Nada Ortodoxa é reconstrução e celebração

Na cultura dos judeus ultra-ortodoxos, a mulher, pouco antes de se casar, raspa a cabeça como forma de eliminar sinais de vaidade e ‘sensualidade’. O ritual também simboliza recato, modéstia e sinaliza para o mundo que ela é casada, ‘protegendo-a’, assim, dos olhares de outros homens (Foto: Reprodução/Netflix)

Raquel Dutra

Deus esperava demais de mim” responde decididamente Esther Shapiro (Shira Haas) ao ser perguntada sobre o porquê de repentinamente ter deixado sua comunidade judaica ultra-ortodoxa situada em Nova Iorque, evento que inicia Nada Ortodoxa, da Netflix. Apresentando o passado e o presente da jovem que com apenas 19 anos encarava um casamento arranjado e frustrado com Yanky Shapiro (Amit Rahav), a narrativa explora sua profunda sensação de não-pertencimento diante da comunidade onde cresceu e sua conflituosa jornada em busca da sua liberdade.

O pretexto da série já é poderoso por si só, mas o desenrolar dele se revela ainda mais: sem retratar uma quebra com a religião de forma rasa, Nada Ortodoxa (Unorthodox, no título original) escancara as dificuldades externas e os conflitos internos que sua protagonista precisa enfrentar para se tornar dona de seus próprios caminhos. Nessa direção, embora Esty (como é carinhosamente apelidada) não esclareça e diferencie no momento em que verbaliza o motivo de sua partida, ao decorrer dos 4 episódios, a personagem entende a situação e direciona o rumo da narrativa a um lugar interessante e não óbvio em obras que tratam das problemáticas de religiões conservadoras e repressivas. Em alguns casos, como o dela, o problema não é Deus ou a espiritualidade, mas o que religiosos fazem em nome dele e dela, a partir da legitimação da religião. 

O making off da série está disponível na Netflix e mostra o processo de elaboração do figurino e direção de arte, elementos riquíssimos que contribuem para a construção da identidade da história (Foto: Reprodução/Netflix)

Acima de tudo, a minissérie é uma imersão cultural. Gravada principalmente em iídiche, Nada Ortodoxa é carregada de simbologias, rituais e costumes da comunidade Satmar, uma das maiores dinastias judaicas do mundo. Esta a qual Esty pertence foi estabelecida em Williamsburg, na cidade de Nova Iorque, depois da Segunda Guerra Mundial por sobreviventes do Holocausto. Extremamente marcados pelos horrores provocados pelo nazismo, a obediência que o povo tem aos preceitos da religião que a série retrata é permeada pelo medo e pelos traumas, fazendo com que o povo viva sem qualquer contato com o restante da sociedade. 

Essa composição recai ainda sobre outra construção que fundamenta a trama de Nada Ortodoxa e o drama de Esty: a frieza da comunidade. Embora sejam mostrados com riqueza de detalhes, seus retratos não apresentam qualquer relação profunda com o espiritual, elemento fundamental em qualquer religião. Concentrando-se nas questões dogmáticas, os momentos protagonizados pelos Satmar são mecânicos e demonstram uma insensibilidade generalizada para com situação de Esty. E é aqui que reside a maior crítica à série. Segundo membros da religião e até mesmo alguns que deixaram comunidades judaicas ultra-ortodoxas assim como a protagonista, a situação delicada de Esther jamais seria tratada daquela forma na vida real.

Assim, tendo essas nuances em vista, algo que cabe à nós, indivíduos de fora de ambientes culturais já tão estigmatizados social e historicamente, é o cuidado. Antes de tomar conclusões externas, é necessário sempre termos em mente de o que estamos assistindo é uma perspectiva, um recorte. Por isso, críticas sobre a situação não devem de forma alguma se estruturar superficialmente somente sobre a trama. Especialmente quando direcionadas às mulheres que por vontade própria acatam estes preceitos e sentem-se confortáveis vivendo dentro deles. 

A produção é baseada na autobiografia “Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots” (em tradução livre, “Não-Ortodoxa: A Escandalosa Rejeição das Minhas Raízes Hassídicas”) de Deborah Feldman (Foto: Netflix/Reprodução)

Voltando à narrativa, é no berço de todos os traumas que assombram sua comunidade que a protagonista busca sua nova vida: Berlim, na Alemanha. Frequentemente confrontada por memórias do Holocausto, cenários da Segunda Guerra Mundial, lembranças do nazismo e pelo estilo de vida do jovem moderno que até então ela desconhecia totalmente, a escolha deste cenário obriga Esty a admitir e enfrentar seus demônios. 

Além dessa chave interessante para a trama, a escolha pela cidade se dá por mais uma razão: é onde sua mãe, que também deixou a comunidade, vive atualmente. Leah Mandelbaum (Alex Reid) abandonou Williamsburg e um casamento infeliz com o pai de Esty, acometido pelo alcoolismo. Depois de tentar reconstruir sua vida junto da filha e ser barrada pelo movimento Satmar, Leah buscou abrigo em Berlim.

Devagar, Nada Ortodoxa inicia um aprofundamento na relação da jovem com sua mãe, que desde o início foi mínima e distante, intermediada pelos outros membros religiosos de sua família. Em um dado momento da história, depois de muitas dificuldades na cidade alemã, a jovem busca como último recurso a ajuda da mãe. Ambas cientes de que construir uma relação não seria fácil, se revestem de compreensão e apoio mútuo. Nesta altura da série, Esty se transforma na jovem de 19 anos que ela é, se despindo da esposa compulsória que ela tentava ser. Ali é que mora um dos pontos mais tocantes da narrativa, que infelizmente não encontra espaço entre os apenas 4 episódios para ser devidamente aproveitado. 

A valorização que a comunidade Satmar conserva pelo casamento, pela constituição da família e pela fertilidade também é em decorrência dos traumas: sua principal motivação é “repor” as vidas perdidas no Holocausto (Foto: Netflix/Reprodução)

O roteiro de Anna Winger e Alexa Karolinski trabalha com três contextos diferentes: Esty em Berlim, no “presente”; seu passado, antes de fugir; e a comunidade em Nova Iorque debatendo sua fuga e o que farão diante da situação. Com coesão e dosando flashbacks com os momentos atuais, uma curiosidade pelo passado vai sendo criada, assim como pelo que Esty fará no presente. 

Existe ainda um outro elemento que, aliviando a densidade emocional da trama por um lado, tensiona ainda mais por outro. É o suspense que o texto cria, estruturado na personagem de Moishe (Jeff Wilbusch), primo de Yanky que embarca junto para Berlim em busca de Esty. Sua figura inescrupulosa e caótica é totalmente imprevisível, e supera cada vez mais os limites que imaginamos para até onde ele pode ir para cumprir a “missão” que lhe foi dada.

É nele também que estão retratados os privilégios masculinos dentro de uma sociedade profundamente patriarcal. A fuga de Esty é motivo para escandalizar a todos, enquanto Moishe, subvertendo vários preceitos e morais do judaísmo ultra-ortodoxo, não é encarado com a mesma firmeza. Inclusive, passar por cima desses dogmas é algo que o próprio líder religioso faz, permitindo que essas transgressões, junto da personalidade problemática de Moishe, sejam usadas para localizar Esty. Alcoolismo, vício em jogos, frequentes visitas a casas de prostituição… nenhuma dessas violações da moral judaica causam tanta revolta quanto Esty se retirar da religião, e desde que ele traga a jovem de volta, o rabino garante que “Deus o perdoará”.

A estreia de Shira Haas na TV se deu em 2013 com o drama israelense Shtisel, também disponível na Netflix (Foto: Reprodução)

Entre muitas emoções, um sentimento é permanente e irresistível: a esperança que Esty tenha o melhor final possível, construído junto da interpretação da brilhante Shira Haas. Ela convence e constrói sentimentos com o público em todos os momentos: desde a jovem amedrontada se preparando para o casamento, passando pela noiva que tenta se animar ainda receosa e pela esposa infeliz, até chegar na Esty que se permite entender e tentar se encaixar numa sociedade completamente diferente de tudo o que ela conhece.

A construção da protagonista é poderosa pelas nuances que carrega. Mesmo com uma certa distância cultural, alguns aspectos das vivências da personagem podem ser encontradas nas mulheres a nossa volta que tiveram suas vidas, relações e aspirações sufocadas pelas estruturas patriarcais. Lembramos de pelo menos quatro mulheres que conhecemos quando Esty, num momento de desespero, reconhece com uma dor abissal que está sozinha, sem educação formal e sem dinheiro (levantando uma questão muito importante sobre mulheres que permanecem em ambientes violentos e/ou repressivos por dependência financeira). Reconhecemos com pesar que o silêncio das mulheres enquanto os homens discutem entre si, inclusive sobre o destino e paradeiro de Esty, também é universalmente fidedigno à realidade, assim como a reação silenciosa e dolorosa da jovem a um possível estupro.

Não tem jeito, Esty é a dona e proprietária da série (Foto: Netflix/Reprodução)

A atriz por trás da profunda Esty chamou a atenção da Academia Televisiva. Surpreendendo a todos, a jovem israelense teve sua interpretação merecidamente agraciada com a indicação de Melhor Atriz em Minissérie no Emmy 2020, concorrendo pelo título ao lado das brilhantes veteranas Regina King, Octavia Spencer e Kerry Washington. 

Embora já fascinante o suficiente, não foi só a atuação de Shira que colocou Nada Ortodoxa sob os holofotes do Emmy. O roteiro do primeiro episódio, escrito por Anna Winger, concorre pelo Melhor Roteiro em Minissérie e a diretora Maria Schrader marca presença entre os indicados a Melhor Direção em Minissérie. O drama da Netflix também foi indicado a Melhor Minissérie, ao lado de grandes produções como Mrs. America, Unbelievable, Pequenos Incêndios Por Toda Parte e a queridinha para o título, Watchmen.

O que motiva Esty a tomar as rédeas da própria vida é um verso do Talmud, uma coletânea de livros sagrados ao judaísmo. Atribuída ao profeta Hillel, considerado “o menos sentencioso e o mais tolerante” dentre os sábios judeus, a frase “Se não for eu, então quem será? Se não for agora, então quando será?” foi verbalizada em um momento de determinação, quando ele decide ir atrás do que sente ser sua verdadeira vocação. Diferente da interpretação corriqueira que os judeus ortodoxos dão aos versos, Esty os trás para a própria realidade – que curiosamente muito se assemelha a do profeta -, questionando-se: se não eu mesma, quem fará por mim? Se não for agora, quando? 

Isso é uma analogia ao que Esty faz durante toda a história. A jovem, que é a alma e o corpo da minissérie, vai entendendo quem ela é e de que forma sua espiritualidade constitui uma parte importante da sua identidade. Se distanciando da religião sem se abster totalmente da sua fé, encontra nela um refúgio que reafirma um pedaço pequeno e profundo da sua essência, em meio a um cenário hostil, desconhecido e gerador de ainda mais conflitos. Aí é que ela encontra a chave para seguir seu caminho: fazer tudo à sua maneira, respeitando seu passado e reformulando seu presente.

(Foto: Netflix/Reprodução)

Assim como Shira, adoraríamos uma segunda temporada de Nada Ortodoxa para conhecermos mais alguns personagens e permanecer na companhia de Esty por mais tempo. Algumas pontas soltas foram deixadas, mas o ponto principal é finalizado com sucesso, graças à sabedoria e coragem da personagem que abalam algumas concepções nossas e nos provocam a sair de algumas caixinhas.

Por fim, Nada Ortodoxa estabelece um exercício para o espectador também, pois diante dos conflitos de Esty precisamos olhar com calma e entender a complexidade de sociedades religiosas. Assim, enquanto reconstruímos algumas noções de religião, espiritualidade, modernidade e refletimos cuidadosa e respeitosamente sobre a condição de mulheres em religiões conservadoras, celebramos e permanecemos ao lado de todos que das mais diversas formas reivindicam o direito de decidirem sobre suas próprias vidas.

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