Gabriel Oliveira F. Arruda
Levantando voo após mais de uma década interpretando Penny em The Big Bang Theory, Kaley Cuoco não só estrela como também produz a comédia do HBO Max baseada no livro de Chris Bohjalian, The Flight Attendant. A série, que estreou em novembro de 2020 nos Estados Unidos, chegou junto com o serviço de streaming no Brasil, onde sua narrativa bagunçada e suas performances excepcionais ajudaram a conquistar os novos assinantes.
Na trama, Cassie (Cuoco) é uma comissária de bordo alcoólatra que, ao flertar casualmente com um dos passageiros a quem serve, acaba se metendo no meio de uma investigação de assassinato e intriga internacional muito além de sua conta. Auxiliada por um elenco talentoso, a aventura trôpega de Cassie conseguiu abocanhar nove indicações no Emmy 2021, após ter recebido críticas majoritariamente positivas durante a sua exibição.
A começar pela trama, que segue os passos desiguais de sua protagonista ao longo de suas noites insones, a primeira temporada da série nem faz questão de esconder sua bagunça. Enquanto flerta com Alex (Michiel Huisman) à bordo de um voo para Bangkok, Cassie casualmente pergunta “O que há de errado com confuso?”, em referência ao comentário de Alex sobre Doutor Jivago.
Ao longo dos oito episódios, vemos como a narrativa da comissária tendo que lidar com as crescentes pressões e seus próprios demônios buscam suportar essa ideia, contando a história por meio de cortes apressados e montagens em split screen que até podem confundir, mas adicionam um charme muito bem-vindo ao seu thriller hitchcockiano. Juntas, elas garantiram a indicação na categoria de Melhor Montagem em Comédia de Câmera Única para Heather Persons pelo primeiro episódio, In Case of Emergency, que também foi indicado pelo roteiro de Steve Yockey.
Por mais que a direção de Susanna Fogel nem sempre acerte no delicado equilíbrio entre caracterização frenética, mistério detetivesco e comédia sombria, sua vitória no DGA Awards definitivamente lhe dá momento para ir contra os peso-pesado de Ted Lasso e Hacks no Emmy 2021. Nos primeiros dois episódios da série, ela consegue estabelecer muito bem o tom da produção e suas inspirações estéticas e narrativas, construindo uma forte base para o resto da temporada.
Conforme ela avança, no entanto, as limitações do roteiro de Steve Yockey vão se mostrando. Ao traduzir os aspectos introspectivos da obra para a tela, The Flight Attendant cria seções quase alucinógenas nas quais Cassie vê e interage com a versão fictícia de Alex que ela criou em sua cabeça conforme tenta desvendar sua morte. Por mais que a química entre os atores ancore essas cenas, elas ficam progressivamente mais disruptivas à medida que a temporada se estende, dando a impressão de impedir que a narrativa se complique ao invés de sinalizar o crescente colapso mental de sua protagonista.
Kaley Cuoco dá um show à parte, interpretando a comissária de bordo com nuances que vão muito além de seu vício e sua situação desesperada. A atriz executa as viradas de emoção da protagonista não como o clichê sexista de mulheres histéricas, mas como uma personagem lidando com camadas e camadas de trauma sendo reveladas pouco a pouco, forçando-a a dissecar seu passado para descobrir a verdade dos acontecimentos da noite anterior. O controle de Cuoco sobre as facetas de Cassie é o que mantém a trama desastrada junta, apesar das viradas mais absurdas que a série dá.
Acompanhando-a no elenco, Zosia Mamet interpreta a melhor amiga responsável (mas igualmente complicada) de Cassie, Ani, uma advogada linha-dura que vai sendo puxada ao limite pelo comportamento errático da amiga, ajudando-a a confrontar seu passado enquanto ela mesma passa por momentos tensos. Do outro lado da trama, a femme fatale Miranda, interpretada por Michelle Gomez, traz uma dinâmica provocante à narrativa, junto com seu lindo sotaque escocês, mas que, infelizmente, chega um pouco tarde. Os diálogos entre ela e Cassie remetem à relação entre a agente Eve Polastri e a assassina Villanelle de Killing Eve, só que mais apressada.
A performance de Rosie Perez, por sua vez, adiciona realidade à The Flight Attendant e faz um paralelo entre os arcos de sua protagonista e outra comissária de bordo, Megan, apesar de fazer parte de uma trama em grande parte afastada da história principal e que não tem uma conclusão satisfatória no último episódio, Arrivals & Departures, pelo qual ela foi indicada ao Emmy de Atriz Coadjuvante em Comédia. A segunda colaboração de Perez com uma Arlequina é certamente menos explosiva que a anterior, mas ainda serve como um excelente exemplo de seu trabalho como atriz, principalmente ao evocar os momentos mais sutis e controlados da temporada. Apesar disso, é difícil que ela seja reconhecida na categoria, dada a competição forte do ano.
Já em Melhor Atriz, a briga é mais incerta: por mais que o trabalho de Cuoco seja mais do que merecedor da indicação, suas chances de superar a feroz personagem de Jean Smart em Hacks não são muito boas, com o prêmio indo para o HBO Max de uma forma ou de outra. No Casting, suas chances também não são lá muito promissoras, onde ela compete com os principais programas da seleção, além de O Método Kominsky e Pen15.
Com a profissão de Cassie sendo capaz de nos levar da Tailândia até a Itália, é um pouco decepcionante ver o quanto da aventura se passa em cenários urbanos nova-iorquinos, sabendo que sua trama certamente abrange territórios mais exóticos. Apesar de ambientes esteticamente bem construídos e figurinos alinhados com suas personagens, é difícil ver a série ganhando a estatueta de Design de Produção em Narrativa Contemporânea.
A primeira temporada de The Flight Attendant acerta naquilo que importa, apresentando sua personagem principal e embarcando numa jornada emocionante de auto-realização, carregada pela atuação destemida de Kaley Cuoco, que conquistou a primeira indicação de sua carreira pelo episódio In Case of Emergency, onde essa jornada começa. Mesmo quando seu foco se perde na preocupação de estabelecer próximas temporadas, sentimos que a jornada de Cassie mais do que valeu a pena, apesar dos tropeços bêbados que ela dá junto de sua protagonista.
Dito isso, é improvável que a série realize algum milagre e tire o prêmio máximo da categoria de Comédia das mãos dos grandes concorrentes da noite, apesar de seus muitos pontos positivos. Seja contra a comédia sarcástica de Hacks ou contra a otimista Ted Lasso, a comissária de bordo de Kaley Cuoco simplesmente não voa alto o suficiente.