Pedro Gabriel
A Pixar é muito conhecida por suas obras carregadas de mensagens profundas, e por sua tentativa de explicação de conceitos complexos para crianças. Durante os 35 anos de existência da empresa, eles trataram sobre depressão em Divertida Mente (2015), amadurecimento nos quatro filmes de Toy Story, o luto em Dois Irmãos (2020) e até o sentido da vida em Soul (2020). Parecia que a aventura era um bônus na história. Mas, eis que surge Luca, em junho de 2021, e os papéis se invertem. A mensagem está lá, mas não é o foco principal.
A história gira em torno de Luca Paguro (Jacob Tremblay é a voz original do personagem, e Rodrigo Cagiano dubla o garoto na dublagem brasileira), um monstro marinho de 13 anos que tem apreço pela superfície, mas que nunca chegou nem perto, pois seus pais o proíbem disso – lembra uma certa sereia bem famosa do estúdio parceiro. Então, rapidamente, somos apresentados a Alberto Scorfano (Jack Dylan Grazer/Pedro Miranda), outro ser da espécie de Luca, mas que vive em um farol na superfície. E, assim, começa uma história de amizade e aventuras que os dois passam, em busca de liberdade e aceitação.
O filme é dirigido pelo vencedor do Oscar 2012, na categoria Melhor Curta-Metragem de Animação, Enrico Casarosa, e traz uma aura infantil e desbravadora. O cineasta italiano utiliza de suas lembranças da infância para construir a cidade de Portorosso, e suas paisagens. Tudo é muito rico e, ao mesmo tempo, contido. Essa é uma das grandes diferenças do filme para os demais do estúdio: a criação de mundo. A Pixar sempre teve uma construção de cenários muito grandiosos, desde Monstrópoles até o minúsculo mundo dos insetos. Já em Luca, todo o universo dos personagens era em Portorosso, e, por poucos momentos, pode-se ver suas vidas no fundo do mar e suas peculiaridades.
Ainda falando sobre as questões técnicas do filme, Luca se destoa um pouco da forma convencional do estúdio em sua animação. E isso é extremamente benéfico. Mesmo que as texturas e riquezas de detalhes sejam uma marca registrada da Pixar, o longa traz uma diferença no desenho. Os personagens são mais cartunescos e arredondados, com cores vivas e performances como se estivessem em uma pintura. A transição dos protagonistas quando estão em sua forma humana e acabam se molhando, tomando sua verdadeira feição, parece como quando uma tinta aquarela encosta na água.
Luca é um personagem fácil de se apaixonar. Ele é ingênuo, afetuoso e extremamente curioso. É lindo ver sua alegria ao conhecer aquele novo mundo, e depois sua vontade de aprender mais sobre o universo e tudo além de Portorosso. Já Alberto vai na contramão. Ele é excessivamente confiante e impulsivo, mas com um coração imenso. Com o passar do tempo, as feridas de Alberto são expostas ao público, e a conexão com ele é imediata, e se entende o real motivo pelo qual a Vespa é a solução dos seus problemas.
O roteiro de Mike Jones e Jesse Andrews consegue construir uma amizade verdadeira entre os dois, e cresce com a chegada de Giulia Marcovaldo (Emma Berman/Beatriz Singer). A garota italiana é uma personagem encantadora, com sua audácia e vontade de ganhar o grande torneio de Portorosso. Sua aparição marca o ponto de partida do crescimento dos personagens.
A habilidade de transformar o pequeno em majestoso é o grande mérito do longa. A “Nova Iorque” do filme é uma vila italiana de duas ruas. O grande desafio é um triathlon: com os desafios de uma competição de natação, quem come mais rápido uma massa e um caminho de pedalada. O grande vilão, um adolescente chato – e bota chato nisso – que quer vencer as crianças. E o grande sonho, que vai mudar a vida deles, é comprar uma Vespa. Na simplicidade, Luca ganha sua forma, e encanta quem o vê.
O filme ser simples não é um defeito. Não quer dizer que não há um desenvolvimento de personagens, ou que a narrativa é irrelevante, pelo contrário, a todo momento ele está em constante evolução. O crescimento de Luca, as feridas de Alberto – momento em que a Pixar consegue retirar as lágrimas do seu público –, a motivação pela qual os pais do protagonista não queriam o deixar ir para a superfície. No fim, o que temos é uma linda história para assistir no Disney+.
Porém, a produção desliza em um aspecto: ela acaba se apressando na construção. Em sua uma hora e trinta e seis minutos, algumas questões são corridas demais. Nos primeiros minutos do filme, nós conhecemos a família de Luca, sua casa e o Alberto, já o convidando para ir para a superfície, sem uma maior interação e exploração do mundo aquático. Mas isso não é algo que estrague completamente a experiência, só deixa com uma pontinha de que poderia nos dar um pouco mais.
Mesmo sendo simples em sua narrativa, Luca traz uma mensagem importante: a de se desprender de seus preconceitos, e crescer junto aos outros. É uma obra sobre proteção, aceitação e compreensão das diferenças entre as pessoas. Os criadores flertam disso com o público, ao inserir o pai de Giulia, Massimo (Marco Barricelli/Dláigelles Riba), como um homem truculento, sendo um dos personagens mais queridos e amáveis da história – além de ir contra o discurso capacitista ao colocá-lo como um PCD que nasceu sem um braço, e demonstrando sua força e autonomia.
Não é à toa que muitos internautas ligaram o filme com a descoberta da sexualidade. Realmente, a situação passada pelos personagens é vivida pela comunidade LGBTQIA+, e frases ouvidas por eles são comuns em suas vidas. Uma cena em especial foi muito compartilhada, da avó de Luca dizendo: “Algumas pessoas nunca vão aceitá-lo. Mas algumas vão. E parece que ele sabe encontrar as pessoas boas”. Mas, isso pode ser amarrado a outras diferenças sociais, dependendo de suas vivências. Independente disso, a mensagem continua a mesma, de que é necessário exercitar o ato do respeito. E, se caso tentarem te menosprezar, dizendo que você não consegue algo, ou se você se sentir inseguro de algo, grite “Silenzio, Bruno”, e siga em frente.
É difícil de ver um filme da Pixar contido, sendo que o último lançado por eles literalmente tentou explicar o sentido da vida. Então, Luca chega com essa visão mais ingênua, sem grandes conceitos, acessível a todas as idades. É o que chamariam de ‘filme Sessão da Tarde’, que agrada a família toda, perfeito para assistir em um domingo depois do almoço. Não acho que seja a melhor animação do estúdio, e tão pouco penso que essa era a pretensão dos criadores. Mas o selo da luminária saltitante pode atrapalhar nas expectativas. Se fosse um longa da DreamWorks, teria sido um dos melhores filmes do ano. Ainda assim, Luca é cativante e gostoso de assistir. Ele está disponível no Disney+, sem custo adicional, para apreciar com a família toda.