Vitor Evangelista
Não há nada mais lucrativo que um coração partido, e Olivia Rodrigo sabe muito bem disso. Ninguém poderia prever o sucesso de drivers license, um desafogo sincero e genuíno sobre seu término. Nos tempos em que sair de casa não é uma opção, a canção virou trilha sonora de qualquer desavença sentimental, propiciando à jovem americana uma porrada de recordes quebrados. Poucos meses depois de contar ao mundo todo o status de sua carteira de motorista, Rodrigo retorna com 11 canções que potencializam o momento mais frágil, difícil e azedo de sua vida.
A prosa de SOUR é simples: por quase trinta e cinco minutos, tomam forma os relatos de uma pessoa viciada em controle mas que perdeu qualquer senso de direção cultivado até então. Sua adolescência foi marcada pela dúvida, ela canta em uma das 3 músicas que formam a trinca de ouro do trabalho: “Eu usava maquiagem quando namorávamos/Porque pensava que você iria gostar mais de mim/Se eu parecesse com as outras rainhas de formatura/Que eu sei que você amou antes”, se referindo aos traços de sua descendência filipina.
Por mais que as emoções da garota tenham se misturado no liquidificador que comanda seu coração, SOUR prevalece uma narrativa de imparidade. O discurso de comparar Rodrigo ao lirismo de Taylor Swift ou Lorde é cansativo, mas é possível idealizar uma linha de semelhança muito covalente: essas são três compositoras que encontram verdade em descobrir ecos de si mesmas nas canções a que dão vida. A abertura com brutal tem pouco fôlego comparada a entradas mais potentes do disco, mas a batida pop rock conquista não só pela finesse da nostalgia, mas também por repetir os jargões que solidificam a tal geração Z: ninguém se sente estável.
Instabilidade presente no corpo e na alma do LP, que não traça mapas simplórios do luto pela morte de um amor. Olivia Rodrigo usa a produção de Dan Nigro, responsável pelos trabalhos de Conan Gray, para eletrocutar o cenário da Música e também o de si mesma. SOUR revela o vício de Olivia em não procurar terreno firme, seja para superar a rapidez com que foi esquecida ou para endereçar as cartas aos buracos nas asas de borboletas. As metáforas carregadas perdem o rumo ora ou outra, mas a recriação de invólucros temporais precisos é o que cutuca a simpatia pelo trabalho. É impossível se sentir apático frente aos testemunhos da cantora, estamos torcendo por ela, mesmo que involuntariamente.
As letras do CD intercalam o macro (soando difusas) e o micro (favorite crime, destaque máximo e quando Rodrigo se alça às nuvens). Uma carteira de motorista movimentou o mundo por algumas semanas, logo substituída pela ideia de assistir as reprises de Glee. jealousy, jealousy é óbvia ao descrever um dos Sete Pecados Capitais, ao passo que happier usa do comum para revelar uma faceta muito mais malévola do sentimento, retificando a verdade que sai da garganta da artista, que rasga o véu entre sua geração e qualquer pessoa mais velha que ouça e se relacione com a obra. É a ponte entre dois mundos, conectada pelo pé-na-bunda, pelo fora e pela dor de cotovelo.
A gourmetização do coração estraçalhado não é uma caça ao tesouro ou um mapa detalhado do coração da garota. SOUR está mais perto de ser uma lista de equações que procuram o momento exato em que ela deixou a armadura cair. E essa autocobrança persiste: “Eu sabia desde o começo que era assim que você iria embora” é o desabafo e a linha mais forte do trabalho, mostrando que muitos dos sentimentos cantados nasceram antes do namoro, mas foram potencializados pelo término.
Nessa toada, Olivia Rodrigo escreve a si mesma como a protagonista da própria história, falando sobre ela, o que sente, fez e o que deixou de fazer. As canções que se focam na figura do ‘ele’, ou, nesse caso, nas diversas variações de you, são constatações projetadas. Ele a traiu, ele a deixou de lado, mas é o que ela quem pensa e isso já é o bastante. Olivia entende quem a colocou nessa situação (e a resposta está refletida no espelho). Com essa leitura, fica claro que SOUR é um disco sobre os reflexos de alguém na jovem, as marcas e cicatrizes de uma ação recebida, abrindo margem para que, no futuro, conheçamos Olivia Rodrigo para além do coração partido e do fantasma de Joshua Bassett.
Ao longo dos curtos quase quarenta minutos, existe até uma aversão da artista em repetir os direcionamentos raivosos. É só reparar na estilização das faixas, que não usam o padrão correto da palavra ‘you’: good 4 u abraça o frenesi da fonética numérica, enquanto Rodrigo homenageia Garota Infernal, bota fogo nas tralhas e ainda chama Joshua de sociopata, sem esconder o prazer de expurgar esse sentimento. A MVP enough for you, marcando a única vez em que Olivia obedece o dicionário, é a composição mais dolorosa de SOUR (“Porque tudo que eu queria era ser suficiente, mas eu acho que nada poderá ser suficiente para você”).
A terceira referência ao ‘você’ vem na conclusão, com a amistosa e fantasiosa hope ur ok, que concilia a última das fases do luto. Sem repetir os diversos vocês que compõem SOUR, Olivia Rodrigo quer que foquemos nela. Ela, também, não deixa o processo de encarar o fim de um namoro com base no estudo de passagem do luto acontecer apenas uma vez, com pinceladas em quase todas as canções, e também pela escolha nada linear ou conclusiva da ordem delas.
1 step forward, 3 steps back grita barganha, e, de quebra, usando a interpolação de New Year’s Day, fechamento do arisco reputation de Taylor Swift (madrinha de Olivia), a jovem admite a neurose de viver enclausurada em uma bomba de instabilidade. “E talvez de alguma forma masoquista/Eu meio que acho tudo isso emocionante/Tipo, que amante eu terei hoje?/Você vai me acompanhar até a porta ou vai me mandar para casa chorando?”, ela confidencia, acompanhada do piano gélido que mascara a índole do momento. SOUR não recria os instantes felizes que o casal viveu, deixando a cargo das memórias, por vezes metafóricas (drivers license), por vezes literais (a adocicada deja vu), o trabalho de montar o quebra-cabeças do pré, do antes, das promessas e do ‘e se?’.
O ‘e se?’ morreu. O relacionamento de Olivia Rodrigo morreu. Mas, no doloroso processo de coletar os cacos e se proteger do hostil mundo real, nasceu um disco bem resolvido, maluco, instável e viciado em nos fazer sofrer, independente de não sabermos dirigir, não assistirmos Glee ou não vermos nosso namorado de rolo com uma loira um tiquinho mais velha que a gente. A pisciana de 18 anos teve esse alcance: criando lembranças falsas na cabeça de qualquer ouvinte de SOUR, sua dor passou de individual para a experiência mais coletiva possível. O futuro não pode ser pior do que acabou de acontecer, e, agora no banco do motorista, uma curada Olivia Rodrigo pode nos mostrar o que vem depois de provar do azedo.