Jamily Rigonatto
Arrumar a bagunça de patricinhas pomposas, fazer camas com edredons importados e esperar a boa vontade de megeras para receber o próprio pagamento são algumas das normalidades do dia a dia de Ada Harris (Lesley Manville). A viúva trabalha como faxineira e, apesar das inconveniências da rotina, leva a vida com um bom humor ímpar. Mas a satisfação com o mediano muda quando seu caminho veste toda a elegância da moda parisiense e a habitualidade dá lugar aos sonhos. Em uma aventura à francesa, Sra. Harris Vai a Paris costura entre rendas e bordados uma história brilhante.
O filme, lançado pela Universal Studios em 2022, usa um vestido Dior como gatilho para que Ada tenha um belo despertar. Os dias da mulher estavam fadados à ilusão de esperar a volta do marido soldado da Guerra, pegar todo dia a mesma condução com a amiga Vi Butterfield (Ellen Thomas) e fazer trabalho extra com reforma de costuras. No entanto, uma silhueta bem estruturada e uma quantidade estonteante de brilhos aplicados à mão são, sim, suficientes para fazer alguém deixar de se contentar com o limbo.
À primeira vista, o roteiro desenvolvido por Anthony Fabian, Olivia Hetreed e Carroll Cartwright pode parecer superficial. Um típico clichê de tons juvenis com uma protagonista simpática que ganha uma reviravolta um tanto encantada. Ao assistir a produção, não é isso que nos é mostrado. Aqui, os caminhos escolhem desviar por rotas menos óbvias e deixam o grande bilhete premiado ser encontrado entre os detalhes.
As cenas em que Ada e Vi aparecem juntas estão espalhadas ao longo de toda a narrativa e essa relação é uma das pontes mais importantes da história, além de oferecer um tom cômico e leve extremamente necessário para que o filme mantenha os ares frescos mesmo quando trabalha com assuntos complicados. A amizade entre as personagens faz com que o telespectador experimente um sentimento reconfortante, derivado da ótima interação entre as atrizes, já que seus gestos carregam um carinho fraternal capaz de ultrapassar os limites do enquadramento.
É a amiga que tenta motivar a protagonista e fazê-la perceber o quanto sua rotina está sendo exaustiva e abusiva. São nas conversas das duas e nas idas ao baile em busca de distração que a ideia de que o Sr. Harris não vai retornar entra em pauta, e as feridas começam a ser escancaradas para que a cura tenha espaço para se alojar. Assim, o encontro inesperado com o vestido Dior, guardado no armário de uma de suas patroas, acaba sendo apenas o pavio necessário para que perspectivas que já vem sendo abordadas ganhem chance de florescer.
Em seu tempo de tela, Ellen Thomas reafirma todo seu carisma e coloca sua bagagem com papéis de comédia para jogo. Suas falas têm seriedade, mas ainda se afirmam em notas espirituosas e brincalhonas. É esse movimento que faz com que a ausência da personagem no meio do filme não pese e a presença seja algo sem necessidade de materialização, como se o cuidado de Vi com Ada fosse ubíquo.
Desde a preparação para a viagem a Paris até o momento em que esta finalmente é consolidada, a questão da estrutura social começa a aparecer com mais força. As dificuldades financeiras de Ada e o suor empenhado para juntar o valor necessário para o deslocamento e a compra do vestido mostram a trabalhadora em um embate com políticas de trabalho não afirmadas em contrato, jornadas exorbitantes e pouca remuneração, características do cenário inglês. Essa inserção é feita de forma discreta, mas serve de introdução para os acontecimentos em terras francesas.
Ao chegar no desfile Dior, que tanto batalhou para conseguir, as ruínas da sociedade elitista do continente europeu voltam a mostrar as caras e derrubar seus entulhos sobre a cabeça da Sra. Harris. Uma das primeiras interações da personagem com a funcionária da Casa Dior, Claudine Colbert (Isabelle Huppert), é carregada de preconceito e propaga a ideia de que a alta costura é feita para os ricos de berço. O tom excludente dá espaço para que um cavalheiro abra as portas da gentileza e o Marquis de Chassagne (Lambert Wilson) nos seja apresentado.
Um dos grandes acertos de Mrs. Harris Goes to Paris – nome original da obra – é não escolher que seus personagens sejam puramente bons ou maus. A construção caminha por uma trajetória de pessoas multifacetadas, capazes de carregar aspectos duais. Assim, o Marquis logo menos demonstra suas falhas e os estigmas que mantém em seu ideal, enquanto Claudine também tem sua fragilidade e humildade esmiuçadas.
Entre as desavenças e obstaculos separando a Sra. Harris de seu sonho, a fotografia nos leva a uma viagem a um outro aspecto de Paris: a greve trabalhista. Os enfoques dos ângulos e câmeras comandados por Felix Wiedemann são delicados e faceiros, nos transportando para o caimento impecável das peças da Dior, mas também mostrando a situação das ruas cheias de lixo diante da paralisação dos lixeiros. A cada pequeno salto temporal, a capital tem sua bela arquitetura inundada por sacos e mais sacos de lixo, filmados de forma sutil sem passar despercebidos.
O entrelace das cenas até o acontecimento que quase faz com que a Casa Dior decrete falência tem muito do protagonismo dos trabalhadores e de como a mudança do mercado e o foco da indústria são projetados até se desvincularem da exclusividade para abordarem a ideia de globalização. Assim, Sra. Harris expõe como até mesmo o criador do New Look precisou de seus trabalhadores para manter seu império e se consolidar como uma das maiores grifes do mundo da moda.
E falando de Christian Dior, é preciso destacar a escolha de Philippe Bertin para encarnar o estilista. Além da atuação austera bastante conveniente para a ocasião, a aparência do ator conseguiu se aproximar de forma certeira à inspiração. Em suas pequenas, mas marcantes aparições, temos o designer de moda representado praticamente em pele e osso nos frames.
Apesar de dizer muito em entrelinhas, a produção cinematográfica dirigida por Anthony Fabian continua sendo uma comédia dramática e é marcada pela atmosfera de contos de fadas. O que não é ruim, mas acaba fazendo certas conclusões ficarem em segundo plano e deixa a ideia de que simpatia e esforço levam as pessoas para onde quiserem. Dessa forma, a narrativa fica apegada às cores vibrantes dos universos utópicos.
Ainda assim, os pedaços românticos alimentam o cenário parisiense e os amores iluminados pela cidade luz. Ver Natasha (Alba Baptista) e André (Lucas Bravo) se apaixonando deixa aquela sensação mágica passeando pelas ruas e, mesmo com a sujeira, as estradas garantem a presença do brilho dos jovens amantes. Além de um par romântico adorável, os dois são uma marca da autonomia e liberdade individual, já que suas escolhas partem para as prioridades pessoais de cada um de forma singular.
Para completar os tons fantasiosos, a cereja do bolo fica com a produção e reprodução de peças da Dior realizadas pela figurinista Jenny Beavan. Os bordados, os movimentos das vestimentas e o impacto do brilho são todos feitos a perfeição, criando cenas de encher os olhos. Cada modelo é impecável e capaz de fazer com que quem assiste se sinta em um universo de princesas fabulosas.
Toda a beleza das peças da produção não passaram despercebidas e, no Oscar de 2023, o filme concorre na categoria de Melhor Figurino. Beavan está no páreo com Mary Zophres por Babilônia, Ruth E. Carter por Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, Catherine Martin por Elvis e Shirley Kurata por Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo. Mrs. Harris Goes to Paris foi contemplado em 2022 no British Independent Film Award por Melhor Figurino e chegou a fazer parte dos indicados ao BAFTA de 2023 na mesma categoria. Leslie Manville apareceu nas categorias de atuação das premiações deste ano, estando entre as indicadas ao Globo de Ouro 2023 como Melhor Atriz em Filme Comédia ou Musical. Mas o destaque da produção fica com os figurinos, enquanto a maioria das categorias principais não destacaram os trabalhos de atuação, direção ou roteiro aplicados na releitura do original de 1992, intitulado Um Sonho em Paris.
Como não poderia ser diferente, Ada ganha seu felizes para sempre com um lindo vestido Dior e seus sonhos mais vivos do que nunca. O que faz da obra, inspirada no livro homônimo de Paul Gallico, tão especial é a forma com a qual sonhar não é apenas um verbo, mas um ato de resistência. Apesar de distante do real, o filme é esperançoso e torna a vontade de reviver a criança dentro de nós uma visita frequente.
Inundado pelo brilho da moda, Sra. Harris Vai a Paris nos deixa lições valiosas e uma história cheia de temáticas importantes envolvidas em uma aventura simpática. Seja no amor na terceira idade, na luta pelos direitos trabalhistas ou na prova de uma roupa extravagante, vale a pena dar uma chance para essa senhora apaixonante e aproveitar para vislumbrar os encantamentos oferecidos por Christian Dior.