Vitor Evangelista
Uma coisa é certa: a experiência da pandemia no Brasil é diferente de qualquer outro lugar do globo. Seja pelo descaso governamental ou pelo descuido populacional, enfrentar o isolamento social em CEP nacional é doloroso, desolador e qualquer antônimo de alegria que comece com a letra D. É claro que Matheus Souza não ia deixar esse caos coletivo viver apenas no mundo real, resolvendo catapultar a angústia de estar quarentenado e, para piorar, apaixonado, desapaixonado e em algum lugar perdido entre os dois.
Me sinto bem com você, assim, direto, é o título que abrange 5 microcontos, relacionando o afeto, o desafeto e a neurose que habita a mente de quem não sai de casa desde março do ano passado. O próprio diretor e roteirista protagoniza o mais sincero dos excertos, ao lado da produtora, cantora, ex-BBB e musa Manu Gavassi. Eles vivem um não-casal, separados há anos, mas ligados por aquele fio invisível tema de tantos poemas e poesias de adoração que lemos por aí.
A artista já é acostumada com a bregueira do amor eterno, compondo desde muito moça sobre Garotos Errados, áudios de desculpas e até sobre a ausência sentida na hora de acordar longe do bem amado. Sua escalação no papel de Adriana cabe perfeitamente, visto que ela emula uma característica persona online quando desata a explicar os monstros que saem de seus pesadelos e fazem morada no bloco de papel. O brega é artifício para polir o emocional: são as metáforas de Instagram que ganham vida pelos lábios e telas de Me sinto bem com você.
Filmado em apenas um mês, com os atores socialmente distanciados e montado com telas divisórias do mundo virtual, o longa de Matheus Souza abusa e pesa a mão no roteiro, espremendo sentimento e emoção de si mesmo e de Gavassi. Ela, loira descolorida e com toques de sua ‘personagem’ da casa do Projac, não se deixa ser anulada ao admitir o frágil estado mental de sua Adriana, uma jovem de vinte e tantos anos, perdida, deslocada e que sente falta do ex, fã da DC que tem o sonho de dirigir um filme do Lanterna Verde.
Esse tal DCzete tem uma relação próxima com a mãe, personagem de Priscilla Rozenbaum, que só aparece nas chamadas cortadas pelo Wi-Fi ruim, mas rouba a cena e imprime o ar millennial que os filmes de Matheus Souza pulverizam. Não se engane, os demais núcleos gritam ‘BINGO!’ no teste do jovem adulto, mas é a mãe idosa de Tom, recém-assumida bissexual, que oferece os conselhos mais modernos de Me sinto bem com você.
Falando na modernidade, Souza reescala Clarissa Müller, depois da jovem martelar sem dó o coração do mundo na pele da descuidada Cecília, de Ana e Vitória. A atriz, ainda surfando na onda de ser complicada e perfeitinha, interpreta uma influencer em um relacionamento com outra mulher. Muito mais que apenas representatividade barata, o núcleo das garotas é o menos carregado emocionalmente, servindo a leveza necessária para que a mais de uma hora e quarenta não se prolongue emocionalmente.
Entre amor líquido, relacionamento aberto e litrão, há espaço para que Thuany Parente e Bel Moreira lidem com o luto. As irmãs, profissionalmente frustradas, se animam em chamadas de vídeo que vão desde jogos de mímica, passando por ideias de filmes que a irmã cineasta joga para o ar, chegando até as lembranças da falecida mãe. O sensível tato provido ao delicado tema é conforto para a dor da pandemia. Me sinto bem com você consegue encapsular a série de emoções que submergem àqueles isolados, e distribui bons arcos para seus personagens, laçando um misto de representação fidedigna ao mundo real com a sensação de ser ouvido, mesmo que esse ouvinte seja o layout preguiçoso do Prime Video.
Diluindo o clima com o humor do casal Thati Lopes, cria do Porta dos Fundos, e Victor Lamoglia, outro ator reescalado de Ana e Vitória, a direção de Matheus Souza não reduz os comediantes à piadas vazias, entregando sequências abarrotadas de ressentimento e de uma familiaridade que vem daqui de fora. Cheia da intimidade que dá veracidade à relação, a dupla (que namora na vida real) está de saco cheio um do outro. A quarentena potencializou a ideia do término, mas pensar é uma coisa e fazer é outra!
Quando ele, Fernando, sugere à ela, Dora, a ideia de ir embora de casa e colocar ponto final na relação de três anos, a mulher tem uma verdadeira epifania. Muitos dos questionamentos dos personagens de Me sinto bem com você rimam com problemas simples de quem assiste, e a aventura romântica de Matheus Souza atua no limiar da sessão de autoavaliação com aquela sensação de ler, ou ouvir, a frase que satisfaz todos seus demônios. A frase que doma inseguranças, que alivia dores de crescimento.
“Você se contenta com pouco”, ri Helena (a resiliente Amanda Benevides), quando Eduardo (o impulsivo Richard Abelha) se anima com a quase-namorada perguntando-lhe sobre seu dia. Ele não se esquiva: “de você, pouco é o bastante”. A relação do casal, estritamente carnal para a garota, passa pelo maior desenvolvimento ao longo dos cento e tantos minutos. Eduardo é um bobo apaixonado, ele se presta aos papéis necessários para receber o mínimo de afeto dela.
“As coisas que eu fiz, só para poder te chamar de meu”, canta uma esmaga Olivia Rodrigo no que teria sido a trilha sonora do namoro de Edu e Helena, não fosse o roteiro otimista de Souza. SOUR, álbum de Rodrigo que divide a data de nascimento com o filme de Matheus Souza, detalha uma porção de inseguranças da cantora, refletidas com virtuosismo em Me sinto bem com você, tamanha a identificação propiciada por sentimentos usuais.
A vida real não costuma ser doce como Me sinto bem com você. Na verdade, a realidade antagoniza a Arte. A Adriana de Manu Gavassi admite amar o Tom de Matheus Souza, mas não tanto nem da maneira que ele gostaria que ela o fizesse. Ela quer que eles sejam amigos. Eles ainda são a pessoa favorita um do outro. Nada mudou, mas tudo mudou.
Eduardo vence na vida, conquista a garota e fecha seu arco com um sorriso que contorna o rosto. Priscilla e Giovanna dão tchau cantando uma para a outra. Dora e Fernando tiram sarro do futuro, se abraçando no sofá da espaçosa casa que dividem. Adriana e Tom se amam, mas não é o tipo de amor que os fará dar o próximo passo.
Enquanto a realidade for povoada pela distância e pela frieza, a ficção recria os mesmos moldes, aquecendo a amargura. Enquanto Manu Gavassi protagonizar produções que tenham decorado o telefone fixo do nosso coração, assistiremos com afinco. Na verdade, Manu, eu é que me sinto bem com você.