Gabriel Oliveira F. Arruda
Adaptado do famoso livro infantil de Roald Dahl em 1996, Matilda completou 25 anos em 2021 e, mesmo tendo sido um fracasso de bilheteria, o filme produzido, dirigido e estrelado por Danny DeVito marcou todos aqueles que o viram na infância e é, até hoje, adorado pelas gerações que se identificaram com os problemas de sua pequena protagonista. Desprezada por quase todos os adultos que a conheceram, Matilda (Mara Wilson) mergulha em livros para ter amigos, até que sua vida muda ao perceber que possui poderes telecinéticos e decide dar uma lição nas pessoas horríveis que a rodeiam.
Como uma versão infantil de Carrie, a Estranha, Matilda se apoia nos elementos mais estranhos de sua narrativa e não procura dar explicações complicadas para as muitas dinâmicas sobrenaturais e sociais de sua trama. Essa leveza é parte do porquê o longa ainda permanece no imaginário popular, fazendo com que toda vez que esteja passando na TV, você queira parar para ver. Danny DeVito transporta um conto britânico para os Estados Unidos e, no processo, universaliza a história de uma criança que se recusou a ser menos do que extraordinária.
A família de Matilda Wormwood é quase uma caricatura da classe média americana dos anos 90: seu pai (Danny DeVito) é um inescrupuloso vendedor de carros usados, sua mãe (Rhea Perlman) é uma mulher vaidosa que só se importa com gastar e a única característica de seu irmão mais velho (Brian Levinson) é ser cruel com a garota. Parte da antipatia do público para com eles não é apenas que eles parecem odiar sua filha mais nova, mas que eles a odeiam sem motivo algum. De fato, eles parecem odiá-la ainda mais conforme ela se torna autossuficiente, aprendendo a cozinhar e ler sozinha, indo até a biblioteca quando eles estão fora e implorando para ser levada à escola.
Cada interação entre ela e sua família cimenta ainda mais a situação de absoluta injustiça em que ela se encontra, e cada momento de felicidade é acompanhado de uma realização sombria do quanto ela precisa de uma família decente. Matilda depende única e exclusivamente da habilidade de sua jovem atriz nos vender um único sorriso sincero e nos convencer que, de alguma maneira, ela ainda é capaz de ser feliz. Mara Wilson, então com nove anos de idade, foi instrumental na capacidade do filme de entreter ao mesmo tempo que emociona, se divertindo com o papel da criança prodígio.
O que torna sua performance ainda mais impressionante é saber que sua mãe havia morrido alguns meses antes do longa estrear, por conta de câncer de mama. Que Wilson foi capaz de atuar sobre tais circunstâncias, e que sua performance retém muito do entusiasmo juvenil de uma criança descobrindo que tem a habilidade de fazer coisas impossíveis e de mudar o mundo à sua volta para melhor, não é nada menos do que milagrosa. Apesar de (provavelmente) não ser capaz de fazer objetos levitarem com o poder de sua mente, a atriz mirim se provou tão extraordinária quanto sua personagem.
Danny DeVito consegue se ajeitar na direção do filme e de seu papel duplo como pai negligente e narrador onisciente. Apesar de todas as suas características insípidas de Harry Wormwood, é supremamente divertido ver as reações dele aos acontecimentos cada vez mais inusitados, bem como sua trágica inabilidade de ver que sua própria filha está por trás deles. Com seu poderoso um metro e meio de estatura, é genuinamente hilário ver ele ralhar com Matilda dizendo “Eu sou grande e você é pequena, eu estou certo e você está errada”.
Porém, quando a garota finalmente vai para a escola, ela conhece alguém que faz até mesmo seu pai parecer carinhoso: a Srta. Trunchbull, um monstro em forma de mulher e diretora da escola sombria e opressiva na qual Matilda foi matriculada, após seu pai ter lhe vendido um carro usado. Pam Ferris se delicia (e se machuca) no papel da feroz e violenta tirana que atormenta praticamente todos os alunos de Crunchem Hall (em inglês, Crunchem significa literalmente “esmague-os”), com punições quase cartunescas demais para serem levadas à sério, mas que funcionam no tom absurdo da produção o suficiente para temermos pela segurança de Matilda e seus colegas.
Mas é lá que Matilda encontra a pessoa que irá mudar sua vida. Introduzida pelo próprio narrador como uma “daquelas pessoas incríveis que valoriza cada criança por quem ela é”, a aptamente nomeada Srta. Honey (Embeth Davidtz) é a primeira pessoa adulta que reconhece em Matilda algo especial que vai muito além de suas habilidades sobrenaturais dormentes. Responsável pelo gay awakening de uma geração inteira, Jennifer Honey é o arquétipo da professora ideal, se importando profundamente com cada um de seus alunos em nível pessoal e tentando protegê-los da melhor maneira possível.
Antes mesmo de descobrirmos a conexão ridícula e intensa que ela partilha com Trunchbull, a personagem já nos conquista pela maneira carinhosa com que trata Matilda, oferecendo-a um módico de felicidade. Até mesmo quando ela duvida dos poderes telecinéticos da menina, sua primeira reação não é acusá-la de estar mentindo ou pedir para que ela abandone a sua “fantasia”, mas parabenizá-la por ter uma maneira de se sentir poderosa na situação que se encontra. Se metade do impacto cultural de Matilda vem de sua personagem titular, a segunda metade com certeza vêm de sua professora e do relacionamento que as duas constroem juntas.
Apesar de ser um filme dos anos 90 com metade do orçamento de um blockbuster, a maioria dos efeitos especiais ou envelheceram bem, ou pelo menos se tornaram irônicos o suficiente para terem virado uma piada de bom gosto. Ninguém acredita realmente que Trunchbull jogou uma criança para fora da janela e ela simplesmente voltou depois de dar piruetas no ar, mas não precisamos acreditar na verossimilhança daquilo tudo para apreciarmos a sua fantasia. Mais uma vez, a direção de DeVito acerta ao se apoiar no absurdo, e não duvidar dele.
A história de uma criança isolada e abusada por sua família se sentindo sozinha até que descobre ser portadora de poderes especiais sempre ressoou com o público infantil (não é coincidência você ter pensado num certo bruxo criado por uma britânica transfóbica que foi provavelmente parte da sua infância), mas Matilda vai um passo além e ativamente faz de seu enredo uma fábula em que a criança têm de ensinar para os adultos que não agir em face da injustiça é essencialmente apoiá-la. Quando descobre os agentes do FBI em sua garagem investigando seu pai, nenhum deles se importa com o bem estar da garota ou o que acontecerá com ela quando seu pai for preso. Na verdade, eles até parecem se deliciar pensando que ela seria mandada para um orfanato horrível.
Essa parte visceral e até cruel ajuda a realçar sua fantasia e a ironicamente torná-la ainda mais satisfatória. Quando chegamos ao final de Matilda e a menina simplesmente têm documentos de adoção preparados para a oportunidade dela poder ser adotada e sua única explicação é “Eu tenho eles desde que aprendi a fazer xerox”, tanto a tragédia quanto a comédia nos atingem em cheio, porque esse é o verdadeiro poder do filme: ser tanto a vingança estranha de Carrie quanto a esperança de Harry. Ao transformar o absurdo em uma virtude, Matilda nos empodera a fazer o melhor de nossas próprias vidas, e nós nunca nos esqueceremos dela por isso.