João Batista Signorelli
Sair da casa dos pais é um acontecimento natural em qualquer lugar. O evento pode vir acompanhado da sede por independência, da síndrome de ninho vazio, de saudade ou alívio. Alguns mudam de cidade, estado, país, saindo para trabalhar, estudar, ou se casar, com consentimento dos pais ou às escondidas. Em Pegando a Estrada, longa de estreia de Panah Panahi exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, vemos uma família lidando com a partida do filho mais velho, mas em circunstâncias nada costumeiras ou desejáveis.
O sobrenome do diretor não é por acaso: Panah é filho do renomado Jafar Panahi, importantíssimo cineasta iraniano, que foi destaque na 44ª Mostra com um belíssimo curta documental. Seu filme abre no espírito de um road movie bem-humorado com pinceladas melancólicas, aos moldes de Pequena Miss Sunshine. No carro: mãe, pai, um filho já adulto, outro ainda criança, além de um cachorro. Não sabemos seus nomes, de onde estão vindo, ou para onde vão.
A criança tagarela (Rayan Sarlak) fala com um vocabulário elaborado e a autoridade de um adulto. Acompanhando no banco de trás, o pai (Hassan Majuni) de perna engessada perde completamente a autonomia e a autoridade devido à sua limitação física. Já a mãe (Pantea Panahiha) sente paranoia ao pensar que estão sendo perseguidos, enquanto o filho (Amin Simiar), que dirige ao seu lado, pouco fala, e mesmo quando diz que vai fugir para se casar, carrega em seus olhos úmidos um mistério a ser descoberto. O cachorro, adoecido, sorri para o que podem ser suas últimas horas de vida.
Acompanhando a família nessa jornada estão as vastas paisagens semi-desérticas belamente capturadas pelas lentes pelo diretor de fotografia Amin Jafari. Além disso, o vencedor da Competição Oficial do Festival de Londres traz um fascinante trabalho de câmera realizado dentro do carro. Capturando longos planos de diálogos, Hit The Road coloca o espectador dentro do veículo com os personagens construindo um vínculo desde a primeira cena, onde a câmera conduz o olhar do público com movimentos suaves para apresentar o automóvel por dentro, e as pessoas que ali viajam.
Apesar de não ter um protagonista único, o modo como o público entra na viagem sem saber o destino o coloca em uma perspectiva muito semelhante a do menino, pequeno demais para entender o que está acontecendo. Ainda que ele se esforce para parecer mais velho com seu modo de falar rebuscado, ele ainda vive em um mundo inocente de imaginação de uma criança. Logo na cena de abertura, quando vemos e ouvimos o garoto tocar com precisão as notas de um piano imaginário desenhado no gesso de seu pai, também enxergamos e escutamos uma pequena amostra de sua capacidade imaginativa e sonhadora, afinal ele é o único naquele automóvel que não precisa do aparelho de rádio ligado para ouvir e sentir uma música.
O roteiro, também assinado pelo diretor, apresenta algumas situações hilárias, que parecem surgir completamente ao acaso: um celular trazido às escondidas pelo menino mais novo escondido no “quentinho” de sua cueca, as tentativas do pai de recolher uma lata de refrigerante amassada na estrada, ou um ciclista que se acidenta ao interagir com a criança no carro. Para além de seu potencial cômico, o texto é inteligente ao apresentar interações diferentes entre os quatro membros daquela família conforme eles param na estrada, dando espaço para diferentes dinâmicas em dupla que não seriam possíveis caso todos estivessem sempre em cena. Os momentos de intimidade despertam um clima de despedida iminente, e conforme a atmosfera cômica e aleatória dos minutos iniciais se esvazia, percebemos que a viagem acontecia por razões muito mais sérias do que poderíamos pressupor.
Conforme o destino se aproxima, um clima de urgência toma conta de Jaddeh Khaki, e mesmo que os aspectos clandestinos das circunstâncias apresentadas sejam descobertos, nunca é revelado o exato porquê daquele afastamento forçado estar acontecendo. Mas a explicação se mostra desnecessária, pois as imagens já dizem tudo. O momento climático da despedida se desenrola a dezenas de metros da câmera, que testemunha com frieza os minúsculos indivíduos vivendo o seu calvário. A impossibilidade de um olhar fisicamente próximo na hora mais difícil daqueles dos quais nos aproximamos depois de uma hora apertados em carro, cria um dos momentos mais dolorosos que o Cinema recente poderia conceber.
Um prego ainda mais penoso talvez sejam os esforços daqueles que sabem o que está acontecendo – os pais – em proteger o pequeno daquelas tribulações, vestindo uma máscara de alegria para maquiar aquelas aflições. Afinal, estaria aquele menino que ainda enxerga animais nas formas irregulares das montanhas, e não entende o problema de desenhar com caneta permanente no vidro do carro, preparado para entender a dor que é ver alguém partir talvez para sempre? Para algumas pessoas pode ser mais fácil do que outras. Alguns saem de casa para trabalhar, estudar, ou se casar. Outros, para permanecerem vivos.