Eduardo Rota Hilário
“Senhores, em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde!”. Repleto de exclamações, minúcias descritivas e momentos reflexivos, o livro Noite na Taverna nasceu postumamente, em 1855 – cerca de três anos após a morte da mente brilhante que o criou. Escrita sob o pseudônimo de Job Stern, a obra de Álvares de Azevedo, grosso modo, acompanha uma noite de bebedeira e boemia entre Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann, cinco conhecidos personagens da Literatura brasileira. Ambientada em uma libertina taverna, espécie de bar da época, não tarda nessa novela o surgimento das narrativas mais absurdas, tétricas e bizarras.
Os adjetivos não são exagero. Pouco a pouco, somos convidados a conhecer um universo de crimes e vícios, onde necrofilia, assassinatos, suicídios, antropofagia, sequestro e incesto são realidades recorrentes. Mas antes que se aplique uma lente condenatória, moral e ética sobre o autor, é preciso conhecer a geração na qual ele estava inserido. Ultrarromântico, Álvares de Azevedo fez parte da gama de escritores influenciados por alguns nomes estrangeiros, tais como Lord Byron, Goethe, Alfred de Musset e Edgar Allan Poe. Com características em comum, esse grupo do Romantismo encontrava na Literatura certos mecanismos de escape para fugir da realidade na qual o mundo se encaixava durante parte do século XIX.
Também conhecida como geração do Mal do Século, essa vertente de artistas vivia um pessimismo extremo em relação ao passado e ao futuro, tomada por uma espécie de enorme desamparo. Melancólicos, os escritores ultrarromânticos alimentavam suas obras com ambientes noturnos, situações fantásticas ou macabras, atmosferas oníricas, misticismo, idealizações e muitos outros elementos frequentes, como figuras pálidas e amores difíceis ou impossíveis. Portanto, ao desenvolver uma prosa gótica em Noite na Taverna, profundamente inspirada por ares europeus, não é de se espantar que Álvares de Azevedo traga à tona o que há de pior no ser humano, confirmando um espírito artístico da época.
Ultrapassadas as primeiras elucidações, ainda é preciso ter em mente que classificar este livro como uma coletânea de contos não é uma escolha muito adequada. Nesse enquadramento limitante, ignora-se completamente a continuidade, isto é, o universo único e permanente que guia todas as divisões de Noite na Taverna. Considerá-lo como uma “novela moldura” talvez seja a melhor saída em relação à estrutura da obra, já que as diferentes narrativas têm, de fato, alguma independência entre si, ao mesmo tempo em que são costuradas por mais de uma semelhança. Na verdade, o que realmente importa é conseguir enxergar, antes de qualquer coisa, a inteireza existente em torno de toda a criação.
Dito isto, um dos primeiros destaques que merecem atenção na escrita de Álvares de Azevedo é a atmosfera ébria que se constrói de acontecimento em acontecimento. “Ao vinho! ao vinho!”: em alguns pontos da ficção, estamos nós mesmos febris na mesma taverna dos protagonistas. Com tanta intimidade, logo percebemos ser o vinho um dos elementos centrais de toda a noite. Não exatamente por facilitar as confissões criminosas – não só por isso, pelo menos -, mas por originar o clima em que “frágeis são as fronteiras entre o real e a fantasia”, como já bem descreveu a professora Célia A. N. Passoni. Ou, nas palavras do próprio autor, durante a narração do boêmio Bertram: “Quantas horas, quantos dias passei naquela modorra, nem o sei…”
Meio contraditório, no entanto, é notar que, numa quase competição entre os cinco homens – para ver quem conta a memória mais trágica e macabra -, os horrores descritos são muito reais, no sentido de passíveis de acontecimento. Exagerados, sem dúvida, mas ainda assim possíveis de acontecer. Álvares de Azevedo desdobra o real, aproveitando-se de imoralidades para, ao mesmo tempo, fugir do mundo concreto e expor faces desagradáveis – mas verídicas – da humanidade. Através do assombro, um de nossos mais importantes poetas e escritores comprova que nem só de demônios e fantasmas constituem-se as histórias mais assustadoras.
“Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça… Era Nauza, mas Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não era aquela estátua alvíssima de outrora, as faces macias e o colo de neve… Era um corpo amarelo…”
Repetições como “A noite era escura” e “A noite era escuríssima” deveriam ser encaradas não como falhas de composição, mas como recursos de ambientação muito bem absorvidos de obras estrangeiras. Algo semelhante acontece com a preferência de Álvares por ambientes cemiteriais: “Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal”. Neste paradoxo do limite entre realidade e delírio, de um horror quase nada sobrenatural, os símbolos do mundo concreto não são menos interessantes do que qualquer paranormalidade para um fim de tensão. Até mesmo os piratas, apresentados na narração de Bertram, parecem justificados e, mesmo que inventivamente, necessários e viáveis à história.
Por falar em ambientes cemiteriais, seria interessante resgatar diferentes textos do mesmo escritor, tendo como finalidade a comparação. Isso porque, em outra célebre obra, o poema Lembrança de Morrer, a “floresta dos homens esquecida” e a centralidade da morte, assim como o tédio da vida, são presenças igualmente marcantes, reafirmando aquelas particularidades ultrarromânticas já mencionadas, e justificando a escolha de Álvares de Azevedo como maior representante dessa vertente no Brasil. Quando tratamos, porém, de devassidão, provavelmente nada tenha superado, em toda sua produção, a inigualável Noite na Taverna.
Em aspectos mais técnicos, é evidente que as descrições adjetivadas e extremamente idealizadas deste livro são tipicamente românticas. A “beleza plástica e harmônica, linda nas suas cores puras e acetinadas, nos cabelos negros e a tez branca da fronte, o oval das faces coradas, o fogo de nácar dos lábios finos, o esmero do colo ressaltando nas roupas de amazona”, descrita por Claudius Hermann, é um exemplo magnífico de como era grande parte das criações de todo o movimento romântico. E pobre de quem rejeita esse tipo de escrita, tendo em vista a clareza e concisão: apesar dos exageros, é essa forma de construção uma das mais poéticas possíveis de todos os tempos.
Para além de tudo isso, um obstáculo que se coloca em Noite na Taverna é o excesso de erudição. No primeiro capítulo, por exemplo, chamado Uma noite do século, somos imediatamente avisados de que não mergulharemos em mais uma noite de bar qualquer. Pelo contrário, já que as personagens daqui são verdadeiros intelectuais, e a cena que se desenvolve – uma introdução? – a partir dessa reunião é uma das discussões mais filosóficas de toda a Literatura feita em Língua Portuguesa até hoje. Não à toa, Machado de Assis analisou criticamente – e em desaprovação – esse ponto ora positivo, ora negativo. Decerto, gostando ou não, o que para uns é defeito, para outros pode ser um deleite.
É inegável que Álvares de Azevedo tenha tentado replicar sua própria intelectualidade nesta obra. Da Bíblia ao ídolo Byron, de Prometeu e Mefistófeles à “ciência de Gall e Spurzheim”: a – por vezes estruturalmente temida – Noite na Taverna é impregnada de referências implícitas ou explícitas do início ao fim. Por isso, não pense duas vezes antes de considerar ler uma edição com notas de rodapé. Além de excelente ideia, é o jeito mais fácil de captar a maior parte do referencial artístico e intelectual de um escritor que, pasmem, morreu aos 20 anos – provando-se um prodígio em muito daquilo que propôs realizar.
Certo é que, com um Bertram que chora de saudades da mulher amada no velório do próprio pai, alimenta-se do corpo de um colega em alto mar, ou com um Johann que desonra a própria irmã, Noite na Taverna talvez tivesse sido um escândalo ainda maior se publicado durante a vida de Azevedo. Livro e autor que não estavam de brincadeira já no século XIX, ambos talvez não imaginassem que o tratamento desumanizado proveniente das personagens masculinas em relação às mulheres – principalmente às prostitutas e taverneiras – refletiria por tanto tempo aspectos hipócritas e preconceituosos de nossa sociedade: infelizmente, a visão de “mulheres perdidas” ainda paira bastante nos mais diversos ares.
“O velho tirou do bolso um embrulho: era um lenço vermelho o invólucro: desataram-no: dentro estava uma caveira.”
Se há essa carga universal nos textos de Álvares de Azevedo, logicamente haveria um afastamento daquilo que, já na época, era considerado “mais brasileiro”. Os nomes estrangeiros das personagens, as localizações geográficas predominantemente – se não totalmente – europeias, os costumes, roupas, ambientes e climas indicavam, de fato, uma expressão artística que parecia tudo, menos Literatura brasileira. E não é de se espantar que já tenham imaginado Azevedo como “nosso Poe”: ao mesmo tempo, uma honra, pela grandeza do escritor norte-americano, e um aprisionamento, porque reduz a originalidade de um ícone nacional.
Carregando esses elementos, Noite na Taverna é a possível síntese de uma busca pela universalidade através da lapidação de nossa língua. Com todas as alternativas que o Português nos oferece, no sentido de planejar o ato de escrever – isto é, de saber como se quer escrever -, esta obra é essencialmente brasileira. E não há mal algum em se lembrar de Byron e Poe quando o assunto é horror ou texto gótico. A realidade, no entanto, é que Álvares de Azevedo também merece um cantinho na memória de cada um, principalmente dos leitores conterrâneos. Em 1855, foi ele quem nos possibilitou uma imensa troca com o mundo, introduzindo nacionalmente alguns autores estrangeiros. Mais do que isso: ele ampliou imensamente o potencial rico e múltiplo de nossa própria Literatura.