantástico. Tais situações próximas da realidade de muitas pessoas, faz com que a representação desses personagens seja mais “crua” e, logo, mais próxima de se tornar identificável.
O quê anti-capitalista também é presente na série. Durante as várias idas e vindas do grupo, descobrimos que ninguém sobe para o Bom Lugar há mais de quinhentos anos e, ainda nesse episódio, é apresentado que a vida contemporânea é complicada, porque o capitalismo faz com que ela o seja.
O ato de dar uma flor no passado causava pontos positivos; enquanto a mesma ação, nos dias atuais, faz com que a pessoa os perca, já que o mercado é algo volátil e que muitas vezes não colabora com o meio ambiente ou com a sociedade em uma esfera maior – o exemplo dado na série, por exemplo, faz com que o personagem possua uma desvantagem por ter contribuído com o trabalho em condições insalubres e com um empresário acusado por assédio, mesmo que o comprador de uma simples flor não soubesse disso. No fim, não há uma ética no capitalismo.
As questões penais também pesam durante a quarta e última temporada, onde os personagens são julgados a quase serem apagados da história, já que o novo experimento conduzido por Michael, dessa vez para salvar a humanidade, dá errado. Você mudou, cara (You’ve Changed, Man) é um ótimo episódio que discorre sobre como o sistema judicial poderia reintegrar e re-educar as pessoas que já foram punidas por ele mesmo.
No fim, tudo dá certo. O Bom Lugar passa por uma nova reforma estrutural e passa a ser o objetivo de todos, que colocam um processo de reeducação dos erros cometidos na vida passada. Aquela realidade parece perfeita, os personagens finalmente tem aqueles minutinhos de paz para só aproveitarem tudo que alcançaram até ali.
Até que eles percebem que a eternidade não é tudo isso, ainda mais em um lugar utópico como o que estão. Um por um, os protagonistas conseguem reparar que já atingiram sua meta naquele lugar e, vendo que não existe mais a necessidade de ajudarem outras pessoas ou aproveitarem o suposto paraíso, os personagens se despedem para voltarem ao universo.
Ao se ver solitário naquela utopia que Michael criou, ele decide desistir do paraíso em que vivia e tentar viver de forma humana – por mais que ele saiba as dificuldades, as questões de ter um trabalho e de possuir glândulas sudoríparas. Dando assim, um fim ao ciclo. Fechando os pontos soltos das histórias: Tahani conseguindo ser alguém importante sem estar a sombra de sua irmã, Chidi se contentando com as coisas ao seu redor e Jason desistindo de todos os objetivos bobões que ele possuía, tendo Janet ao seu lado.
Eleanor também se despede do lugar, dando adeus para seus pensamentos mesquinhos, dias solitários e a autossuficiência que desenvolveu como mecanismo de defesa. É um arco que completa a personagem, que agora entende a importância de ouvir e ser ouvida.
The Good Place traz questões importantes de forma gostosa de se acompanhar, trazendo um humor leve e inteligente que faz com que o entendimento de bases filosóficas antigas e acadêmicas seja mais acessível e amplo. Sua narrativa, vez ou outra, soa liberal, mas não diminui as questões sociais e ético-morais que a série nos apresenta.
A história possui personagens envolventes que crescem e nos fazem rir e chorar junto. Questões como não se sentir o suficiente para ser amado, as dificuldades envolvendo a ansiedade de Chidi, da inferioridade de Tahani, a vontade de Jason de ser uma pessoa melhor. Sua narrativa é acolhedora e nos ensina que todos somos capazes de mudança e de melhora.
Além, é claro, de Chidi e Eleanor. É realmente possível acreditar na questão de almas-gêmeas ao vê-los se reencontrando tantas vezes e, em todas elas, conseguindo manter um elo forte e seguro. Um ajudando o outro com suas falhas, havendo o aprendizado de ambos os lados, possuindo a vontade de sempre se encontrarem. É um amor estilo shakespeariano, mas que parece dar certo em seus próprios moldes.
Por fim, a pergunta que fica é: “o que devemos uns aos outros?” – outra vertente da filosofia que a série usa como esqueleto, mas que também serve como questionamento para o dia a dia: o que se pode aprender da pessoa com quem você convive? E o que pode ensinar? Por ora, o ensinamento que esse texto tem a dar é: reassista The Good Place, ainda há muito que os 5 anos da série podem lhe entregar.