Vitor Evangelista
A tarefa de finalizar uma franquia é um tanto quanto ingrata. A trilogia-relâmpago Rua do Medo, lançada em doses homeopáticas na Netflix, chega ao ápice revisitando o passado da maldita Sarah Fier, bruxa, áspera, pecadora. Para isso, a diretora Leigh Janiak retorna ao século dezessete, lar do paganismo, da culpa católica e do núcleo base do terror psicológico: o medo do diabo. Entre a prosa arcaica e o ato de revisitar grandes filmes do gênero, a máquina do tempo de Rua do Medo: 1666 funciona à perfeição. O ontem é vital, mas é no hoje que a porrada come.
O elenco de 1666 escala figurinhas repetidas de 94 e 78, dando espaço para que Kiana Madeira troque peles de Deena para Sarah. A atriz expressa medo e pavor pelos olhos e pelo corpo retraído, inserindo raiva nesse combo premiado. Sob os olhos da pagã da Shadyside, o público é apresentado à história real da maldição e de sua origem. A inspiração mais superficial é a de A Bruxa, filme de Robert Eggers que colocou a cultura colonial e o ato de cagar nas valas de volta ao eixo da cultura popular.
Longe do poético fecho narrativo que a inspira, Leigh Janiak usa e abusa de seu currículo televisivo, filmando sequências episódicas, como mini-capítulos de um grande todo. Essa pegada fragmentada faz a produção da Netflix vibrar em uma energia moderna, por mais que metade desse último filme se passe séculos atrás. Chega a ser recompensador que a diretora use do contexto antigo para contar uma história de amor entre duas mulheres, e as consequências do ato de amar. Rua do Medo: 1666 – Parte 3 caminha em direção ao núcleo conceptivo do horror e sua proximidade com a cultura queer.
Desde as origens literárias de Carmilla, o horror se mostrou fundamentado e correlacionado às pessoas da comunidade LGBTQIA+. Os exemplos são muitos, passando pela criação dos imortais Drácula e Frankenstein e ao Cinema que abraça o enclausurado Doutor Jekyll, chegando aos modernos A Pele que Habito e As Boas Maneiras. Parte do medo do futuro, do receio do mal e da culpa de se tornar um pecador vem da constante perseguição e angústia fomentada nas vivências desses indivíduos. Colocar em tela monstros e maldições como alegorias para o preconceito foi apenas uma das maneiras encontradas para transformar o trauma em arte.
Rua do Medo: 1666 não se enquadra propriamente como o mercado rotula seus ‘filmes LGBT’, mas usa questões clichês a fim de movimentar sua narrativa. O preconceito do século XVII é a força motriz da perseguição da Sarah e sua demonização, assim como a homofobia da mãe de Sam em 1994, o que faz sentido considerando as épocas de ambientação. Quer existisse um Rua do Medo: 2021, é provável que o roteiro de Phil Graziadei, Leigh Janiak e Kate Trefry não cairia na questão já exaustiva de aceitação e identidade, à exemplo de produções recentes como We Are Who We Are e genera+ion.
O simples e direto protagonismo da franquia, com duas mulheres envolvidas romanticamente no auge do preconceito e do descaso midiático e governamental, denota um ponto de destaque de Rua do Medo. Afinal, para a trilogia que se esbalda na homenagem e na memória, revisitando da máscara de Jason à faca ensanguentada de Pânico, e brincando com as convenções do horror, a cereja do bolo só poderia ser abraçar o núcleo da história em pessoas LGBTQIA+. Deena já era uma baita heroína, mas Kiana Madeira brilha mesmo na pele de Sarah Fier. Sem a preocupação em criar uma aura arcaica para a bruxa, a atriz emula a visão de uma para a outra.
O xerife Nick Goode (Ashley Zukerman) se transforma em Solomon na porção final da saga, mas o fedor de impostor permanece imutável. Enquanto o filme desmistifica o muquirano, o público se afeiçoa por Sarah Fier, solidificando sua figura de mártir e injustiçada. O esperado seria uma simples narrativa de limpeza espiritual e da imagem da bruxa, mas Fear Street: 1666 não tem interesse algum em soar esquecível. Fier é sim inocente, mas sua sede de sangue não é silenciada ou repensada como benévola. Puta da vida, a bruxa quer o sangue de quem a amaldiçoou.
Bruxa no sentido não-literal da palavra, já que de feiticeira a jovem não tinha nada. Seu caráter sobrenatural vem da figura de lenda e de maldita, perseguida por amar a filha do pastor, Hannah Miller (papel da apagada Olivia Scott Welch). A química entre Welch e Madeira é mínima quando comparada à das irmãs dos anos setenta, mas a forte presença de cena da protagonista dá conta do ritmo nunca se perder (e olha que a abrupta divisão entre 1666 e 1994 deixa o último filme com um rombo narrativo que jorra sangue demais). Quando retorna para os anos noventa é que Rua do Medo arquiteta a arapuca final.
A solução conclusiva é simples, mas bem realizada. O shopping manchado de sangue Thurman que abre a trilogia é revisitado em seu desfecho, colocando Gillian Jacobs (o destaque absoluto de toda essa empreitada da Netflix) frente a frente com o seu bendito passado. A atriz, conhecida por Community, Love e por dublar a Atom Eve em Invencível, é uma das vigas de sustentação de Rua do Medo, muito ao fato da escalação sublima de Sadie Sink para lufar vida à versão jovenzinha da ex-ruiva.
Entre maldições, mãos decepadas, homenagens às vísceras do horror e muita cultura queer em tela, a trilogia Rua do Medo entrega à 1666 uma conclusão sóbria, morna e nada alegórica: nunca duvide de mulheres fortes nem confie em alguém que tem ‘bem’ no nome! A cena pós-créditos instiga uma continuação, e, considerando que a série de livros de R.L. Stine se alonga além dessa viela amedrontada, não será uma surpresa se a Rua se transformar em Avenida, Cidade, Estado ou País do Medo.