Caroline Campos
Quando a Netflix lançou A Maldição da Residência Hill em 2018, Shirley Jackson voltou aos trendings 53 anos após sua morte por insuficiência cardíaca. A grandiosa série de Mike Flanagan adaptou o romance mais infame da carreira de Jackson, A Assombração da Casa da Colina, escrito em 1959 e, hoje, considerado uma das maiores obras de terror do século XX. Em 2020, foi a vez da própria autora ganhar uma adaptação de sua vida conturbada, dessa vez pelas mãos habilidosas de Josephine Decker e com produção executiva de Martin Scorsese. Shirley, que conta com o protagonismo de Elizabeth Moss, é uma biografia desconfortável de uma mulher assustadora – no melhor dos sentidos.
Shirley é (ou, bem, era) casada com Stanley Hyman, um professor universitário cínico e prepotente em relação à esposa, mas extremamente querido pela comunidade acadêmica ao seu redor. Interpretado por Michael Stuhlbarg, Stanley é um par adequado ao estado de espírito de sua parceira – os dois são companhias bem desagradáveis, diga-se de passagem, e Rose e Fred Nemser não demoram muito a descobrir. O casal de estudantes, vivido por Logan Lerman e Odessa Young, passa pelo primeiro e agitado ano de casamento quando são convidados a se hospedar na casa de Shirley e Stanley. Em uma dinâmica gato-e-rato, os jovens se vêem vítimas sutis do humor cruel da escritora e de seu marido.
Rose inicia o filme lendo, encantada, A Loteria, o conto mais chocante de Shirley Jackson, que foi publicado na revista The New Yorker em 1948. Ela e Fred já se encaminhavam à residência da autora, de quem Rose é uma grande admiradora, e a jovem se apressa a tentar estabelecer algum tipo de relação com Jackson. No entanto, o futuro lar dos Nemser apresenta suas obscenas limitações, pois enquanto Shirley sofre de um bloqueio criativo e não consegue sair da cama, Stanley se envolve com diversas mulheres da universidade e faz pequenos jogos de submissão com sua esposa.
À medida que Fred se aproxima da mesma vivência do professor, seu mestre intelectual, Rose se apega ao cotidiano estressante e obsessivo de Shirley, criando um laço no melhor estilo criador-criatura. Sarah Gubbins, roteirista de Shirley, constrói um suspense pautado numa casa sufocante com personagens agressivos e manipuladores, mas que ainda permite apoio entre duas mulheres que experienciam a sociedade patriarcal de formas diferentes. Shirley é maldosa demais, Rose é boazinha demais.
Com as melhores encaradas saídas diretamente de The Handmaid’s Tale, Elizabeth Moss se torna amiga íntima da câmera. O filme se passa no período em que a autora estava escrevendo Hangsaman, seu segundo romance – mas tratado como o primeiro pela obra de Decker. Perturbada pelo desaparecimento de uma jovem, que se torna a inspiração para o novo livro, Shirley a funde com Rose, passando a ter visões quase que oníricas de sua personagem perdida.
A autora sofria com o mesmo mal de Constance, sua protagonista no perturbador Sempre Vivemos no Castelo: a agorafobia. Em Shirley, o roteiro baseado no livro de Susan Scarf Merrel opta por premeditar o medo da autora de sair de casa. Segundo a crítica Leah Schnelbach, Shirley, na verdade, só desenvolveu a fobia nos anos 60, bem depois dos acontecimentos de Decker. Além disso, se no filme a autora é retratada como uma mulher resistente à vida de casada e à maternidade, Shirley já era mãe de três enquanto escrevia Hangsaman.
As mudanças narrativas ressaltam a confusão de Josephine Decker em definir o tom de sua cinebiografia. As escolhas a fim do drama e do suspense deixam o espectador desorientado quanto a veracidade de algumas situações, mas também estabelecem um ar mais autoral ao longa. Shirley se mantém respirando principalmente por conta de Odessa Young que, com seu final ambíguo e libertador, é capaz de despertar a simpatia de quem a assiste, mesmo depois da sucessão de repulsa em que os personagens se envolvem.
O breve relacionamento amoroso entre Shirley e Rose chama a atenção de início com seus flertes suaves e seus entrelaçamentos de pés embaixo da mesa de jantar, só para acabar se perdendo na atmosfera aborrecida da casa. A sororidade, palavra que subiu 250% nas suas buscas depois do BBB 20, sustenta o cotidiano das mulheres de Josephine Decker e orienta as ações que se desenrolam nas últimas cenas. Enquanto Rose está preparada para bater de frente com Fred para o resto da vida, Shirley segue sua relação desarranjada e caótica com Stanley. O equilíbrio perfeito para um filme desequilibrado.
Shirley chegou ao Brasil pela 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na seção Perspectiva Internacional, e foi exibido no Festival de Berlim. A vida de Shirley Jackson, que se tornou leitura obrigatória em escolas estadunidenses, pode ser tão assustadora quanto suas histórias. A mulher que influenciou nomes como Stephen King e Neil Gaiman vivia não só da escrita, mas pela escrita. E viver não tem a mesma graça sem um pouquinho de medo.