Vitória Silva
Não há isca melhor para prender o telespectador do que uma boa história de suspense. Crie uma morte inesperada e um núcleo de possíveis suspeitos, ainda por cima, ambiente-a em uma cidade interiorana pequena. Pronto, tem aí a fórmula perfeita para causar um burburinho necessário. Mas não o suficiente para, de fato, ter uma narrativa interessante, em meio a tantas outras que utilizam os mesmos ingredientes, e muitas que acabam se perdendo.
Mare of Easttown se apoia no gênero para criar sua trama. Ambientada na pequena cidade da Pensilvânia presente no título da série, a obra acompanha Mare Sheehan (Kate Winslet), uma policial durona de meia-idade, que se ocupa diariamente com a solução de diversos crimes que atingem a população local. Entre ter que resolver pequenos problemas de demais habitantes, como a implicância da senhora Carroll (Phyllis Somerville) com seu vizinho delinquente, a detetive também lida com a investigação do desaparecimento da jovem Katie Bailey (Caitlin Houlahan), caso até então não solucionado.
Mas o roteiro da produção não se limita apenas à realidade difícil na delegacia, e somos levados para dentro da casa da protagonista. Descobrimos que, além de policial, ela também é filha, mãe, divorciada e avó. Em um retrato claro de que, quando se é mulher, se carrega muito mais do que o peso de um distintivo. Além de conviver com uma mãe de forte personalidade, Helen, interpretada pela genial Jean Smart; compartilhar a vizinhança com seu ex-marido Frank (David Denman) – bem menos babaca que o Roy de The Office -, suportar a adolescência da filha Siobhan (Angourie Rice), Mare também enfrenta nas entrelinhas o luto pela morte de seu filho Kevin (Cody Kostro).
A protagonista de Kate Winslet não é fácil de se gostar. Sheehan é durona, egoísta, carrancuda e pouquíssimo afetuosa. Ainda sim, vamos nos aproximando cada vez mais da realidade da personagem e de sua jornada. Mare se posiciona como uma salvadora da cidade de Easttown, capaz de mover montanhas para resolver desde questões mínimas dos habitantes até outras maiores e mais complexas, com o único objetivo de trazer para a comunidade a estabilidade que falta em sua vida. Afinal, ela é a Miss Lady Hawk.
Mas isso não a torna nenhuma espécie de Mulher Maravilha, e nem é isso que ela procura. Nem mesmo a adoração popular ou os calorosos braços de Richard – representados com todo o charme de Guy Pearce – seriam capazes de acalentar a maré de turbulências presente no cotidiano da detetive. Nada melhor para suportar a luta pela guarda do neto, questões mal resolvidas com a morte do pai e um vazio irreparável no coração de uma mãe do que tentar solucionar o que parece insolucionável, nem que para isso seja necessário quebrar todas as partes do corpo ou colocar sua credibilidade profissional em jogo, dando um espetáculo de anti-heroísmo.
Mare também não performa nenhum ar de feminilidade, com seu jeito desleixado, roupas amassadas e um rabo de cavalo mal feito. A vencedora do Oscar ainda fez questão de se agarrar à identidade da personagem por completo, e até esquecemos que algum dia ela foi uma mocinha vivendo um dos maiores romances do Cinema à bordo de um navio. Além de incorporar o sotaque forte da Pensilvânia, a atriz não deixou que usassem maquiagem para apagar suas rugas e nem que elas fossem retocadas no pôster de divulgação da série.
Por mais empoderador que possa ser ver uma mulher incorporar uma figura historicamente associada a personagens masculinos, não há nenhuma forçação de barra nesse sentido, Mare é fodona sem precisar se empenhar muito para isso. Devido a essas e outras, Winslet conseguiu uma indicação ao Emmy 2021 como Melhor Atriz em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme.
Enquanto somos ambientados no ar da cidade e na rotina dos habitantes, também acompanhamos a vida de Erin McMenamin (Cailee Spaeny), uma jovem mãe solo, que tem uma rotina solitária e uma relação complicada com o pai alcoólatra e o ex-namorado abusivo. O pontapé inicial da trama, de fato, é o seu assassinato, nos minutos finais do primeiro episódio, que rende uma cena quase teatral.
Assim surge mais um crime para ser resolvido na conta de Sheehan. Em uma cidade pequena onde as vidas de todos os habitantes se cruzam, ninguém ali deixa de ser um suspeito. E ela sabe bem disso, e embarca nessa empreitada ao lado de Colin Zabel, interpretado por Evan Peters, que finalmente saiu do cativeiro do Ryan Murphy para dar vida a um detetive extremamente bobão e carismático – e que também apresenta uma idade relacionável a do ator -, tendo como resultado nada mais nada menos do que sua primeira indicação ao Oscar da Televisão, como Melhor Ator Coadjuvante.
Mesmo com um roteiro para lá de instigante – e que devidamente recebeu sua nomeação ao Emmy para o criador Brad Ingelsby – o arco da investigação do assassinato e da onda de sumiços de jovens garotas em Easttown fica facilmente em segundo plano. Por mais que o interesse pelo desfecho da trama seja grande, nos tornamos ainda mais obcecados e apegados à história de Mare, a forma que ela se agarra ao trabalho para não ter que enfrentar as batalhas da sua vida pessoal, sem perceber que se encontra numa situação que é uma via de mão dupla.
De maneira alguma isso aumenta a densidade da narrativa ou a dosagem dramática, que é perfeitamente balanceada com a relação bem-humorada com sua mãe, que ainda rendeu uma indicação para Jean Smart como Melhor Atriz Coadjuvante, concorrendo na premiação também por Hacks. Não só no âmbito familiar, mas também na amizade, Mare forma um laço perfeito com sua colega de longa data Lori, em uma performance estonteante de Julianne Nicholson, que se garantiu ao lado de Smart na disputa pela estatueta de ouro. O balanço entre a sensatez e a inconsequência da dupla é o guia perfeito para nortear a descabida Mare of Easttown.
E se tem uma coisa que a produção da HBO sabe fazer é criar laços. Os diversos rostos que aparecem de forma despretensiosa na trama podem parecer apenas uma distração ou mais um na extensa lista de possíveis criminosos, mas todos se posicionam perfeitamente na rede completa que constrói o arco final da série, com camadas e camadas de desenvolvimento. Nada é por acaso, nem mesmo os cortes aparentemente grosseiros, ou os enquadramentos peculiares da direção, que nos enganam de forma minuciosa e nada exagerada, devidamente executada por Craig Zobel, que, adivinha, disputa o Emmy por Melhor Direção.
Em meio a uma jornada tão profunda da nossa anti-heroína, a última coisa que Mare of Easttown precisava era nos dar uma reviravolta surpreendente, e ainda sim o faz de forma magistral. O desfecho da investigação – arriscado, quase absurdo e todos os outros adjetivos que você possa imaginar – é a peça final do quebra-cabeça que vem sendo construído desde o primeiro episódio, e sobre o que a série de Ingelsby realmente se trata: um encontro perfeito entre a maternidade e o luto. Ao final, a perda de Mare conecta-se com a de Lori, de Judy, de Dawn e de Erin. A conclusão é apenas uma, e é a mais bela que poderíamos ter.
Mare of Easttown é a série do ano, da década, ou de qualquer outro recorte temporal possível, e sua forte aposta no Emmy 2021 como Melhor Série Limitada ou Antologia é apenas um dos indícios disso. Não é todo dia que se reinventa um gênero que atravessa gerações, e ainda dá aula sobre como trabalhar uma narrativa com a profundidade e o significado que merece. Isso tudo em apenas sete episódios, que são muito mais que suficientes.