Caroline Campos
Por Poseidon, Medusa foi violentada. Por Atena, foi castigada, seus cabelos viraram cobras e seu olhar se tornou mortal. Por Perseu, a já criatura foi decapitada e transformada em arma de guerra. Pela História e pela Arte, foi vilanizada, perseguida e satirizada. Mas, no Brasil de 2021, Medusa foi a escolhida por Anita Rocha da Silveira para intitular seu segundo longa-metragem, que, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, honra, com moldes trágicos e atuais, a trajetória da bela sacerdotisa amaldiçoada.
No filme, a violência também não se esconde pelos cantos. Misturando mito e realidade, a diretora insere os traços do conto grego em uma pequena cidade sem nome, onde um grupo de mulheres puras e devotas saem todas as noites com máscaras brancas para espancar pecadoras que se desvirtuam dos princípios da moralidade. Quando o dia nasce, as máscaras são substituídas e a quadrilha cristã sobe ao palco da Igreja para cantar sobre as virtudes de ser uma mulher submissa a Jesus.
Ao longo de Medusa, Silveira nos põe lado a lado com Mariana, uma das jovens justiceiras que passa a repensar seu papel no clã de Michele e as Preciosas depois que tem seu rosto desfigurado pela mulher a quem estava agredindo. Interpretada pela xará incomparável Mari Oliveira, Mariana vai gradualmente se descolando da narrativa reproduzida incessantemente por aquela pequena comunidade conservadora, que reprime os prazeres carnais femininos e vigia a ferro e fogo o comportamento das mulheres ditas puras.
Decidido, o filme da carioca não mede caracteres no roteiro para afrontar, com ares fantásticos, a hipocrisia religiosa e o discurso machista que trancafia mulheres em torres de vigilância, ensinadas a manter sempre o olho umas nas outras. Com pinceladas de verde neon conduzidas por João Atala, Anita Rocha da Silveira desenha o caminho de sua protagonista rumo à liberdade, transitando entre gêneros e cutucando, a todo momento, a própria veia cômica diante da bizarrice evangélica que cria.
Ainda assim, entre mulheres e meretrizes, é Melissa quem norteia a narrativa de Medusa e como Medusa. A jovem atriz – uma pequena e potente participação de Bruna Linzmeyer – que, há anos, havia sido atacada por uma mascarada misteriosa, flutua de mãos dadas com Mariana ao longo dos 127 minutos de produção. É na personagem que a diretora insere sua dose mais generosa de horror, a tratando como uma criatura culpada que precisa ser buscada e exibida em toda a sua monstruosidade – “é isso o que acontece com vagabundas, doce Melissa”.
Na busca pelo fantasma da desaparecida, Mariana encontra os clamores da tentação, mas também se depara com a necessidade de sair do coma cultural a que foi submetida. A parceria com Michele, vivida vorazmente por Lara Tremouroux, é o ponto final que a trama precisa para subverter as várias faces da opressão patriarcal e, finalmente, gritar. Pois saia para lá com seu exército de dominadores. Estamos putas da vida e nem Jesus Cristo em pessoa vai nos impedir.
Tendo em mente a Pátria Amada, Brasil, é perigoso classificar Medusa como uma distopia, pois o termo, em sua raiz, sugere um “lugar hipotético”, “fora da realidade”. Exageros e alusões à parte, o filme de Anita Rocha da Silveira pode dialogar muito bem com o cenário político-religioso que a jovem e frágil democracia brasileira se enfiou nos últimos anos. Com o assentamento de um neopentecostalismo nocivo e preconceituoso na cadeira do Executivo, há muitos Pastores Guilherme com mais controle do que o mito do Estado Laico permitiria.
Vindo de uma estreia mundial na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes, Medusa aterrissa na Mostra de SP para consagrar Silveira como uma potência criativa e ousada do Cinema nacional. Sem mais saco para as falácias conservadoras e caretas, o longa é uma coreografia macabra e excessiva que serpenteia em cima das amarras do patriarcado e do seu autoritarismo brega e petrificado. Ora, que dancemos sem máscaras e de mãos dadas pela noite das florestas, afinal, o M de Medusa é também o M de Mulher.