Vitor Evangelista
Não é sempre que uma comédia esportiva consegue sair dos dramas de seu nicho e conquistar a grande audiência. O costumeiro é que as histórias se restrinjam aos jargões do gênero, repetindo estereótipos sexistas. Ted Lasso, original da Apple TV+, dribla todos esses problemas e marca um golaço. Jason Sudeikis protagoniza as aventuras de um treinador de futebol americano que se muda para o Reino Unido a fim de comandar uma equipe da Premier League. O problema? Ele não manja nada do futebol convencional.
O choque cultural desencadeado por Ted Lasso é o primeiro fator de ignição do seriado, que chegou ao streaming no fim de 2020 e é candidato forte aos prêmios de Comédia do Emmy 2021. O otimismo do yankee conflita com a frieza e o calculismo dos londrinos, e o bom humor que Lasso emprega em seu comportamento ganha o espectador logo no seu desembarque na Terra da Rainha. Afável, sentimental e empático como ninguém, o protagonista ilumina e aquece os ambientes que habita.
Assistir, no contexto político-social de 2020, alguém tão leve e querido, é um presente e tanto dos criadores de Ted Lasso. De fato, o personagem não é novo no pedaço: essa persona falastrona e desbocada surgiu na NBC como uma sketch cômica. Sudeikis, então, ao lado do showrunner Bill Lawrence, desenvolveu a ideia para um programa próprio, mas o ator sabia que, para sustentar uma temporada de dez episódios, Lasso precisaria de mais do que uma porção de gírias da área.
Entra em cena a liberdade criativa que a Apple TV+ deu aos desenvolvedores do show. Primeiro de tudo, eles poderiam usar o CT de um clube real de Londres, o que era benéfico ao quadrado, tanto por dar mais vitalidade aos cenários, quanto por imergir o elenco naquela rotina esportiva, começando pelos vestiários suados até o brilhoso campo verde onde, independente do porquê, não pode pisar na grama!
O time do mundo real que espelhou a equipe de Lasso é o Crystal Palace. Um dos produtores do seriado era parente de um dos donos do Crystal, o que facilitou ainda mais o negócio. E, para melhorar a oferta, o fictício AFC Richmond perderia de lavada para o Palace logo no segundo episódio, Biscuits. A cereja do bolo da série é justamente criar algo imaginário, mas manter todo o contexto anexado ao mundo real: o Richmond joga até contra o Manchester City, alimentando uma rivalidade entre duas gerações de jogadores.
Roy Kent (Brett Goldstein) representa a velha guarda, um meio campo mais velho que já não joga como outrora. O personagem foi inspirado no real Roy Keane, que jogou no outro Manchester, o United. Seu embate acontece com a juventude e a rebeldia de Jamie Tartt, papel de Phil Dunster, munido de arrogância e que adora exibir o corpão. Os dois batem cabeça ao longo dos 10 capítulos, e ainda sobra espaço para a inserção do triângulo amoroso com Keeley (Juno Temple).
Dando carrinho nos estereótipos sexistas e de gênero, os roteiristas de Ted Lasso (sob o comando do chefe de redação Sudeikis) escrevem figuras cheias de camadas e com espaço para crescimento e redenção. Logo que chega no vestiário, o treinador faz questão de cobrir os recortes pornográficos femininos que decoram o ambiente, deixando claro que ali, sob sua gerência, não existe espaço para esse tipo de piada datada. No lugar, assistimos o erotismo dormente do futebol ser explorado nas entrelinhas. Os corpos esculturais, formas bem definidas e peitorais sarados ilustram todas as cenas que podem, e quem comenta a suculência da sensualidade são as mulheres.
A chefe de Ted Lasso, Rebecca Welton (Hannah Waddingham), recebe tratamento de princesa no arco da primeira temporada. Ela começa o Piloto com o plano maquiavélico de contratar Lasso apenas para ele afundar o time e destruir o legado do ex-marido, mas suas ações revelam uma faceta fragilizada, ao invés da vilã sem coração. O treinador estimula aqueles próximos à ele, ele é uma sessão de terapia ambulante aos europeus, mesmo que nunca tome consciência desse superpoder secreto.
E esse modo de vida de Lasso não resvala na positividade tóxica ou na felicidade nociva, como a Poliana ou a Anne. Jason Sudeikis oscila entre os picos de humor e amor que emana, ele justifica seu comportamento com os óculos amarelos que ajudam a superar seus próprios demônios e dores. A série investiga o casamento distante do americano, além de dar ao ator a chance de atuar nas nuances. Make Rebecca Great Again, capítulo que sai do ambiente futebolístico para desanuviar o clima da série, coloca Ted Lasso na corda bamba e relembra o espectador que ele é humano como todos nós.
O futebol é usado como recurso narrativo, e a montagem do seriado consegue emocionar quando retrata momentos das partidas. A trilha sonora ensurdece enquanto a câmera desacelera, um gol é marcado, um pênalti é perdido. Somos torcedores do Richmond, somos críticos ao estilo de treinador de Lasso, somos parte daquela família. A dramatização cômica do esporte no Reino Unido acende a chama de curiosidade para uma produção tupiniquim nesses mesmos moldes.
Acompanhar os bastidores de um Flamengo ou São Paulo da vida, os percalços, rivalidades, romances, subornos e a recompensa emocional de fazer parte de algo. Nathan (Nick Mohammed), um arquétipo comum de personagem sem confiança e que sofre na mão dos héteros machões, é acolhido pela empatia de Lasso; Keeley movimenta uma jornada independente de seus namoros; o assistente Beard (Brendan Hunt) ganha tridimensionalidade peculiar; e Sam (Toheeb Jimoh) sai da sombra das caracterizações racistas e preguiçosas da África. Ted Lasso faz tudo isso com sutileza, enquanto surrupia suas qualidades pela lateral e marca um gol de placa.