Nathália Mendes
Live. Werk. Pose. Essas três palavras falam por si só. Sozinhas elas ganham vida, invadem os ouvidos na voz inesquecível de Pray Tell, se entranham no coração e acendem uma luz que ilumina e aquece cada parte do corpo, dos fios de cabelo aos dedões do pé. Nada mais é capaz de explicar uma série como Pose, porque ela não foi feita para ser descrita, mas para ser sentida.
Coube à Blanca Evangelista (Mj Rodríguez) e sua família performar uma história real e sofrida de forma belíssima por 3 temporadas – uma década no tempo da trama. Até seu último episódio, a narrativa manteve o equilíbrio entre a tragédia da epidemia de AIDS dos anos 90, e o relato mais puro e belo da comunidade queer dentro dos ballrooms de Nova York. Assim, Pose contou a história da vida de pessoas que a sociedade não quer enxergar, de seus amores à suas dores, e por isso é tão forte e arrebatadora.
Para o seu final, cada personagem ganhou relevância e um desenvolvimento individual. Seus passados são contados para costurar um desfecho enfim, e merecidamente, feliz. Pose ilustra a rede de apoio que a comunidade LGBTQIA+ possui uns nos outros, elucidando o valor da família Evangelista, que nasceu no ballroom e persiste com amor e luta. Sua temporada final fala, acima de tudo, sobre amor e pertencimento, mas não marca o fim e sim uma vírgula na história lendária da série, que concorre em 5 categorias principais e outras 5 técnicas na premiação mais importante da TV.
Com Angel (Indya Moore) e Papi (Angel Bismarck Curiel) noivos e de casa nova, e o filho favorito Damon fora de cena, – pois o ator Ryan Jamaal Swain, que o interpreta, saiu da série após perder a irmã – a Mãe Blanca começa sua última temporada longe da família, mas não sozinha. A protagonista agora auxilia na ala hospitalar que cuida de pacientes com AIDS, isso após quase morrer pela doença no final da segunda temporada, enquanto mantém um namoro com um dos médicos e começa sua caminhada rumo à se tornar enfermeira.
O distanciamento da Casa Evangelista foi necessário para que todas as personagens caminhassem com as próprias pernas, e nessa batalha solo percebessem o quão era necessário ter sua família por perto. Também foi a partir dessa premissa que Pose fez, como sempre, uma de suas artimanhas mais brilhantes: pautar conversas necessárias e delicadas, a partir da vida e dos acontecimentos de suas personagens. Nesse caminho, Pray Tell (Billy Porter) se afunda no alcoolismo com o avanço de seu quadro soropositivo, e a família se une para intervir.
Pray descobre ter um câncer em decorrência da AIDS e vai para a casa de sua mãe e suas duas tias. É a primeira vez que o passado e a família biológica dele fazem parte do roteiro, e contam sua infância angustiante dentro da Igreja. Mesmo não tendo uma trama imprevisível, a atuação de Porter a torna vívida. O palco é inteiramente dele ao colocar os pés na igreja que cresceu após anos, e cantar This Day de Whitney Houston, sentindo a letra que vê um dia de vida como oportunidade de amar o próximo.
Não há atuação aqui: cada pedaço do ator naquele momento vive Pray Tell com todas as forças. Desde que revelou ter HIV, Billy Porter esteve ainda mais conectado com seu personagem. E é um prazer poder estar do outro lado assistindo. O ator já havia sido reconhecido por sua grandeza ao ganhar o Emmy de Melhor Ator em 2019, com a primeira temporada de Pose. Ele foi o primeiro homem assumidamente gay a ganhar a categoria e em seu discurso – um dos mais fortes que a premiação já viu – agradeceu poder estar ali, vivo, afirmando seu direito de também ocupar aquele palco.
Parece óbvio que atrizes e atores sejam cotados para papéis que compartilhem de suas histórias, mas não para a Indústria que já colocou Eddie Redmayne para viver Lili Elbe – uma das pioneiras na luta trans – em A Garota Dinamarquesa. Como já dito por Viola Davis quando ganhou o Emmy em 2015: não há como ocupar papéis que não existem; e agora que existem, devem ir para artistas correspondentes. Seja com o maior elenco de pessoas trans ou pautando a exclusão familiar de mulheres da comunidade, é Pose quem monta um legado sobre representatividade.
O diferencial para a última temporada foi mostrar a representatividade longe dos holofotes, como ao construir uma família. Além disso, a série aborda em mais de um momento, a problemática da comunidade LGBTQIA+ não se sentir digna do amor. Para Elektra (Dominique Jackson), um episódio inteiro é dedicado à sua história e a pautar a exclusão do núcleo familiar. “Você nunca irá me enxergar de verdade” grita a personagem para a mãe (Noma Dumezweni) enquanto recolhe seus pertences pelo chão e vai embora. Ela sai da casa da mãe biológica sem nada, excluída da sociedade e da única ligação familiar que possuía.
Em meio à prostituição e aos ballrooms, Elektra sobrevive até conseguir criar sua própria e lendária Casa, e assumir para si o papel de Mãe. Sua exclusão a levou a querer ocupar o mesmo vazio familiar para outras pessoas. Quando se tornou matriarca na comunidade dos ballrooms, ela continuou lutando – até virar empreendedora e mafiosa na última temporada – para dar tudo o que podia para seus filhos. Sua reivindicação em ser enxergada é um exemplo da representatividade em Pose que contribui para a autoestima de pessoas queer.
Com Angel, a forma de abordar a exclusão foi a partir do acreditar ser indigna de se casar e ter uma família dos sonhos. No meio da terceira temporada e de casamento marcado, Papi descobre que tem um filho de 5 anos cuja mãe morreu. Ali morava o que parecia ser impossível para uma mulher trans nos anos 90, e algo que nunca havia acontecido na comunidade do ballroom: a possibilidade de uma família reconhecida pela sociedade. Logo antes da cerimônia, Angel vê Candy (Angelica Ross) – que morreu na segunda temporada – e conta seu medo em não ser digna de ter a vida dos sonhos, pois não seria justo que apenas ela, dentre tantas meninas trans, pudesse ser mãe.
O casal ganhou uma festa luxuosa bancada por Elektra, mas através do amor de Angel e Papi que reconforta o coração, Pose vai além. O casamento possui uma representação enorme para as mulheres trans da comunidade, é uma afirmação de que elas podem ser amadas, e para transmitir essa mensagem, todas usaram vestidos de noiva na cerimônia. Por isso, a série é brilhante na forma com que faz representatividade. Sua abordagem é incomum no mundo do Drama e transcende a mera problematização. Esse caráter é um presente, pois nada melhor do que combater a exclusão mostrando que há como superá-la.
Só por existir, um marco na Indústria da TV já havia sido feito por Pose, visto que o produtor Steven Canals demorou a achar espaço para dar vida a seu roteiro. Mas a série que afirma a existência das pessoas LGBTQIA+ não-brancas, e suas vidas como dignas de serem a pauta principal, chegou ao Emmy já na primeira temporada com a vitória de Porter. Na edição 2021, a história foi feita com Mj Rodríguez sendo a primeira mulher transexual indicada para Melhor Atriz em Série de Drama.
Michaela Jaé merecia o tapete vermelho desde a primeira temporada. Blanca Evangelista era essencial para que a série funcionasse de fato, pois é o vínculo que unia a trama de toda a série. Sua personagem é a tradução explícita do que Pose significa: todas as faces de uma pessoa complexa e contraditória, cheia de perseverança e vendo o mundo com alegria e tristeza. E Mj viveu sua protagonista com muita paixão e verdade.
A atriz mostrou que, assim como com ela, a caminhada de Blanca para ser enxergada no mundo foi árdua, mas colorida e amorosa. O que ela criou com sua Casa foi essencial para mostrar as pessoas geniais que estão em lugares de exclusão. Desde o início, o empenho de Blanca foi trabalhar a autoestima de seus filhos, sempre lembrando-os que eles eram suficientes para conquistar um futuro. E a terceira temporada chegou para contemplá-los, inclusive a Mãe Blanca, com acontecimentos melhores.
Mesmo que a indicação de Mj ao Emmy 2021 tenha sido histórica, o fato é mais um passo de uma longa caminhada para a inserção de pessoas trans em toda a sociedade. A própria premiação não quis enxergar o elenco transexual de Pose, provando que os anos 80 da trama e 3 décadas depois não estão tão distantes quanto parecem. Mj e Indya já haviam dito à MTV em 2018, no início da série, que a trama não seria o suficiente. Se mostrar a vida sob as lentes da comunidade queer não foi o bastante para o reconhecimento, que dirá para deixar a luta.
Steve Canals também reconheceu ao The Hollywood Reporter que esperava um cenário muito melhor na TV ao final de Pose. Para ele, a série sempre teve a função de contar o sofrimento e a resiliência dos antepassados para que a comunidade LGBTQIA+ chegasse onde está hoje. E de fato, isso se traduziu na fidelidade da trama com a realidade, a começar pelo envolvimento das personagens com a ACT UP já na segunda temporada.
Os episódios finais mostraram um dos períodos mais fortes de protestos em Nova York contra o Governo Americano e o seu desprezo pela vida das pessoas soropositivas. Nesse momento da trama, Pray Tell já está com seus dias contados pelo avanço da AIDS, e a única esperança aparente é o ensaio clínico do coquetel-HIV. A inacessibilidade de pessoas não-brancas ao estudo é pautada, e Pose mostra a luta do elenco tanto nas ruas, com a ACT UP, quanto dentro do hospital, até Blanca e Pray serem incluídos nos testes.
Após a reconfortante melhora de Pray, a série segue seu caminho de volta para casa: os ballrooms. Com uma trilha sonora afiada de ícones pop dos anos 80 e 90, Pose manteve sua fidelidade na trajetória histórica da Música desde a primeira temporada. Em seu final, a trilha foi minuciosa para, no penúltimo episódio, ao som de Diana Ross, nos proporcionar uma das mais emocionantes cenas da TV. Ain’t No Mountain High Enough poderia ter sido escrita especialmente para Pray e Blanca declararem um ao outro sua amizade que transcende a vida.
A cena é uma performance no “Refrão Doce da Candy”, categoria de dublagem do ballroom realizada como um tributo à personagem Candy, e tem direito à coreografia com chuva, uma superprodução e muito glamour. A conexão de ambos é fortíssima para formar algo autêntico e emocional, junto à letra de Diana sobre o amor que supera todos os obstáculos. Tudo cantado por Pray nas entrelinhas – como em “apenas chame meu nome, eu estarei lá rapidamente” – para o que viria a ser o seu último, e lindo, dia de vida.
Em Pose, a morte, assim como a vida, é complexa. Não por ser dramaticamente triste, mas por se fazer presente. A morte é um lembrete. Tendo um enredo que se iniciou com a protagonista soropositiva – e mais outras personagens no decorrer – era lógico e esperado que viria uma morte. Para os espectadores, isso se traduziu em assistir suas personagens favoritas definharem, sempre à beira do precipício, entre a alegria do ballroom e uma cena seguinte dentro de um hospital.
Mas nada é de fato lógico para seu enredo complexo, fiel à realidade e semeador de esperança. E o último episódio da série veio com uma lição sobre sacrifício pela sua comunidade. Na luta contra a escassez do tratamento contra a AIDS, Pray morre para dar a Ricky (Dyllón Burnside) seus remédios e a chance de viver. Mas ele segue presente até o último momento quando Blanca olha a nova geração do ballroom e recita as palavras que um dia escutou dele: “é por eles que você continua”.
Pose aproveitou suas únicas 3 temporadas para falar sobre as mais diversas faces do mundo e das pessoas. Isso é uma série, um elenco e uma produção que faz história. Numa verdadeira tradução da vida, seu final costurou um desfecho dolorosamente feliz para suas personagens, e a mensagem de que a comunidade LGBTQIA+ merece viver seus sonhos. Como Billy Porter disse ao receber seu Emmy em 2019, a categoria é amor. Nenhuma outra coisa teria chegado até aqui.