Guilherme Veiga
Pensar na revolta das máquinas é naturalmente evocar elementos da Skynet, passando pelos andróides da saga Alien, a destruição estroboscópica da Família Mitchell e chegando nas ficções de Interstellar e 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Por mais que essas produções de certa forma tratem também da condição humana, comum de toda boa ficção científica, muitas vezes a vilania da história está voltada aos seres formados por compostos eletrônicos. Em Love, Death + Robots, a carcaça metálica e (às vezes não tão) bem polida, reflete uma humanidade vilã, que, por falta de disputa na cadeia alimentar do poder, arranja um jeito de se voltar contra si própria.
Chegando a Netflix a princípio como uma prima animada de Black Mirror, a obra entrou de mansinho e bagunçou a ordem das coisas, a começar pela sua estrutura. Fora da fórmula de 8 a 13 episódios da empresa, o primeiro volume nos entregava 18, e muito antes da Quibi fracassar, a leva de histórias oferecia algo que não passava dos 20 minutos. O formato de antologia para animação também inovou, por mais que isso já existisse, só que menos difundido. Graças a ela, produtos como Star Wars: Visions, The Boys: Diabolical, e What If… puderam sonhar com um futuro.
Porém, logo a ideia se consolidou e virou uma jóia da locadora vermelha, ultrapassando e muito – tanto em aceitação como em qualidade – o espelho preto da Tudum. Criada por Tim Miller (Deadpool) em parceria com David Fincher (Seven, Garota Exemplar) a antologia partiu da premissa de adaptar os quadrinhos da Heavy Metal ao mesmo tempo que funcionava como portfólio para vários estúdios de animação (Miller, por exemplo, tem o seu próprio, o Blur Studios). A ideia deu tão certo que a série foi renovada para a segunda temporada, que apesar de não manter a obra à altura, é satisfatória e também garantiu mais um ano. Por isso, nessa terceira leva de episódios, assim como os três robôs que deram início a essa jornada recheada de amor, mortes e robôs, foi preciso revisitar a obra para entender sua caminhada, acertos e erros.
Isso já pode ser percebido logo nos primeiros minutos do novo ano de Amor, Morte & Robôs. Os mais desavisados e que tem em mente o conceito de antologia certamente estranham ao ver os três simpáticos robôs de personalidades excêntricas, os responsáveis pelo início de tudo, novamente em tela. Comparadas a primeira temporada, as novas andanças dos robôs não deixam de ser mais do mesmo. Sua versão inicial talvez ainda seja melhor, porém isso mostra que o bom filho, depois de desviar de sua essência no segundo ano, está voltando para casa.
O trio de robôs se prova uma ótima solução de roteiro, assinado por John Scalzi, pois mesmo com histórias desconexas, é através deles que o tom da temporada é dado. Mesmo que não se leve nem um pouco a sério (o que rende piadas ótimas, principalmente envolvendo os gatos), ver aqueles pedaços de lata extremamente sarcásticos caçoando da nossa espécie e tentando entender o que aconteceu nos coloca com essa mesma dúvida. Fica a cargo do restante dos episódios não de dar as respostas mastigadas, mas sim de soltar pequenas fagulhas que estimulem os questionamentos do espectador.
Outros que retornam para o Volume 3 são os estúdios de animação. Sem deixar de lado seu caráter experimental, a obra usa dos anos anteriores para filtrar quais estúdios melhor desempenharam seu trabalho. Para esse ano, a Blur, empresa que mais assina capítulos, como A Era do Gelo, no primeiro volume, e O Gigante Afogado, do segundo, volta para o excelente Viagem Ruim. Já os espanhóis da Pinkman.TV, depois de entregarem o frenético e ótimo A Testemunha, retornam para criar Jibaro, a maior obra-prima da antologia.
Viagem Ruim, aliás, é quando Fincher arregaça as mangas e sai da cadeira de produtor para dirigir o conto, e é aqui que fica muito claro a diferença que os anos ímpares têm para o segundo. A série provou que sabe entregar Animação de encher os olhos, logo no primeiro segundo de cada play. Agora, é em como tratar essas histórias que está a alma de LD+R, e o diretor, como um ótimo contador de narrativas, dá ao conto de Neal Asher um toque próprio para a já difundida mitologia de monstros marinhos, ao mesmo tempo que crava a ganância e ambição humana com discussão central dos episódios.
A terceira leva de capítulos configura uma temporada que prefere atenuar o amor e os robôs para focar na morte. Claro que a tecnologia ainda é muito presente, mas a série se mostra extremamente inteligente ao desmistificar a ideia pseudo-romantizada de que a derrocada humana só se dará através de inovações. Nós somos nossa principal ameaça por natureza, e a série, prolongando a batida afirmação de Einstein, frisa que não importa se tal ameaça será com bombas nucleares ou paus e pedras, enquanto existirmos, ela sempre existirá.
Essa discussão consegue passear de forma extremamente competente pela miscelânea de gêneros e formatos já característicos da obra. Desde a história com toques lovecraftianos de Sepultados na Caverna, passando pelo resultado da fusão entre Exterminador do Futuro e Stuart Little que é Os Ratos de Mason, todas as narrativas, mesmo que com seus antagonistas bem estabelecidos, sabem conduzir o texto para escancarar ao espectador como, mesmo com tais perigos, é preciso redobrar o cuidado com nós mesmos.
Por mais que a produção tenha dado um passo para trás para replicar elementos que funcionaram ou são difíceis de fugir, a originalidade ainda dita o show. O fato de manter a média de episódios do segundo ano, contando com apenas um conto a mais que o volume anterior e tendo a metade do primeiro, é possível perceber uma curadoria mais cuidadosa por parte dos criadores. Não sendo contínua, a obra tem alguns episódios abaixo que precisam se calcar única e exclusivamente no gosto pessoal de quem assiste, como Matança em Grupo e Enxame. Em um panorama geral, a régua ainda está bem alta.
Entre os pontos altos, é possível citar a jornada psicodélica e minimalista por uma das luas de Júpiter em O Mesmo Pulso da Máquina, as histórias de pescador recontadas por Fincher, em Viagem Ruim, e a curiosa e divertida aventura de 7 minutos ininterruptos de destruição de um planeta Terra, confeccionada em diorama e que entrega um apocalipse zumbi de botar muitas obras do gênero no chinelo, em Noite dos Minimortos.
O terceiro ano de Love, Death + Robots carrega 6 Emmys Criativos conquistados nos últimos volumes, o que já a desponta como favorita em suas categorias. Na 74ª edição da premiação, uma das mais importantes da TV estadunidense, a antologia figura nas categorias de Melhor Programa Curto de Animação, pelo episódio O Fazendeiro, em que disputa com as novatas Star Wars: Visions e The Boys Presents: Diabolical, e Melhor Mixagem de Som em Série de Comédia ou Drama (Meia-Hora) e Animação, por Sepultados na Caverna e disputa com nomes como Arcane e Ted Lasso. Além de já ter presenteado a categoria de Realização Individual Excepcional em Animação para o diretor Alberto Mielgo, a mente por trás do já vencedor do Emmy, A Testemunha, após ele ser responsável pela maior obra-prima da antologia, O Fazendeiro.
A complexidade e perfeição de Jibaro
Se Love, Death + Robots se destaca quando sabe contar uma história, o último episódio do terceiro ano, Jibaro, que garantiu uma das passagens da série para o Emmy, é uma verdadeira aula no assunto. Antes mesmo do capítulo em questão, Mielgo já provara sua competência ao integrar o departamento de animação de Homem-Aranha no Aranhaverso e, recentemente, pelo Oscar de Melhor Curta de Animação por The Windshield Wiper. A tradução do curioso termo que dá nome ao episódio varia dependendo da localidade, indo desde “selvagem”, em Cuba, até “fazendeiro”, em Porto Rico. A última opção é a mais aceitável, pois a ambientação indica uma floresta porto-riquenha e até mesmo a adaptação do título para o Brasil ficou como Fazendeiro.
Usando de um plot simples, porém extremamente inventivo, o curta, bebendo principalmente do mito grego de Ulisses e as sereias, conta a história de um colonizador espanhol surdo, que, após o encontro com uma criatura mitológica que enlouquece quem escuta seu canto, desperta a paixão dela, justamente por não ser afetado. Ao adaptar esse conceito, a produção consegue exaltar seu maior trunfo: as entrelinhas de seu subtexto.
Sem nenhuma palavra, o segmento, assim como as sereias, hipnotiza através de sua beleza e traz para a trama discussões que vão desde o genocídio de povos originários pelos espanhóis, na época de colonização, até relacionamentos tóxicos. O próprio idealizador diz que a obra se trata de uma relação entre dois predadores. Mais uma vez, assim como na maioria dos outros episódios, a mensagem está em torno da ambição e ganância humana. Aqui, porém, a série consegue subvertê-la em uma história poeticamente melancólica e, ao mesmo tempo, maravilhosa.
O design artístico de Jibaro precisou de 117 pessoas para suprir a complexidade que as técnicas de animação exigiam. Por conta disso, Mielgo exala um domínio no que está fazendo e dirige o segmento se aproveitando de elementos, como uma câmera mais subjetiva, montagem frenética e mesclada com uma música acelerada. Driblando os empecilhos que o método escolhido pode trazer, a produção consegue montar um gigantesco espetáculo sensorial e entregar o melhor episódio de toda a série.
Após uma ótima estreia e um segundo ano que não supriu expectativas, o terceiro volume da coletânea soube analisar sua própria jornada para, mesmo não abandonando sua originalidade e caráter experimental, entender quais são suas fundações. Em função disso, aqui, Love, Death + Robots entrega seu ano mais maduro e regular. Longe disso ser no sentido pejorativo, pois, em uma obra tão grandiosa em qualidade, buscar a estabilidade e fugir dos altos e baixos é uma ótima estratégia. E nesse melhor de três, todos ganhamos.