Vitor Evangelista
As séries americanas de comédia passaram por uma bela repaginada nos últimos anos. O consagrado formato de sitcom (comédia de situação) cedeu espaço para produções menos derivadas, e histórias diferentes foram sendo contadas na telinha. Isso, é claro, se refletiu nas premiações. Se, no começo da década, a tradicional Modern Family era aposta certa no bolão, com o passar dos anos outras abordagens receberam o devido destaque e ganharam os holofotes. Olhando apenas para o Emmy dos últimos cinco anos, o grupo de vencedores denota a diversidade.
Veep, a sátira política da HBO, ganhou o caneco 3 anos seguidos, depois da avalanche da família moderna cansar os votantes. Em sua pausa, The Marvelous Mrs. Maisel roubou a atenção. A comédia de uma hora da Amazon perdeu o posto ano passado para outra produção do Prime Video: Fleabag. Singular e dolorosa, a criação de Phoebe Waller-Bridge surpreendeu no Emmy 2019 quando fez a rapa, de surpresa. Chegamos então a 2020, ano caótico tanto nas artes quanto fora delas. Mas nem uma pandemia parou a cerimônia do Oscar da TV. E, após longos anos, assistiremos uma sitcom ‘simples’ e alegre ser aclamada e aplaudida. Está na hora de você conhecer Schitt’s Creek.
O seriado foi produzido pela pequena rede aberta CBC e transmitido pela Pop TV, emissora de TV fechada canadense. Schitt’s Creek sempre viveu na sarjeta, pouco assistida e menos ainda comentada, mas cresceu no boca a boca. A primeira temporada estreou em 2015 e a sexta, o ano final, se encerrou em abril de 2020. A série chamou atenção dos americanos quando foi adicionada no catálogo da Netflix de lá, e virou clássico cult instantâneo. De leva, recebeu 4 indicações surpresas ao Emmy 2019, incluindo Série, Ator e Atriz. Esse ano, o burburinho era maior e Schitt’s Creek estourou a boca do balão no anúncio dos indicados: foram 15 nomeações.
A trama da série é simples. Uma família extremamente rica perde toda a fortuna e acaba indo morar na única posse que o governo lhes permite manter, uma cidade no meio do nada, comprada pelo pai na década de 90, como uma piada no aniversário do filho. Em inglês, existe o trocadilho do nome do local, Schitt’s, se assemelhar a Shit, que significa merda. Localizada no fim do mundo, essa comunidade demora a se adequar às esquisitices dos Rose, e vice-versa. Criada por Eugene Levy e seu filho Daniel Levy (e também protagonizada pela dupla), Schitt’s Creek é uma fábula sobre o amor e sobre o destino.
As seis temporadas brincam com o jeito mimado e egoísta da família que pena para vestir a alcunha da pobreza. O patriarca Johnny Rose (Eugene Levy) é um magnata fracassado, que montou e perdeu um império de videocassete, e a mãe Moira Rose (Catherine O’Hara) é uma atriz iludida. Juntos, eles criaram Alexis (Annie Murphy), avoada e inconsequente, e David (Daniel Levy), que só olha pro próprio umbigo. Os curtos episódios desconstroem as noções e clichês dos desmiolados ex-ricaços, tanto deles dentro das telas, quanto nossos, do lado de fora do monitor.
Johnny Rose é a bondade em pessoa. Generoso e caridoso, o personagem de Eugene Levy é o farol de bom senso da família, e o ator-criador usa de seu carisma infinito para conquistar a nação. Seu papel na trama funciona perfeitamente por contrabalancear algumas forças sobrenaturais da comédia: sua esposa e seu nêmesis/melhor amigo Roland. Interpretado por Chris Elliott, o prefeito da cidade é o bobo do bem. Cheio de tiradas idiotas e uma nojeira comum nos clichês de comédia, Roland foge do ordinário quando demonstra uma benevolência, semelhante à de Johnny, mas em energias opostas. Os homens se complementam, por mais que nunca admitam.
Mas a luz que ilumina Schitt’s Creek é toda energizada em Catherine O’Hara. Velha conhecida de Levy, ela interpreta a personagem mais excêntrica e memorável do Emmy 2020. Moira Rose é delicada, astuta e arisca. Moira Rose é uma clássico instantâneo, um vinho saboroso e uma atriz de renome. E O’Hara pesca todas as deixas e cria suas próprias, seja na entonação que escolhe para se comunicar (be-be), na coleção de perucas enganchadas no quarto ou nas vezes que grita o nome dos filhos.
O’Hara venceu o TCA 2020 na categoria de Comédia e chega como favorita ao Emmy de Atriz Principal. Um lembrete interessante é que ano passado foi Phoebe Waller-Bridge quem saiu vitoriosa no Television Critics Association. Catherine concorre com a antiga campeã Rachel Brosnahan, de Mrs. Maisel, e com a brilhante Issa Rae, de Insecure. A parceria entre Levy e O’Hara não é de hoje, eles possuem bom histórico nos prêmios pois, juntos, faturaram estatuetas de roteiro para especial de variedades, em 1982, por SCTV Network.
Se Eugene Levy já é um ator consagrado na indústria, seu filho Daniel é a grande pérola escondida da série. Irônico em demasia e cheio de peculiaridades, David Rose é um coringa em qualquer baralho. A interpretação de Dan Levy acentua as qualidades do personagem, principalmente ao lado da irmã Alexis e do companheiro Patrick (Noah Reid). O romance LGBT começou na terceira temporada, num contexto da rede aberta canadense, algo inédito para a grade televisiva de lá. Não obstante em colocar protagonismo no casal de homens, Schitt’s Creek em momento algum se preocupa em rotular suas figuras.
Patrick e David vivem sua vida sem pressões ou julgamentos. Schitt’s Creek, o lugar fictício, é uma terra mágica, sem homofobia ou discriminação. Distante dos preconceitos e males do mundo real, a história se cerca de amor, e seus personagens transbordam compaixão. Stevie Budd (Emily Hampshire) passa por uma porção de relacionamentos, mas nunca tem a obrigação de levantar bandeiras. A personagem, que se veste com roupas tipicamente masculinas, é interpretada por uma atriz pansexual. Já Dan Levy é gay, assumido desde os 18 anos, e na vida real parece encontrar o mesmo carinho que provém de sua família da série.
O par de vaso de David é Alexis. A personagem veste a carapuça da patricinha fútil mas é quem mais evoluiu na trama. Os 80 episódios analisam as ações de Alexis sob o microscópio da vida, ela erra, se frustra, chora e levanta a cabeça. No quesito desenvolvimento, a filha é quem mais enriqueceu Schitt’s Creek. Algo semelhante pode ser enxergado na já citada Modern Family, dessa vez sobre Haley Dunphy (Sarah Hyland). A garota, que batalhou para ser levada a sério tanto pessoal quanto profissionalmente, é quem recebe com graça o título de melhor construção e desfecho. Talvez os rótulos de futilidade e burrice sejam inerentes a uma conclusão primorosa, o certo é que tanto Haley quanto Alexis dão adeus às séries muito mais maduras que antes.
A comédia da Pop TV sai na frente em algumas categorias do Emmy 2020. Tanto Melhor Comédia, quanto Melhor Atriz parecem estar no papo. Catherine O’Hara submeteu o capítulo The Incident, onde Moira se atrapalha numa live de rede social. Na disputa de Melhor Ator, Eugene Levy concorre pelo emocionante e tocante The Pitch, ponto de virada tanto para o personagem quanto para a série. Todavia, ele pode ser surpreendido pela zebra Ramy Youssef, astro de Ramy, que já venceu o Globo de Ouro.
Em Ator Coadjuvante, Dan Levy é favorito, mas pode encontrar dificuldades com Mahershala Ali, também de Ramy, e o veterano Tony Shalhoub, que faz Mrs. Maisel. O Levy filho submeteu o final da série, Happy Ending. O episódio de sua irmã na ficção é The Presidential Suite, um desfecho amargo e incômodo para um relacionamento de Alexis. Annie Murphy provavelmente não fechará o quarteto vitorioso de Schitt’s Creek, isso pela força do furacão Alex Borstein, que já ganhou nos últimos dois anos por Maisel e deve gritar tri no domingo.
A series finale, Happy Ending, foi indicada pelo roteiro de Dan Levy e pela direção do próprio ao lado de Andrew Cividino. A submissão de Alexis, The Presidential Suite também está na categoria de Roteiro, com créditos à David West Read. Nas técnicas, Schitt’s Creek concorre por Elenco, Figurino, Edição e Penteado, entre outras, a maioria para o episódio 14, que encerra a série. A temporada final aumentou o número de capítulos para, além de estender a trama, finalizar com propriedade e dimensão a jornada dessa querida família.
Existe quase que um consenso ‘negativo’ rondando seriados mais simples em sua formação e desenvolvimento. Na enxurrada de comédias autorais e mirabolantes, Schitt’s Creek pode ser taxada de boba ou leviana, erro grotesco de quem nunca entrou em contato com as belezuras e a mágica desse lugar no meio do nada, com nome de merda e habitado por pessoas de bom coração.
Premiar Schitt’s Creek num ano tão conturbado no mundo real, cheio de tragédias e medo, é uma atitude louvável, e que recompensa o final feliz, pelo menos no mundo da ficção. Não sabemos o porquê das coisas acontecerem, só que elas acontecem. E pela existência de algo tão singelo, tão singular e tão bondoso como essa série, só podemos ser gratos.